terça-feira, 31 de março de 2009

A Reforma

Laurence M. Vance - O Outro Lado do Calvinismo
A Reforma
A Reforma tem sido aclamada pelos calvinistas como o maior evento na história desde o tempo de Cristo.[1] Quaisquer que sejam os fatores sociais, econômicos, e políticos que alguém considera que conduziram a ela, e quaisquer que sejam os resultados subordinados que vieram dela, a Reforma foi primeiramente uma “revivificação da religião.”[2] A questão central da Reforma, como reconhecida pelos calvinistas, foi a justificação. Cunningham observa que a justificação “foi a grande doutrina fundamental distintiva da Reforma, e foi considerada por todos os reformadores como de fundamental e suprema importância.”[3] Sproul mantém que “a Reforma focava na questão, Como uma pessoa é justificada?”[4] Depois de corretamente afirmar que “a pessoa justificada deve possuir justiça,” Sproul faz a pergunta a qual ele chama “o coração da controvérsia da Reforma,” a saber, “Como o pecador adquire a justiça necessária?”[5] Os calvinistas estão corretos sobre o principal ponto da Reforma mas onde eles erram é na ligação dele com Agostinho.

Entender o ponto crucial da Reforma é muito importante por causa do que os calvinistas têm dito até agora sobre Agostinho. Deve ser lembrado que Warfield considera Agostinho como “o fundador do Catolicismo Romano,”[6] e aquele “que nos deu a Reforma.”[7] Este paradoxo ele explica como “o triunfo final da doutrina da graça de Agostinho sobre a doutrina da Igreja de Agostinho.”[8] Então, Warfield equipara a “doutrina da graça” de Agostinho com o celebrado princípio paulino da Reforma: justificação pela fé. Mas foi a Reforma realmente uma “revivificação do Agostinianismo”?[9] A resposta deve ser encontrada em um monge agostiniano que uma vez refletiu: “Eu esperava poder encontrar paz de consciência com jejuns, oração, vigílias, com os quais eu miseravelmente afligi meu corpo; mas quanto mais eu assim fazia, menos paz e tranquilidade conhecia.”[10]

O que causou a Reforma é universalmente reconhecido por todos como o dia que Martinho Lutero pregou suas noventa e cinco teses contra as indulgências na porta da igreja de Wittenberg em outubro de 1517. Lutero é significativo por causa da implacável insistência dos calvinistas que Lutero foi um monge agostiniano,[11] como se isso fosse a razão de Lutero ter enxergado a verdade da justificação pela fé. Pois como McFetridge nos adverte: “Seja lembrado que Lutero foi um monge agostiniano ou calvinista, e que foi desta rigorosa teologia que ele aprendeu a grande verdade, o pivô da Reforma e a chama irradiante da civilização – salvação, não pelas obras, mas pela fé apenas.”[12] Mas como um monge agostiniano, é aparente do próprio Lutero que a salvação pela fé foi a última coisa em sua mente:

Eu fui um bom monge, e eu guardei o regulamento de minha ordem tão estritamente que eu posso dizer que se houvesse um monge que fosse para o céu por sua vida monástica, esse era eu. Todos os meus irmãos no monastério que me conheciam poderão confirmar. Se eu permanecesse um pouco mais, eu teria me matado de tantas vigilhas, orações, leitura, e outras atividades.[13]

Todavia a questão ainda permanece: A doutrina da justificação pela fé da Reforma foi uma retorno a Agostinho ou um repúdio dele? Devemos voltar para Lutero para descobrir.

