quinta-feira, 29 de maio de 2008

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Comunicação e Adolescência - o modelo da encarnação

Rubem Amorese


Ensina a criança no caminho em que deve andar, e ainda quando for velho não se desviará dele. Pv. 22:6

Uma das ciências que mais tem evoluído nos últimos tempos é a Comunicação Social. Está em alta nos vestibulares, nos cursos de Recursos Humanos das empresas, nas grandes multinacionais e até nas campanhas políticas, cuidando da imagem de partidos e candidatos. Parece que as pessoas, sob a influência da poderosa mídia, descobriram a importância de se comunicar bem (ou o desastre de uma comunicação cheia de ruídos). Com isso, até os programas de aprimoramento institucional ou pessoal - de cursos de liderança a encontros de casais - têm que ter, obrigatoriamente, um capítulo sobre comunicação.

As teorias da comunicação remontam a Sócrates, para quem, um bom discurso tinha o objetivo de persuadir. Ou seja, mudar a forma de pensar do meu ouvinte, na direção do meu pensamento. Desde então, até os dias de hoje, essa concepção da Comunicação tem ocupado um importante espaço entre teóricos e práticos. O professor é um bom comunicador se é capaz de "enfiar" sua matéria na cabeça do aluno (de preferência, sem que este tenha muito trabalho de estudar); o pregador é avaliado por seu poder de convencimento, de transformação dos seus ouvintes; o político atilado é aquele que se faz compreender facilmente (mesmo que ele próprio não saiba bem o que está dizendo, não importa), e assim por diante.

Mas essas teorias evoluíram. Principalmente, quando se começou a descobrir que nem sempre a persuasão modificava o comportamento das pessoas; que a boa comunicação do professor nem sempre fazia o aluno conhecer mais, e que sermões inflamados nem sempre produziam a vida desejada nos ouvintes. Na verdade, foi ficando claro que esse modelo implicava uma certa dose de prepotência e arrogância, pois avaliava o resultado dos processos comunicativos a partir da ótica do comunicador. O aluno aprendeu, se for capaz de reproduzir o que o professor ensinou - e se ele pensar diferente? Pode pensar? O fiel foi impactado pelo sermão, se modificou seu comportamento na direção prevista pelo pregador - e o espaço para ter sido abençoado em outra direção?

A idéia de que "comunicar é transferir informação", até geograficamente, começa a ser revisada. O conceito da via de mão única começa a ser repensado. E o termo assume a idéia de "comum-nicar", ou seja, estabelecer coisas em comum. A novidade é que, a partir dessa compreensão, o processo passa a igualar o comunicador como parte, e não senhor, desse processo. Colocar em comum é tarefa para os dois pólos teóricos do processo. Os dois se transformam em comunicadores-receptores; os dois têm uma dignidade própria de sujeitos (e não objetos) do processo. Os dois têm algo a dizer.

Ensina a Criança

Uma das áreas em que essas evoluções da teoria e da prática da Comunicação têm tido dificuldades de penetrar é nas relações entre pais e filhos. Acho que dá para entender por que. Nem sempre percebemos que nossos filhos estão crescendo. Refiro-me à dignidade que vão assumindo, como pessoas, autônomas em relação a nós, com seus desejos, vontades, pensamentos etc. Aos nossos olhos, vão ficando grandes, cheios de espinhas, voz grossa, mas dificilmente deixamos de chamá-los de meninos. Até afetivamente, são nossas crianças.

Junto com esse lado bom, no entanto, vai a nossa arrogância disfarçada de amor. Nossa comunicação com eles está sempre na mesma direção que esteve nos últimos dezoito anos: de cima para baixo. Tudo o que eles nos comunicam se resume em sinalizações sobre como estão de saúde, o que fizeram ou deixaram de fazer, e outros "elementos de controle"; informações que captamos para poder corrigir suas trajetórias. Nem sempre pensamos no assunto, e muito menos verbalizamos que "eles não têm nada a nos ensinar", mas essa é uma realidade tácita.
É um pressuposto pacífico.

Na verdade, temos até o sábio Salomão, a corroborar esse pressuposto. Quando ele dizia que deveríamos ensinar a criança, e ela, mesmo velha, não se afastaria desses princípios, não nos estaria colocando como autoridade suprema em relação ao seu conhecimento? Esse ensino que hoje lhe dou, é para sempre!

De certa forma, isso é verdade. E implica grande responsabilidade. Mas Salomão está falando, a meu ver, mais que isso: está dizendo que a criança precisa ser orientada no caminho em que deve andar; e esse caminho há de ser o dela, também. É mais que um caminho moralmente aceitável. É o caminho da vida. Preciso ensiná-la a caminhar seu caminho. Não o meu. Preciso ajudá-la a adolescer e encontrar o caminho em que deve andar. Um caminho de santidade, é verdade, mas não, necessariamente, o meu. E como vou fazer isso se não aprender com ela sobre esse seu caminho?

Encarnação e Comunicação

É interessante o que aconteceu com a teoria da Comunicação. Toda a evolução dessa ciência acabou por se mostrar a "redescoberta da roda". Estudaram, estudaram, e descobriram o que já se sabia há dois mil anos: que a forma mais completa, mais dignificante, mais eficiente de comunicação é aquela que promove todos os participantes do processo, sem transformar qualquer deles em objeto, em elemento menor. Descobriram que comunicação e adestramento são coisas muito distintas; descobriram que a simples transferência de conteúdos mentais não existe, pois o "receptor" é inteligente e tem seus próprios conteúdos, pelos quais avaliará o que recebe. Descobriram que a redução do receptor à condição de objeto do processo é reflexo da minoridade do emissor, que usa conceitos extraídos da Psicologia para manipular, dominar, encabrestar.

Ao contrário, o modelo mais avançado de comunicação já estava descrito pelo evangelista João:

E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. Jo. 1:14

Outra versão, diz: "e armou tenda entre nós".

O senhor do universo, ao se comunicar conosco, não usou técnicas persuasivas de transferência de conteúdos. Ele poderia muito bem ter feito isso. Ele poderia ter aberto um alçapão no céu, e gritado. Mas não o fez. O que fez? Abriu mão da sua glória e nasceu entre nós, como um de nós.

As Lições

Gostaria de extrair, dessa revelação de João, 6 lições sobre comunicação, aplicáveis a qualquer relação de liderança, mas em particular entre uma mãe e seu filho adolescente.

1. Primeira lição: Comunicação é mais que palavras

Deus já havia falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas (Heb. 1: 1-2). Deus já havia utilizado a técnica das palavras. Mas chegou um tempo, em que aprouve ao Pai apresentar-se por inteiro, de forma que o que de Deus se pudesse apreender nos fosse manifesto, inteiramente no seu Filho. E então, Deus pára de falar e parte para atos e gestos. Deus encarna.
Comunicação é mais que palavras. É gesto eloqüente, é ação de integração, é encarnação que faz nascer junto ao seu filho adolescente. Comunicação é fazer junto, é sofrer junto. É aprender e crescer com ele.

2. Segunda lição: Comunicação requer proximidade

Deus já havia falado à distância: já havia mandado cartas (livros sagrados) e enviados (profetas), mas não estava satisfeito. Tudo acontecia numa distância insuportável para quem realmente ama e quer salvar. Então, pelo gesto de "habitar entre nós", definitivamente encurtou distâncias, e se fez um Deus próximo. Em Jesus, Deus fez a aproximação do homem consigo mesmo.
Comunicação requer proximidade. Uma proximidade muito mais que física, amocional e afetiva; uma proximidade de quem se interessa, de quem quer o bem; de quem quer saber do íntimo, do coração, da alma, dos problemas. Uma proximidade que se dispõe, humildemente, a "comun-icar".

3. Terceira lição: Comunicação exige horizontalização

A vida e as palavras de Jesus não foram um discurso de poder, mas de fraqueza; não houve, na boca de Jesus, argumentos de força, do tipo - faça isto porque eu estou mandando; eu sou sua mãe - mas espírito de sacrifício.
Comunicação verdadeira não se dá de cima para baixo; daquele que manda para aqueles que obedecem; daquele que sabe para ignorantes; daquele que detém o cetro para plebeus. Comunicação verdadeira compartilha ideais, visões, alvos e sonhos; busca, procura ajudadores; inspira vocações; fortalece os fracos; solidariza-se com as dificuldades e limitações.

4. Quarta lição: Comunicação é gesto de amor

O texto sagrado nos ensina que a motivação da encarnação foi só uma: amor. Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu..." Um amor que não ficou em palavras, nem em sentimentos platônicos, mas que deu. Mais que isso: um amor que se deu. Essa partícula "se", no caso é muito importante, porque muitas vezes somos capazes de dar para não termos que nos dar. No caso do pai, da mãe, do líder, isso é muito comum. Damos coisas aos nossos filhos para que parem de exigir de nós proximidade, horizontalização, e doação pessoal. Mas o amor de Jesus não foi assim. Manifestou-se em uma intensidade e dramaticidade tal que, ao invés de dar, deu-se. Este é o gesto de amor de Deus, revelado na encarnação de Jesus.
Comunicação é gesto, é atitude, é ação concreta; é cumprimento de promessa; é realização de esperança.

5. Quinta Lição: Comunicação é caminho de serviço

O texto de Daniel 7: 14 fazia prever que aquele que viria seria forte e poderoso; destinado a ser servido pelas nações da terra. Quem poderia esperar que Cristo viria na forma de Isaías 53? No entanto, Lucas 9:48 encontra Jesus ensinando, a partir de seu próprio exemplo, que seu caminho, seu exemplo, foi um exemplo de serviço humilde e singelo.
Comunicação é mais que palavras; é mais que proximidade; é mais que horizontalização; é mais que gesto de amor.

6. Sexta lição: Comunicação é um contínuo atravessar de fronteiras. É romper barreiras

O primeiro grande gesto de amor de Deus se consumou na travessia de uma barreira dimensional entre o divino e o humano. Quando Deus se faz homem, estava vencida a grande distância; a fronteira das naturezas, das dimensões, das visões do mundo, das compreensões da vida e do cosmo. A encarnação significa Deus cidadão do mundo; Deus entre nós - Deus Homem.

Comunicação é ser capaz de nascer na realidade em constante e rápida mutação de seus filhos adolescentes, para fezer-se um com eles; para compreender sua realidade, para sofre sua angústia de não ser mais criança e ainda não ser adulto.

Conclusão

Não precisamos de um curso de Comunicação Social para nos relacionar bem com nossos filhos adolescentes. Até que não é má pedida. Mas o essencial é que, também nessa área, sejamos discípulos de Cristo, quando diz: assim como o Pai me enviou aos seus filhos rebeldes, eu também vos envio aos vossos adolescentes.

terça-feira, 13 de maio de 2008

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Contentamento.

Ricardo Gondim.

De que mais carece um homem senão de um olhar que não lhe condene, principalmente, no momento tenebroso quando se sentir arqueado de culpa? E que lhe devolva a sensação de saber-se acolhido por pura gratuidade, sem pedir explicações; e que o deixe pleno de paz, sem exigir nada.

De que mais carece um homem senão de um ombro que se oferece para dividir a carga, de um parceiro que não considera a ajuda um sacrifício? Para que, ao caminhar ao lado desse amigo, possa dizer que sua companhia é mais valiosa do que uma jazida de ouro.

De que mais carece um homem senão de um irmão que lhe estenda a mão no corredor escuro, quando as opções se mostrarem arriscadas? Basta que diga: “vamos tentar acertar uma dessas portas, não importa quanto errarmos” e desaparecerá o medo dos labirintos, das armadilhas, das setas malignas.

De que mais carece um homem senão de um ouvido para desabafar? Ele se sentirá feliz ao encontrar o confidente que não precisa responder, mas, calado, esquece. Sim, um amigo com amnésia para nunca alegar inconveniências antigas; não cobrar o porquê das insensibilidades despercebidas; um teimoso que deseja continuar ao lado, mesmo quando não for chamado.

De que mais carece um homem senão de poesia para fazê-lo vivenciar a linguagem criadora do universo? Somente o poema lhe fará vagar pelos sentimentos indizíveis do artista e sofrer com a angústia do profeta. Só a beleza da palavra é pão; só o verbo, carne; só o verso, um copo d’água.

De que mais carece um homem senão de música para embalar seus sonhos, descansar seu corpo fatigado e devolver graça para suas pernas trôpegas? Com melodia, ninguém perde leveza para acabar insensato. Cantar torna íntimo, nunca distante; grave, nunca pessimista.

De que mais carece um homem senão de colo para deitar-se e sentir-se amado? Todos carregam a nostalgia do aconchego uterino; todos desejam retornar ao ninho primordial e falar com um Deus que também é mãe. “Que meus olhos sejam tão mansos para com os outros como os teus são para comigo. Porque, se for feroz, não poderei acolher a tua bondade. Ajuda-me para que não seja enganado pelos maus desejos. E livra-me daqueles que carregam a morte nos próprios olhos”. (Rubem Alves).

De que mais carece um homem senão de uma noite insone para virar-se ao avesso e dialogar com suas sombras e não horrorizar-se? Nessas inquietações, sem relaxar, sempre é possível identificar dores que pedem cura. Nos conflitos internos, aprende-se a apalpar a asa ferida e evita-se o vôo precipitado antes que a madrugada chegue com suas réstias de esperança.

De que mais carece um homem senão de dormir profundamente e sonhar? E nessa experiência que prenuncia a morte, atravessar o deserto do silêncio até aprender a amá-lo; no descanso profundo e total, dialogar com a eternidade, vaga e misteriosa, até perder o medo da solidão e encontrar Deus.

De que mais carece um homem senão de espelhos que reflitam seu olhar sereno mesmo quando enfrenta a mais terrível tribulação? E mirando-se, não esquecer que, sobretudo, deve manter guarda constante de si mesmo para continuar solidário, misericordioso e amigo da justiça.

De que mais carece um homem senão de um Salvador que se pareça com um cordeiro não com um leão? E que seu Senhor lhe inspire a voltar o coração para os sofredores; a identificar-se com a sorte das ovelhas, não dos lobos, dos condenados, não dos carrascos.

De que mais carece um homem senão de paixão para acordar pleno de entusiasmo a cada manhã? E revestido de ideais, transformar-se em um hino que confronta os egoístas, fazendo da sua teimosia um sino que convoca o medíocre a abandonar seu discurso raso e irrelevante.

De que mais carece um homem senão de uma esperança que lhe desafie como o horizonte de um vasto oceano? E que esta esperança more além da história, além do tempo, além da vida; e ele, semelhante a um veleiro, não queira achar um porto, preferindo a aventura de navegar ao sabor do vento indomável.

Soli Deo Gloria.

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Teologia da Esperança.

Ricardo Gondim.

Jürgen Moltmann causou espécie. Sua obra, “Teologia da Esperança”, encantou e importunou quando publicada em 1964. Alguns consideraram o livro a concretização de temas que “estavam no ar”, cumprindo assim um kairós (a inevitabilidade do "tempo que chegou").

Na Igreja Católica Romana, o Concílio do Vaticano II propunha a atualização de sua missão, liturgia e teologia. Nos Estados Unidos, o movimento pelos direitos civis ganhava força com Martin Luther King, que levou multidões às ruas. Em Cuba, jovens guerrilheiros tomavam o poder de Batista, um fantoche da máfia, para despertar a esperança dos pobres das Américas. Nesse ambiente, nascia a "Teologia da Esperança".

Releio Moltmann depois de vinte anos. A cada página, pergunto-me: “onde eu estava que não apreendi seus conceitos?”. Ainda na introdução, Moltmann repensa o signficado de “escatologia” – a doutrina das últimas coisas. Para ele, era aceito que “a compreensão da expressão “últimas coisas” englobava eventos, sobre o mundo, a história e a humanidade que irromperiam no fim dos tempos. Entre esses acontecimentos estava a volta de Cristo em glória, o juízo universal e a consumação do reino, a ressurreição universal dos mortos e a nova criação de todas as coisas. Esses acontecimentos finais irromperiam de fora da história para dentro dela e poriam fim à história universal, na qual tudo se move e se agita”.