Após ser ordenado como um padre católico romano, Lutero recebeu seu doutorado em 1512.[14] Suas primeiras preleções foram sobre os Salmos (1513-1515), seguido de Romanos (1515-1516) e Gálatas (1516-1517).[15] Foi durante seu estudo do livro de Romanos que ele começou a ver a verdade da justificação pela fé. Lutero reconta:

Então eu comecei a entender que “a justiça de Deus” significava aquela justiça pela qual o homem justo vive mediante o dom de Deus, isto é, pela fé. É isso o que significa: a justiça de Deus é revelada pelo evangelho, uma justiça passiva com a qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: “Aquele que pela fé é justo, viverá.” Aqui, senti que estava nascendo completamente de novo e havia entrado no próprio paraíso através de portões bem abertos.[16]

Na nova visão de Lutero a respeito da justificação, o pecador é declarado justo por causa da imputação da justiça de Cristo. A justificação é pela fé somente (sola fide) e pela graça somente (sola gratia).

A visão da justificação da Reforma estava em direto contraste com a visão da justificação católica romana prevalecente naquela época. E como Sproul corretamente diz: “Para compreender o completo significado da questão da justificação, devemos virar nossa atenção para o significado da doutrina da justificação da Reforma pela fé somente.”[17] Os reformadores conceberam a justificação como um ato judicial e não um processo gradual. Assim, a justificação foi vista no sentido bíblico como o oposto da condenação:

Se houver contenda entre alguns, e vierem a juízo para serem julgados, justificar-se-á ao inocente, e ao culpado condenar-se-á (Dt 25.1).

O que justifica o ímpio, e o que condena o justo, são abomináveis ao Senhor, tanto um como o outro (Pv 17.15).

Ao invés de tornar justificado pela graça de Deus e mérito humano, e ao invés de tornar justificado pela fé e obras, os reformadores basearam a justificação no livre dom da justiça de Deus imputado ao pecador pela graça apenas e por meio da fé apenas:

Porém ao que não trabalha, mas crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é contada como justiça; assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus atribui a justiça sem as obras (Rm 4.5-6).

A visão da justificação da Reforma foi repudiada pela Igreja Católica Romana no Concílio de Trento (1545-1563). O mais longo decreto criado no Concílio de Trento foi sobre a doutrina da justificação. Depois de dezesseis capítulos estabelecendo a doutrina Católica, houve trinta e três cânones anexos contra a visão Protestante, todas as quais terminam em “seja anátema.” O cânon nove é característico:

Se alguém disser que o ímpio é justificado somente pela fé, entendendo que nada mais se exige como cooperação para conseguir a graça da justificação, e que não é necessário por parte alguma que ele se prepare e disponha pela ação da sua vontade — seja anátema.[18]

Estes cânones do Concílio de Trento nunca foram repudiados pela Igreja Católica Romana.

A visão da justificação da Reforma não somente constituiu um rompimento drástico com Roma, mas com Agostinho também, pois Agostinho não defendia a mesma visão da justificação como os reformadores. Isto é reconhecido pelos próprios calvinistas reformados. Cunningham admite que “é verdade que até Agostinho, apesar de todo o seu profundo conhecimento da verdade divina, e os serviços inestimáveis que ele foi feito o instrumento de devolver à causa da sã doutrina e da pura teologia cristã, não parece ter atingido as percepções distintas do significado forense da justificação.”[19] Ele até chama a concepção de Agostinho sobre a justificação de “defeituosa e errônea.”[20] Schaff afirma que “a doutrina paulina da justificação como demonstrada nas Epístolas aos Romanos e aos Gálatas, nunca antes tinha sido clara e completamente entendida, nem mesmo por Agostinho.”[21] O teólogo reformado Berkhof admite que Agostinho “não concebia a justificação num sentido puramente forense. Enquanto inclui o perdão dos pecados, isto não é seu principal elemento. Na justificação Deus não meramente declara mas faz justo o pecador transformando sua natureza interior. Ele não distinguiu claramente entre a justificação e a santificação e realmente inclui a última sob a primeira.”[22] De acordo com Berkhof: “A doutrina da justificação pela fé, tão vital para uma verdadeira concepção do modo de salvação, é representado de um modo que dificilmente pode ser reconciliado com a doutrina da livre graça.”[23] E não somente Agostinho foi errado sobre a justificação, mas Schaff revela que o oponente de Agostinho, que supostamente representa a antítese da salvação pela graça, estava correto na questão: “Pelágio entende no sentido protestante de declarar justiça, e não (como Agostinho) no sentido católico de fazer justo.”[24]