Moltmann considera, então, que, como esses acontecimentos ficam no limiar do “último dia”, eles tiveram pouca relevância para os “tempos vividos antes do fim”. Escatologia ficou condenada a ser apenas uma aspiração piedosa. Isso explica, segundo ele, porque “as doutrinas do fim vegetavam esterilmente nas últimas páginas da dogmática cristã. Eram como um apêndice meio solto, que definhavam em sua insignificância apócrifa”.

Daí, Moltmann ousa resignificar a escatologia, trazendo-a para o presente. Ele afirma que “a escatologia é idêntica à doutrina da esperança cristã, que abrange tudo aquilo que se espera como o ato de esperar, suscitado por esse objeto”. A escatologia não adia, sine die, o apogeu da história, mas o trás para o presente, porque, “o cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só como apêndice; ele é perspectiva, e tendência para frente, e, por isso mesmo, renovação”.

“O escatológico não é algo que se adiciona ao cristianismo, mas é simplesmente o meio em que se move a fé cristã, aquilo que dá o tom a tudo há nele, as cores da aurora de um novo dia esperado que tingem tudo o que existe”.

Para Moltmann, portanto, a doutrina da “escato-logia” deve ser substituída por uma teologia da esperança: “Mas como falar de um futuro que ainda não existe e de acontecimentos vindouros aos quais ninguém ainda assistiu? Não se trataria aí de sonhos, especulações, desejos e temores, todos necessariamente vagos e indefinidos, já que ninguém pode verificá-los?”.

Ora, se se entende doutrina “como uma coleção de afirmações doutrinárias que se conhecem a partir de experiências que podem ser repetidas e feitas por todos; o termo logos se refere a uma realidade que está aí, que existe sempre e que pode ser conhecida como verdade na palavra que lhe corresponde”.

Concordo com Moltmann, pois também acredito que “não é possível haver logos do futuro, a não ser que o futuro seja a continuação ou retorno periódico e regular do presente. Mas se o futuro traz algo de surpreendente e novo, sobre ele nada podemos afirmar, nem conhecer sobre ele qualquer coisa que tenha sentido, pois a verdade ‘lógica’ (verdade com logos) não pode existir no que acontece no futuro como novo, mas tão somente naquilo que é permanente e retorna regularmente”.

Moltmann desmonta a arrogância do teólogo que se imagina capaz de fixar a realidade, pois “os conceitos teológicos não podem se tornar juízos, os quais fixam a realidade naquilo que ela é, mas tão somente juízos provisórios, os quais descobrem à realidade suas perspectivas e suas possibilidades futuras. Conceitos teológicos não devem fixar a realidade, mas ampliá-la pela esperança e assim antecipar seu futuro. Não devem arrastar-se atrás da realidade, nem olhar para ela com os olhos da coruja de Minerva, mas iluminar a realidade, mostrando-lhe seu futuro”.

Incentivo a leitura de “Teologia da Esperança” (Edições Loyola) de Jürgen Moltmann, seus conceitos são revolucionários:

Deus não está em alguma parte no além, mas ele vem e está presente, como aquele que vem e promete um novo mundo de vida plena, de justiça e de verdade, e com essa promessa põe novamente em questão este mundo. Não porque o mundo nada é para o que espera, mas porque ainda não é aquilo que está colocado à sua frente. Pelo fato de o mundo e a existência humana serem assim questionados, eles se tornam “históricos”, pois são postos em jogo e colocados na crise do futuro prometido. Quando o novo aparece, o velho se manifesta. Quando algo de novo é prometido, o antigo se torna passageiro e superável. Quando é esperado e aguardado algo de novo, o antigo pode ser abandonado. Assim a “história” resulta a partir de seu término, a história daquilo que acontece, o qual é percebido na promessa prévia e iluminadora.

A escatologia não é soterrada pela areia movediça da história, mas, ao contrário, mantém a história viva por meio da crítica e da esperança; ela é, por assim dizer, a própria areia movediça da história que vem do fim. A impressão da transitoriedade universal, que é tão evidente ao triste olhar de quem olha para trás, para o que não pode ser segurado, na realidade nada tem a ver com a história...

A história não engole a escatologia (Albert Schweitzer), nem a escatologia engole a história (Rudolf Bultmann). O logos do eschaton é a promessa daquilo que ainda não existe, e, por isso, faz a história. A promissio, que anuncia o eschaton e na qual o eschaton se anuncia, é o motor, a motivação, a mola propulsora e o tormento da história.

Soli Deo Gloria.

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Desaforos, resiliência e perdão.

Ricardo Gondim

Há tempo escrevo memórias e garimpo reminiscências. Antes que se rompa o fio de prata, procuro revolver emoções sedimentadas, talvez em busca de achar-me.

Desisti de querer voltar aos lugares da infância. Casas, avenidas e praças encolheram demais para despertar meu olhar adulto. Chamo, porém, pelos personagens que me marcaram. Um ou outro obedece e sai dos porões úmidos onde jaziam. Reencontrá-los, entretanto, nem sempre me alegra, alguns continuam assustando.

De Londrina, por exemplo, não revejo apenas o pó vermelho que encardia meus pés e que toldava o céu nas tardes de temporal. – Que medo! Ressuscito amigos com quem nadei em ribeiros e represas e não esqueço o rosto do padre que estendeu-me a hóstia da Primeira Comunhão.

Mas não idealizo as recordações. Não vivi uma infância ou adolescência protegida; cedo conheci gente ruim e despertei para um mundo perigoso.

Um dos momentos mais doloridos aconteceu nos tempos da prisão do papai. Logo antes do golpe militar, papai requerera sua transferência de Londrina para outra base aérea, porém, antes do despacho oficial, o governo caiu. Assim, mamãe, grávida de gêmeos com seus cinco filhos, ficou no meio do caminho. A situação de nossa família era complicada: não tínhamos para onde voltar e não sabíamos para onde ir. Ainda bem que meus avós maternos nos acolheram na pequena casa de vila onde moravam.

E como eu não podia ficar sem estudar, fui matriculado num Grupo Escolar mal cuidado; de carteiras, pensas, prestes a desabar e com uma lousa verde desbotada. Na primeira semana de aula, meu irmão e eu chamamos a atenção. Nosso sotaque paranaense soava afeminado para os ouvidos cearenses.

A choça era geral. Nunca hei de esquecer quando alguém gritou “viado”. Fui ao encontro da voz, disposto a brigar. Mas não dei três passos e uns seis moleques formaram uma parede humana. Todos fortes e bem mais velhos do que eu. Um assumiu a liderança e me provocou com um montão de coisas, mas não ousei nenhum gesto. Ele então escarrou e cuspiu no meu rosto.

Ódio, raiva, ira, furor, mal sei o vocábulo adequado (talvez todos), acendeu uma febre súbita por todo o meu corpo; e rompeu-se a indignação que eu represava por saber que papai estava preso, por não ter casa nem quarto de dormir, por pressentir que jamais me deitaria no colo da mamãe como fazia em Londrina, por estar naquele colégio vagabundo, por ter perdido meus antigos amigos. Lutei para não enfrentá-lo - eu sabia que não tinha chance - esforcei-me para não chorar e saí de perto deles. Mas, enquanto enxugava o cuspe, jurei vingança e por anos procurei guardar a fisionomia do meu ofensor para matá-lo.

Hoje acordei e pensei naquele evento. Perguntei-me se já consegui perdoar a afronta. Tentei redesenhar aquela face detestável, mas não consegui - sem um rosto o ódio não se adensa. Mas a memória daquele dia continua; escrevo como catarse, querendo enterrar o passado - sei que as obras das trevas só se destroem na luz, que revela a poder destrutivo do rancor.

Muitas outras decepções marcaram a minha vida. Não posso esquecer que namoradas me traíram; que perdi amigos que me acharam pobre por não ter dinheiro para comprar um mísero refrigerante na praia e por tentar pular o muro do estádio e ser apanhado pela polícia; que me vi diante de um conselho de presbíteros, antes dos 20 anos de idade, para um inclemente ritual de excomunhão.

Perguntam sobre a minha tristeza e respondo: ela é filha da decepção, mas a mãe dos vários eus que precisaram nascer para minha sobrevivência. Mia Couto escreveu: “Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não de raças, mas de existências”.

Nessas muitas existências numa só vida aprendi resiliência, que depois se misturou ao imperativo do amor e fez de mim uma crise ambulante.

Soli Deo Gloria.

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MILAGRES, SENTIDO E CONSCIÊNCIA[1]

Elienai Cabral Junior

Ninguém discorda de que estamos experimentando um tempo de angustiante desconstrução na teologia da Betesda[2]. Continuo acreditando que os sentidos dessa desconstrução já vinham sendo apontados há muito tempo. O que não tínhamos era a maturação desses sentidos para fazer as perguntas necessárias e sugerir algumas respostas.[3]

Creio que ninguém nunca inventa um sentido. Nunca surge um sentido até então inédito e impensável. O que há é o ponto de maturação de sentidos que nos puxam há muito tempo. Nesses pontos de maturação da nossa história, idéias consideradas estranhas, mesmo que ponderáveis, são testadas pelo tempo e as experiências. Se não se diluem, são adensadas, agravadas, ganham sobrevida e, se sobrevivem, agregam força de persuasão e plausibilidade. Se não sobrevivem, são esquecidas como um delírio infantil. Caso resistam, ganham força gravitacional, o poder da coerência de nos puxar para dentro de um sentido. Puxam-nos com a força da consciência de algo que mostra real.

Quem resiste, sem enlouquecer, a algo que lhe pareceu real? Só despreza algo novo que faz sentido e ama o que se mostra injustificável quem esquizofrenizou. Em outras palavras, se eu sei que uma idéia esgotou seu sentido e que outra idéia indica um mundo de sentidos novos, basta um pouco de coragem para acolher mudanças, propor novas lógicas e chegar a algumas conclusões.

Portanto, o que chamamos aqui de desconstrução não é uma demolição fortuita e muito menos arbitrária. Também não pode ser confundida com um arroubo irresponsável de novas idéias. Nossa experiência de desconstrução é o enfrentamento corajoso das implicações desses sentidos que há muito nos puxam. Sim, somos puxados pelos sentidos apontados pela história. Não confundam isso com nenhum novo determinismo. Mas entendam o “ser puxados” como uma consciência histórica, como a escolha pelo que salta aos olhos. Toda consciência é construída pela história. À medida que vivemos e refletimos o que vivemos, coletivamente, acolhemos o que faz e repelimos o que deixa de fazer. As individualidades interagem, mas, preciso frisar, a consciência é sempre coletiva. Sinto que esse é o momento que vivenciamos, o do surgimento de uma nova consciência.

Mesmo sendo coletiva a experiência de surgimento de nova consciência, cada um caminha no ritmo em que discerne a (sua) história. Por isso também escolhi a palavra maturação. Porque se trata de um processo que não pertence inteiramente à pessoa que o experimenta. Ninguém possui em sua livre iniciativa todo o movimento de abertura para uma nova lógica.

Além da boa vontade, da coragem, do despojamento, da sinceridade, de um alargamento de horizonte, há também elementos que não dependem apenas de vontade pessoal. Outras experiências escapam ao indivíduo, como as decepções sofridas com as explicações convencionais, uma vivência cultural e comunitária com o esgotamento de modelos antigos e a demanda por novos modelos que melhor respondam às expectativas. Além, é claro, de elementos subjetivos e psíquicos: alguns tendem à resignação, foram adestrados em sua formação pessoal a adiarem conflitos. Outros são inquietos e ávidos por enfrentar as novas questões que surgem e imediatamente propor novas respostas. Enquanto alguns experimentam inquietações e desencantos típicos de sua idade ou experiência de vida, outros tendem a um olhar idealista, apaixonado e otimista para a vida, também, mas não somente, em função de sua idade emocional.

Há tantas variantes quantas individualidades envolvidas no desenvolvimento da cosmovisão de uma comunidade. Logo, falamos de uma experiência marcada necessariamente pelo conflito e assimetria. É neste ponto que nossas fantasias de unidade e nossa obsessão por simetria institucional atrapalham. Nenhuma comunidade desenvolve sua cosmovisão com integridade e liberdade sem abrir mão da hegemonia e do espírito de manada.

O fato, no entanto, de falarmos de assimetria na formação de uma nova consciência não pode ser entendido como uma experiência desencontrada e anárquica. Novamente, falamos de uma consciência histórica, logo, de um fenômeno que a todos abarca. Senão, qualquer proponente de novas idéias sequer seria entendido, sendo confundido com um lunático. Como são, talvez, os líderes das chamadas seitas messiânicas que já tantas tragédias causaram na história recente do mundo.

Se uma nova idéia provoca amplo debate, atrai novos pensadores, agrega indivíduos não pessoalmente envolvidos e nem participantes de um mesmo segmento, como igreja, cidade, país ou religião é porque essa idéia é parte de uma nova consciência que nos puxa. Mesmo que a essa idéia sejam contrapostas ferozmente idéias conservadoras. Inclusive, o fato de representantes de idéias conservadoras, de antigas consciências, serem mobilizados e agirem com violência intelectual apenas confirma que as novas idéias nem são invenções, nem delírios, nem idéias absurdas. Ao contrário, talvez porque façam todo sentido e terminem por ameaçar a sobrevida de antigas consciências, sejam tão fortemente combatidas.

Minha primeira sugestão é de uma desistência acompanhada por uma aceitação. Precisamos desistir de um debate monofônico. Nossas conversas serão marcadas pela polifonia de idéias. Haverá tons distintos que precisaremos orquestrar se não quisermos desperdiçar a chance de construirmos com múltiplas percepções uma nova consciência. Mas também precisamos aceitar que temos bem mais em comum do que imaginamos. Por isso defendo que essa nova consciência sobre Deus, a Bíblia, a fé, a salvação, a oração, os milagres e todos os demais assuntos da vida cristã já se mostra nos sentidos que sempre nos puxaram.

Nessa altura do campeonato, os debates de idéias já criam grupos distintos. Cada um se forma em função da identidade de cada participante e dos preconceitos de muitos que acabam por catalogar e isolar os diferentes. É natural que os iguais se aproximem para melhor argumentar. Mas é lamentável que algumas pessoas isolem outras em categorias preconceituosas, tais como: os progressistas, os de esquerda, os conservadores, os fundamentalistas, os legalistas, os liberais e assim por diante. Catalogados pelos preconceitos, perderemos a condição de ampla conversa. Precisamos nos aproximar através das conclusões comuns a todos. Meu esforço inicial será o de intuir alguns desses elementos em comum.

Para tornar nossa conversa mais produtiva, escolho um tema que, segundo entendo, é bem mais que um assunto entre tantos. Milagres. Escolho-o por ver convergir nele nossas maiores tensões. Mas principalmente porque, como já indiquei, é um tema mais abrangente que um simples assunto. É um tema que nos remete ao todo do modo de ver Deus, a humanidade, a liberdade, o amor, a vida autêntica, o sofrimento, a ética e outros ainda. Talvez pudéssemos começar afirmando que o tema dos milagres é o centro nervoso da consciência humana.

Para a consciência religiosa tradicional, não apenas cristã, o debate a respeito dos milagres é o mais intenso. Nenhuma afirmação repercute mais que a aquela que checa a consistência do que acreditamos ser milagre. Nenhuma dúvida atormenta mais que aquela que questiona a expectativa por um milagre. Nenhuma negação afronta mais que aquela que abre mão da pertinência de um milagre. Por quê? Minha idéia é que a discussão sobre milagres é a discussão sobre um modo de viver. Uma cultura. Um modo de se colocar na vida. E um modo de vida é a cultura que desenvolvemos para nos sentirmos seguros diante da imprevisibilidade da história e das ameaças de um mundo que, com freqüência, se mostra hostil.