Mas não é somente os calvinistas reformados que vêem uma distinção entre a doutrina da justificação de Agostinho e a deles, mas os batistas calvinistas e até o próprio Lutero também. O historiador batista Timothy George, que crê que “reformado e batista não são termos mutualmente exclusivos,”[25] sustenta que Lutero redefiniu a justificação “em uma estrutura não-agostiniana.”[26] De acordo com George, a “completa teologia da justificação” de Agostinho foi influenciada pela filosofia grega.[27] Ele além disso contrasta as opiniões de Lutero e Agostinho: “Lutero acreditava que tinha recuperado o sentido original do verbo grego usado por Paulo em Romanos. Agostinho e a tradição escolástica tinham interpretado como ‘fazer justo,’ ao passo que Lutero insistia na conotação legal, ‘declarar justo.’”[28] Que a doutrina da justificação de Agostinho era defeituosa não há dúvida, pois como George aponta: “Para Agostinho, também, a infusão da graça através do sistema sacramental-penitencial da igreja continuava o processo da justificação iniciada no batismo.”[29] Mas a mais forte evidência que Lutero, o monge agostiniano, rejeitou Agostinho antes do que o reconheceu vem de sua própria boca: “Agostinho chegou mais perto do sentido paulino do que todos os estudiosos, mas não alcançou Paulo. No começo, eu devorava Agostinho, mas quando a porta para Paulo abriu-se e entendi o que era realmente a justificação pela fé, descartei-o.”[30] Então pelas palavras dos próprios calvinistas, dizer que foi Agostinho “quem nos deu a Reforma”[31] é uma impossibilidade se alguém for procurar nele uma doutrina correta da justificação.

[1] Cunningham, Reformers, p. 1; Schaff, History, vol. 7, p. 1.
[2] Roland H. Bainton, The Reformation of the Sixteenth Century, ed. amp. (Boston: Beacon Press, 1985), p. 3.
[3] William Cunningham, Historical Theology (Edmonton: Still Waters Revival Books, n.d.), vol. 2, p. 1.
[4] Sproul, Grace Unknown, p. 60.
[5] Ibid., p. 62.
[6] Warfield, Calvin, p. 313.
[7] Ibid., p. 322.
[8] Ibid.
[9] Custance, p. 27.
[10] Bard Thompson, Humanists and Reformers: A History of the Renaissance and Reformation (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1996), p. 388.
[11] Boettner, Predestination, p. 367.
[12] McFetridge, p. 14.
[13] Martinho Lutero, citado em Roland H. Bainton, Here I Stand (New York: Mentor Books, 1955), p. 34.
[14] William R. Estep, Renaissance and Reformation (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1986), pp. 114-115.
[15] Timothy George, Theology of the Reformers (Nashville: Broadman Press, 1988), p. 55.
[16] Martinho Lutero, citado em Estep, p. 116.
[17] Sproul, Grace Unknown, p. 66.
[18] Decrees of the Council of Trent, cânone 9, “Justification,” em Dogmatics Canons and Decrees (Rockford: Tan Books and Publishers, 1977), p. 51.
[19] Cunningham, Theology, vol. 7, p. 123.
[20] Ibid.
[21] Schaff, History, vol. 7, p. 123.
[22] Berkhof, History, p. 207.
[23] Ibid., p. 208.
[24] Ibid., vol. 3, p. 812.
[25] George, p. 8.
[26] Ibid., p. 68.
[27] Ibid., p. 65.
[28] Ibid., p. 70.
[29] Ibid., p. 64.
[30] Martinho Lutero, citado em George, p. 68.
[31] Warfield, Calvin, p. 232.

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