Basta aceitarmos o tipo de hipótese proposta por Jesus ao “jovem rico” (Mt 19.16-30) para entendermos a dificuldade de se lidar com mudanças de consciência. O jovem se aproxima como que puxado pelo anseio de algo novo, mas ainda desconhecido. Há uma questão: “Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna?” Jesus o remete a um modelo que não consegue mais responder: “obedeça aos mandamentos.” A pergunta insiste com a confirmação de anseio por outras respostas diferentes das que carregou a vida toda: “A tudo isso tenho obedecido. O que me falta ainda?” Jesus respondeu com algo mais que uma proposta radical, um exercício de mudança de consciência: se quisesse ser perfeito, o jovem rico deveria vender tudo o que tinha, dar o dinheiro aos pobres para então segui-lo. Por um instante, ao menos, aquele jovem rico sentiu-se sem a segurança de todos os bens conquistados. Sentiu-se a mercê de um projeto de vida que abria mão da segurança das riquezas. Por um instante, Jesus deu ao jovem a oportunidade de imaginar-se sem o modo de vida com o qual construíra toda a sua história, de sentir-se participante de uma outra consciência.

O episódio se encerra com a força inibidora de qualquer mudança: a sensação de insegurança diante do desconhecido. Uma antiga cultura, mesmo que esgotada em sua pertinência, sustenta-se em sua capacidade de domar mentes inquietas com apelo do medo. Triste, o jovem partiu como chegou: perguntando-se pelo que ainda faltava, mas sem força para romper com um padrão sobre o qual firmou sua segurança existencial.

Importante foi a constatação feita por Jesus da gigante dificuldade de alguém redimensionar seu modo de vida: “é mais fácil um camelo entrar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus”. A pergunta dos discípulos, que não eram ricos, nos diz que a questão não era apenas sobre riqueza, mas sobre abrir mão dos pontos de apoio para experimentar uma nova realidade: “neste caso, quem pode ser salvo?” Ou seja, ninguém, a princípio, está propício a abrir mão de sua cultura de segurança. A resposta de Jesus é o anúncio de esperança do Reino de Deus: “Para o homem é impossível, mas para Deus todas as coisas são possíveis”. A interpelação de Pedro reafirma que o que estava em questão não era ser rico ou ser pobre, mas a segurança em um mundo ameaçador: “Nós deixamos tudo para seguir-te! Que será de nós?”

Quando falamos de milagres estamos tratando sobre um modo de vida organizado para gerar segurança em um mundo que nos ameaça. Qualquer questionamento que levante a possibilidade de não esperar por milagres produz a mesma angústia que sentiu o jovem rico, a de ter todos os amparos construídos até então derrubados. O que parece inaceitável.

Mas até aqui apenas justifiquei os conflitos que estamos experimentando neste momento de surgimento de uma nova consciência. A pergunta a ser respondida é a que reúne os lugares comuns desta nova consciência na Betesda. Alguns prováveis acordos:

1. Não podemos duvidar do poder de Deus em realizar um milagre, muito menos de que milagres possam acontecer. Negar a possibilidade do milagre é negar a natureza de Deus, a dinâmica surpreendente da vida tanto quanto diversos depoimentos registrados na Bíblia. Nosso questionamento está sobre o posicionamento de Deus frente ao nosso anseio por milagres. Nossa questão seguinte é se devemos organizar nossa a vida a partir da expectativa de milagres. Mais ainda, se devemos nos empenhar pelo milagre ou fazer dele objeto de nossa oração.

2. Nem a quantidade, nem a qualidade de nossas orações estão relacionadas com a realização divina de um milagre. O Deus da graça nada faz em nosso favor porque somos mais ou menos convincentes, mas porque é misericordioso. A noção de que a intensidade da fé e o volume de oração e demais disciplinas devocionais podem nos aproximar da chance de um milagre se assemelha à lógica pagã de espiritualidade. Denúncia feita por Jesus no sermão da montanha. (Mt 6.7- 8) Relacionar milagre com desempenho esvazia o Deus bíblico de sua bondade, conhecimento e compaixão.

3. O milagre não é a solução divina para o problema do sofrimento humano. Se a solução para o sofrimento humano fosse o milagre, Deus deveria realizar todas as curas e livramentos que a dor humana reivindica. Se Jesus não curou todas as pessoas, ao contrário, seu ministério teve um alcance geográfico minúsculo: a galiléia, é porque sua resposta ao sofrimento humano não foram os milagres por ele realizados. Sua resposta ao sofrimento humano foi a solidariedade de Deus, que se fez idêntico e nos ensinou a viver com coragem e esperança. No pão partido e na carne sofrida. No vinho bebido e no sangue derramado. No prazer e na dor. Inteiramente solidário. Completamente imitável.

Se, portanto, os milagres realizados por Jesus não resolveram o problema do sofrimento humano, eles incorporaram uma mensagem. O que eles significaram importa mais do que o que eles desempenharam imediatamente. Nossa leitura dos evangelhos deve se empolgar menos com o poder demonstrado e muito mais com os valores indicados.

4. Os milagres na Bíblia nunca tiveram êxito em gerar amigos para Deus e nem pessoas melhores. Toda seqüência prodigiosa na Bíblia é seguida de decepção para Deus. É a história do Êxodo, os dez prodígios das pragas não endureceram apenas o coração de Faraó como também o do povo hebreu que continuou pronto a dar as costas a Deus e a Moisés a qualquer instante. É a história dos evangelhos. Onde estava a multidão de pessoas beneficiadas pelos milagres de Jesus no momento da crucificação? Por que os favorecidos pelos milagres não se tornaram os amigos mais fiéis de Jesus? Depois de todos os milagres, por que Jesus clama: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que depois de tantos milagres realizados Jesus morre solitário e questionável? A Bíblia não seria a história do fracasso dos milagres em promover a vida humana?

5. Jesus, nosso modelo de vida, em momento algum foi beneficiado pessoalmente por qualquer milagre. Para escapar das ameaças precisou se esconder como qualquer homem faria (Jo 8.59). Na tentação do deserto, recusou todas as insinuações para que buscasse um milagre que facilitasse sua vida e carreira. Como afirma Ricardo Gondim no artigo publicado recentemente em seu site, “Tragédia, milagre e fé”[4]:

“Considero, inclusive, que nossas inquietações possam ser respondidas na tentação de Jesus no deserto. Trato o episódio como chave de compreensão de como podemos lidar com a vida. O Espírito levou Cristo até o deserto para ser tentado. Ali o diabo ofereceu três vantagens para que Jesus enfrentasse o desafio de viver: provisão, livramento e prosperidade. Caso aceitasse transformar pedras em pães, todos os famintos do mundo poderiam reivindicar a mesma coisa; se pedisse o socorro dos anjos, todos os acidentes seriam “evitáveis”; ao receber os reinos do mundo por decreto, o livre arbítrio humano ficaria anulado. Jesus rejeitou ter a fome satisfeita por magia; não permitiu que se criassem expectativas falsas de um mundo sem percalços; e rechaçou conquistar os reinos deste mundo pelo poder. Preferiu mostrar em sua própria vida que liberdade era a maior dádiva que Deus nos concedera.”

6. Não há nenhuma indicação na Bíblia de que devemos esperar por uma vida blindada. Estamos sujeitos aos acidentes da vida. Gostamos de citar as palavras de Jesus: “no mundo tereis aflição, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”. E, se vencer o mundo como Jesus significa experimentá-lo do mesmo modo, inclusive uma com a possibilidade de uma morte injusta e violenta, certamente ninguém deve esperar ter um “corpo fechado” por Deus. Dizer ‘quero vencer o mundo como Jesus venceu’ significa dizer ‘não quero nenhum livramento divino de nenhum mal que possa vir sobre mim’, porque foi assim que Jesus se comportou.

7. O milagre é um evento sobrenatural, portanto não está ao alcance de qualquer movimento humano. Sendo assim, cabe a nós conduzirmos a nossa vida a partir daquilo que nos compete. Precisamos viver independentes de qualquer milagre. Pois se o milagre cabe a Deus e a uma dimensão que nos escapa, nada poderemos fazer para torná-lo viável. Se Deus atua milagrosamente contra os sofrimentos humanos, não há nada que façamos que possa tornar esse agir melhor ou mais freqüente, senão, falamos de um agir divino deficiente, de um agir divino que carece do agir humano para ser mais competente. Portanto, se há a possibilidade do milagre, ela não pode ser algo sobre o que estabelecemos nossos valores, expectativas e decisões. Se milagre é milagre não podemos contar com ele. Se é milagre o que Deus pode ou não fazer, precisamos viver como se nunca fosse acontecer.

Se milagre me escapa, organizar minha vida na expectativa de um é uma irresponsabilidade e uma insensatez. Talvez o motivo pelo qual Jesus conta a parábola do administrador desonesto com um elogio à sua inteligência. “O senhor elogiou o administrador desonesto, porque agiu astutamente. Pois os filhos deste mundo são mais astutos no trato entre si do que os filhos da luz.” (Lc 16.1-15) Flagrado em seu delito, o administrador resolveu a encrenca na qual se meteu sem contar a misericórdia de seu senhor e das demais pessoas. O resultado foi um plano brilhante que o cercou de amigos. Mesmo reprovável em um primeiro momento em sua moralidade, foi admirável em sua atitude diante da vida.

8. Qualquer teologia que desenhe um deus aquém de você deve ser descartada como uma idolatria. Na Bíblia, Jesus escolhe a figura do pai para descrevê-lo o mais próximo de nossa compreensão. A comparação é expressa basicamente assim: se vocês pais, sendo maus, sabem dar coisas boas aos seus filhos, como não vos dará tudo o que é bom o Pai que está no Céu. Se quisermos nos aproximar ao máximo da compreensão de como Deus age precisaremos, como Jesus, pensá-lo a partir de nosso ideal de paternidade. É André Torres Queiruga[5] quem propõe o seguinte exercício: o que pensar de um pai que só providencia alimento e segurança para os seus filhos se os vizinhos intercederem? E o que dizer de um Deus que para agir exige ser lembrado de seu papel de provedor? Se eu em minha paternidade supero essa paternidade divina é porque não estou falando do Deus de Jesus, mas de um ídolo.

Mas se os seus filhos passam fome e sofrem violência, o que pensar de Deus senão que ele faz o papel inverso? Deve ser ele quem clama pelos seus filhos a mim e a você para que façamos algo. Porque se a iniciativa solidária é minha, se o ponto de partida de solução é meu, então eu sou melhor que esse deus. Os vizinhos são mais paternos presentes que o pai em sua própria casa. Mas nem sou eu o primeiro a me solidarizar e nem é uma intervenção sobrenatural a solução para o sofrimento humano. Mas sim, a solidariedade humana. Jesus se colocou definitivamente em todos os que sofrem (“os pequeninos”). Quem se solidariza com os que sofrem encontra e abençoa o próprio Deus neste mundo. (Mt 25.31-46)

A oferta de esperança da igreja ao mundo é de solidariedade e não promessas de milagre. Colocar as promessas de milagre como discurso da igreja é esconder-se da responsabilidade de agir. Gente solidária é a única esperança para gente que carece.

9. Se Deus não privilegia ninguém (Deus não faz acepção de pessoas, At 10.35-36), qualquer milagre que faça com o fim de atender a uma carência deve se estender a todos que também carecem. Se Deus transformou uma mulher estéril em uma mãe, não precisaria, na mesma comunidade, também ter impedido outra mulher de ser estuprada? Se Deus mandou alguém presentear outro com um carro novo, não deveria também ter providenciado alimento para as crianças que morreram naquele mês de desnutrição? Não deveríamos ao menos estranhar essas contradições e, novamente, suspeitar de uma teologia que propõe um deus pior do que nós?

10. Um cristão no exercício de sua consciência solidária precisaria sentir-se constrangido ao buscar um milagre enquanto milhões de pessoas simultaneamente padecem pela epidemia da AIDS. Sua oração deveria ser um clamor pelos outros sempre e não por suas aspirações.

11. Causam estranheza testemunhos de milagres parciais. A pessoa sofre um acidente, tem uma perna amputada e uma lesão que comprometerá sua locomoção definitivamente e testemunha o milagre de Deus impedir sua morte. Se foi feito por Deus, porque atendeu em parte às necessidades? Não seria esse tipo de testemunho um esforço coletivo por sustentar a cultura dos milagres e livramentos? A necessidade de acreditar que podemos contar com os milagres é tanta que interpretamos os eventos sempre para encontrar um fim glorioso.

12. Incomoda qualquer mente questionadora o fato de as ofertas de milagres, ou as expectativas por eles, excluírem um grupo de sofrimentos e limites humanos. A expressão é de Ricardo Gondim, só oramos por milagres dentro de uma zona de plausibilidade. Não esperamos muito ou nada por milagres em determinadas circunstâncias: alguém que sofreu a amputação de um membro do corpo, uma criança com Síndrome de Down, pessoas com nanismo e assim por diante. Temos mais ímpeto em orar pelos milagres que possuem alguma chance de acontecerem. Cogitamos o milagre com mais modéstia se possui muito pouca chance de acontecer. Sequer o cogitamos em situações extremas.

13. A Bíblia não pode ter sua interpretação superidealizada. Talvez a mais trágica crença incorporada pela tradição evangélica seja a que coloca a Bíblia acima da vida. Não quero substituir uma pela outra. Também não me atrevo a colocar a vida acima da Bíblia. Mas precisamos entender que só há uma Bíblia com autoridade final sobre nós: aquela que está inexoravelmente conectada à vida. A Bíblia vivida é a única que tem autoridade sobre a vida sem a sufocar, ou mesmo violentar. Uma Bíblia que transcende à vida, acima dela, independente dela, não significa nada, não diz nada, geralmente mata. A Bíblia precisa ser pensada em sua mundanidade.

Como um livro de palavras, sendo todas as palavras sempre precárias para dizer com precisão, a Bíblia carece de nosso esforço sensível, amoroso e modesto de interpretá-la a partir da única realidade que dispomos: a vida que vivemos. Por um cristianismo que contemple os desafornados, uma Bíblia vivida que nos liberte da opressão de uma Bíblia anterior e acima da vida.

A cultura dos milagres – essa que se apresenta como um modo de vida amparado nas intervenções milagrosas de Deus – está necessariamente construída sobre uma interpretação idealizada da Bíblia. O que torna a atitude de alguns crentes irresponsável, absurda, até mesmo criminosa, mas coerente com a sua compreensão da Bíblia:

Sem socorro, menina morre enquanto pais rezavam

Uma menina americana de 11 anos morreu de diabetes enquanto seus pais rezavam pela sua cura, sem chamar médicos para socorrê-la, informaram as autoridades de Wisconsin.

Os pais da garota, Dale e Leilani Neumann, foram acusados de homicídio culposo (sem intenção de matar). O casal acredita somente na Bíblia e está convencido de que sua filha estava nas mãos de Deus, segundo declarou a mãe da menina.

Segundo a agência Ansa, a garota morreu no dia 23 de março passado em sua casa em Weston, vítima de um nível muito baixo de insulina no sangue. Os pais nunca a levaram a consultas médicas.

Redação Terra

Não faz o menor sentido sustentar uma interpretação da Bíblia que não experimentamos de fato, ou que contradiz a vida. A autoridade da Bíblia está exatamente em sua promoção da vida: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra.” (2Tm 3.16-17)

Tenho ouvido com mais freqüência que gostaria, quando no esforço por compreender Deus e suas manifestações em nossa vida, a advertência de que Deus não é alcançável pela lógica humana, de que ele está acima da nossa lógica. O que me parece um absurdo completo. Se de fato fosse assim, haveria um fosso intransponível entre Deus e a humanidade. Sequer dele faríamos qualquer referência. Nem o nome Deus seria pronunciado. A dizermos “Deus” o fazemos sempre de dentro de uma lógica. Porque palavras só significam algo dentro de uma lógica.

Dizer que Deus não cabe em uma lógica é outra coisa. Até porque nenhuma verdade cabe absolutamente em uma lógica. Ninguém cabe dentro de uma lógica. Muito menos Deus. Portanto, abdicar do pensamento para conhecer Deus é matar “Deus” em nossa experiência. O que dá razão novamente a Nietzche. Mas não apenas matamos Deus com uma abdicação do pensamento, matamos a nós mesmos. Desistimos do que nos toca e nos reivindica compreensão.

Portanto, o exercício de construir uma consciência é idêntico ao de viver. É com esse compromisso que somos puxados pela consciência. O de viver com sentido. É com esse compromisso que precisamos responder as questões aqui levantadas. O de fazer teologia para a vida.


[1] Este artigo foi apresentado no 12º Encontro de Pastores da Igreja Betesda no Nordeste, realizado entre os dias 30/04 e 02/05/2008. Minha pretensão foi a de reunir argumentos que têm constituído uma ampla conversa dentro da denominação e oferecer uma pauta de discussão.

[2] A Igreja Betesda é uma denominação de origem assembleiana, com 27 anos de fundação. Desde então foi marcada pela busca de práticas e reflexões afinadas com os novos anseios do mundo moderno. Acabou por se desvincular institucionalmente das Assembléias de Deus no Brasil.

[3] Acredito que a experiência da Igreja Betesda sirva de amostragem para um fenômeno que a todos envolve. Senão com a atitude assumida de ressignificar a teologia, ao menos com a sensação de esgotamento do modelo até então vivenciado e anelo por algo novo.

[5] QUEIRUGA, André Torres. Fim do Cristianismo Pré-moderno. Editora Paulus.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

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"Meu inimigo sou eu"

Ricardo Gondim

Vez por outra sou atacado por um inimigo atroz: eu mesmo. Delimito meu mundo, e meus únicos vizinhos tornam-se meus desejos; sem reconhecer a ferocidade dos meus egoísmos, contento-me com minha insignificância. Nessas alucinações entrópicas, descubro a gênese de meu egocentrismo. Ele acontece quando, depois de lutar por ideais, cobrar atitudes das pessoas e propor um mundo mais justo, sou acometido pelo desejo de mandar tudo para o espaço e cuidar só do estreito quintal de minha vida.


Há pouco tempo deu-me uma vontade louca de desistir de tudo e me mudar para bem longe. Meio desencantado com minha geração, tive um ímpeto de me aposentar precocemente; talvez comprar uma casinha no sertão, diminuir minhas demandas financeiras e passar o resto dos meus dias lendo, pescando e curtindo a companhia sempre prazerosa de minha mulher.

Quando já me preparava para viver como uma cigarra selvagem, sem muita preocupação senão com minha própria felicidade, por acaso, li um pequeno trecho do poeta mexicano Amado Nervo (1870-1919). Suas palavras ressoaram dentro de mim com tanta força, que adiei minha aposentadoria por tempo indeterminado:

“Todo homem que te procura vai pedir-te alguma coisa; o rico aborrecido, a amenidade da tua conversa; o pobre, o teu dinheiro; o triste, um consolo; o débil, um estímulo; o que luta, uma ajuda moral. Todo homem que te busca, certamente há de pedir-te alguma coisa. E ousas impacientar-te!

“Infeliz! A lei oculta, que reparte misteriosamente as excelências, dignou-se outorgar-te o privilégio dos privilégios, o bem dos bens, a prerrogativa das prerrogativas: dar. Tu podes dar!

“Deverias cair de joelhos e dizer: Graças, meu Deus, porque posso dar! Nunca mais passará por meu semblante uma sombra de impaciência.”

Ao terminar a leitura, lembrei-me que o conceito de liberdade cristã não contempla qualquer egocentrismo. Anjos egoístas se transformaram em demônios; homens, em pecadores; e o mundo, num inferno. Assim, decidi resistir a essa tentação de abandonar minha vocação. Resolvi que asfixiarei essas inclinações que desafiam a minha fé e exorcizarei a vontade de parar – ela arrastará meu coração para o conforto dos tímidos que não herdarão o Reino de Deus.

André Comte-Sponville tratou da generosidade em seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (Martins Fontes) e concluiu que “a generosidade, como todas as virtudes, é plural, tanto em seu conteúdo como nos nomes que lhe prestamos ou que servem para designá-la. Somada à coragem, pode ser heroísmo. Somada à justiça, faz-se eqüidade. Somada à compaixão, torna-se benevolência. Somada à misericórdia, vira indulgência. Mas seu mais belo nome é seu segredo, que todos conhecem: somada à doçura, ela se chama bondade”.

Devemos lembrar que a prioridade maior da fé não consiste em defender verdades, mas em aprender a amar. Jesus disse em João 13.35: “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros”. Há algum tempo venho propondo que o principal curso dos seminários deveria ser “Agapeologia”, objetivando mostrar que ninguém pode se considerar um seguidor de Cristo se não dividir seu lanche, como fez um menino no milagre da multiplicação, e se não lavar os pés dos desafetos, como fez Jesus na noite em que Judas o traiu.

Reconheço a dificuldade de abrir mão da minha reputação para não deixar que melindres tirem minha alegria de servir, insistirei em me dar incondicionalmente àqueles que nem valorizam meus gestos de bondade. Reconheço que a trilha mais confortável conduz ao isolamento e que, muitas vezes, sinto facilidade em responsabilizar o próximo pelos meus infernos. Mas esse impulso de buscar isolar-me não nasce do Deus Trino que desde sempre convive em perfeita harmonia. Um projeto de vida egocêntrico é luciferiano.

Sabendo que o egoísmo nasce do diabo, rejeito seus ardis. Não sonegarei meus afetos, não vou ilhar-me, indiferente ao meu semelhante; não tentarei fugir para os confins do universo; e nem farei da minha cama um abismo de lamúrias. Atenderei ao apelo de Paulo: “E vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem (...) sabendo que o vosso trabalho não é vão no Senhor” (2 Ts 3.13; 2 Co 15.58).


Soli Deo Gloria.
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O fermento dos fariseus.

Ricardo Gondim.

Os fariseus também sofrem preconceito. Não devemos fazer generalizações ou discriminar nem quando tratamos do farisaísmo. É verdade que eles se contaminaram com um fermento sutil, que Jesus de Nazaré chamava de hipocrisia, mas não merecem ser execrados inteiramente; os fariseus não eram completamente maus.

Primeiro, é preciso entender o sentido da palavra hipocrisia; no contexto dos fariseus, significa falsidade, dissimulação, mera representação, incoerência. Um hipócrita religioso, então, seria alguém que prega, mas não vive; um santarrão público; um pecador nos bastidores. Mas existe outra possibilidade, que acredito mais próxima do Evangelho. A hipocrisia dos fariseus era, na verdade, inversa. Eles eram bons quando se distanciavam do exercício da religião, mas, péssimos quando se investiam de suas funções oficiais; eram perversos nos conclaves, jóias em casa.

Como Jesus lidou com os fariseus em ambientes distintos, basta observar o comportamento deles para notar a diferença. Em almoços, nas conversas em “off”, os fariseus eram afáveis, curiosos e abertos para conceitos novos – Nicodemus, por exemplo. Mas no instante em que se sentavam para deliberar sobre religião viravam pessoas horrorosas. Jesus não evitava encontrá-los fora dos templos, mas não comparecia às suas reuniões oficiais – não dava! O vovô Anás não devia ser tão ruim, mas Anás, chefe do templo, se revelou um facínora capaz de conspirar a morte de um homem bom.

Se a hipocrisia revelada pelo farisaísmo naquele tempo era o oposto do que se imagina, o mesmo continua a acontecer. Conheço pastores bem legais quando se acompanham dos filhos e dos netos. Já viajei com alguns e testemunho que foram companhias agradabilíssimas. Mais tarde, porém, eles me apavoraram. Reencontrei-os na direção de “plenárias deliberativas” e tremi. Desfigurados pelo título, pelo paletó e a gravata e pela empáfia do cargo, mostraram-se implacáveis, legalistas e maquiavélicos. Não se pareciam em nada com meus antigos colegas de viagem.

A religião adoece porque lida com três forças avassaladoras: poder, dinheiro e fama. E o seu perigo aumenta quando o nome de Deus é reivindicado para autenticar as ações. Facilmente um sacerdote pode usar a Bíblia ou o respaldo da instituição para escudar escolhas nefastas. Que tentação!

Quando tomado por essa falsa onipotência, o religioso derruba quem estiver no meio do caminho; consciente da verdade como revelação divina, elimina quem julgar nocivo; imbuído de missão sagrada de conquistar o mundo, arrasa possíveis inimigos. Nessa trilha, o líder religioso vai se desfigurando, desfigurando, até tornar-se um iníquo.

Paulo advertiu a Timóteo que os “últimos dias” seriam difíceis (2Tm 3.1); previu os sacerdotes com a “forma de piedade, mas negando-lhe o poder”. Disse, inclusive que seriam inescrupulosos a ponto de entrarem “sorrateiramente nas casas para seduzir mulheres incautas”; donos de um perfil tão pernicioso se pareceriam com bandidos comuns (como um pastor pode caber numa lista dessas?).

“Sabe, porém, isto: Nos últimos dias sobrevirão tempos difíceis; pois os homens (leia-se, "os líderes religiosos") serão egoístas, avarentos, jactanciosos, arrogantes, blasfemadores, desobedientes aos pais, ingratos, irreverentes, desafeiçoados, implacáveis, caluniadores, sem domínio de si, cruéis, inimigos do bem, traidores, atrevidos, enfatuados, antes amigos dos prazeres que amigos de Deus”.

O maior desafio de um líder religioso não é só viver o que prega, mas converter sua religião ao que vive em sua vida particular; deixar que a sua humanidade transborde para os espaços eclesiásticos; de colarinho clerical continuar tão humano quando vestia bermuda.

Soli Deo Gloria.

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O silêncio dos inocentes.

Ricardo Gondim.

O metrô sacudia nossos corpos de um lado para outro como se programado para aquele ritmo. O barulho das rodas, nos trilhos, obedecia uma métrica quase musical. Vendo as pessoas bailando no vai e vem contínuo, inquietei-me com o silêncio humano.

Ninguém falava, ninguém ria, ninguém conversava. Procurei convencer-me que uma fadiga os entorpecia. Mas seria a desesperança?

Antigamente as filas dos bancos, das repartições públicas, dos guichês para compra de qualquer bilhete, se transformavam em fóruns de cidadania. Repetiam-se frases do tipo: “Por isso é que o Brasil não vai pra frente!”; “Que absurdo!”; “Até quando vamos agüentar calados?”; “Temos que fazer alguma coisa!”.

Em um processo lento, não de repente, como queria o poeta, calou-se o tal murmúrio; as pessoas se calam porque chegam à conclusão que falar não revolve nada - gasta-se energia para protestar e economizar-se é um recurso de sobrevivência. Instintivamente, sabem reservar seus gritos para um tempo quando houver possibilidade de esperança.

O Brasil está se calando. E o silêncio vem da centenária percepção de que o grito da maioria nunca foi ouvido pela minoria rica e poderosa. Essa quietude se transforma em depressão coletiva; o povo do tamborim, da cuíca, que bate samba numa caixa de fósforos, espirituoso e brincalhão, perde, infelizmente, seu lado moleque. Como lutadores de boxe cansados, baixam a guarda.

Enfraquecidas as resistências, reina uma estranha bonança e essa calmaria produz o caos social, que tanto mata. Os miseráveis já haviam se calado, agora a classe média também emudece. No Brasil não existem “panelaços”, palanques onde tribunos eloqüentes ficam roucos; são poucas as passeatas reivindicatórias. Sobram marchas (que mais se parecem carnaval fora de época), “showmícios” com sindicatos distribuindo prêmios através de sorteios. Porém, impõe-se o fatalismo perturbador dos pusilânimes.

Espero que, enquanto permanece quieta, “a brava gente brasileira” recobre sua antiga força criativa, restaure resistências e volte ao ringue pela dignidade nacional. Acredito que meu povo, uma dia, deixará de ser ordeiro e pacífico. Um dia acordaremos que essa paz só pertence aos covardes. Os verdadeiramente vivos não se conformam com a serenidade dos cemitérios; eles têm fome e sede de justiça.

- Deus, devolve-nos a indignação dos metrôs,dos ônibus e das filas, e faze-nos renascer para a esperança.

Soli Deo Gloria.

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Cansaço de domingo.

Ricardo Gondim.

Terminado o culto do domingo, aceitei o convite para um belo almoço com amigos de longa data. Conversamos sobre tudo. Lá pelas tantas, falamos sobre os conteúdos de meus sermões. Fui incentivado a manter o curso; mas eles foram cândidos (não é para isso que servem os amigos?): “Ricardo muita gente acha que você endoidou”. “Os seus textos e sermões são discutidos em rodas de bate-papo e o pessoal não economiza pedradas”.

Quase me entalei. Porém, lembrei-me da fúria que neo-fundamentalistas-puritanos mostraram quando abriram fogo contra mim; nada mais me assusta. Sei que os ultra-calvinistas, os donos da melhor teologia, os autênticos interpretes das Escrituras, me tratam como a bola que precisa ser encaçapada; sei que os teólogos da melhor cepa, os professores de seminário, me ridicularizam em classe; sei que os xerifes da reta doutrina já fizeram até programa de rádio para me desmerecerem. Já não me aterrorizo com suas investiduras.

Alguns me tratam como um mal resolvido, amargurado com Deus e com o mundo. Outros me julgam um feixe de contradições, amarrado com barbantes comunistas. São tantas fofocas, que recebi um e-mail questionando se eu aderira ao “ateísmo aberto” – precisei responder que, obviamente, ainda não me considero um ateu.

Há algum tempo, eu pregava na Comunidade de um amigo nos Estados Unidos e recebi um convite para falar noutra igreja. Horas antes do compromisso, o pastor encarregado por aquele culto me telefonou para cobrar “explicações”, porque fora informado de “gravíssimas acusações” contra mim. Ele estava com medo de me receber em sua comunidade; contou, inclusive, que um grupo prometera repetir o piquete na porta da igreja como fizeram no Ceará.

O rescaldo de todo esse infame patrulhamento me dá vontade de rir; mas também me empurra para longe do “mundinho gospel” com sua lógica tosca, com sua intolerância soberba e com seu messianismo ufanista. Ainda hoje, um pastor amigo disse que usou uma citação minha em um sermão e notou que o auditório arregalou os olhos. Quando terminou, perguntaram-lhe se não sabia que eu não devo ser mencionado - sou tão mal visto que estrago a argumentação.

Reajo a tudo isso, dizendo que não devo satisfações senão à minha consciência, às Escrituras e à minha comunidade, onde ministro todos os fins-de-semana. Cheguei à idade que já não espero o olhar de aprovação dos zelosos reverendos denominacionais – aliás, nunca esperei, por isso, quando recebi o batismo no Espírito Santo, fui expulso da igreja Presbiteriana.

Hoje batizamos mais de cinqüenta pessoas, a maioria jovem. Empolguei-me com o brilho de seus olhos. Algo me dizia que essa turma quer servir a Deus sem os ranços de uma religião que cheira a mofo. Notei que os pais também celebravam, ao meu lado, a profissão de fé que seus filhos faziam.

Tem hora que desejo afastar-me de tudo – penso em seguir o exemplo de líderes que não suportaram o jugo dos doutores da lei e tomaram outras estradas. Já pensei em decretar o meu próprio exílio, minha saída radical desse ambiente pequeno que só fatiga, mas contemplo a próxima geração e cobro de mim mesmo: “Continue, por Jesus e por eles!”.

É isso...

Soli Deo Gloria.

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Espiritualidade do outro lado da cerca religiosa.

Ricardo Gondim.

Vinicius de Moraes é um dos poetas mais sensíveis da língua portuguesa. Seus textos pulsam com sentimentos; sua pena verte lágrimas; seu amor se derrama intenso, sofrido, infinito, eterno.

Em vários poemas o Poetinha deixa vazar a sede de sua alma por Deus e não esconde angústias existenciais irresolutas. O poeta carregava um buraco no coração e intuía, corretamente, ser impotente para preenchê-lo.

Em “O Desespero da Piedade”, Vinicius suplica a infinita piedade de Deus para gente de todo tipo: de vendedor de passarinho, a sapateiros; de dentista, às mulheres no primeiro coito; mas termina pedindo que O Senhor se apiede dele:

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humildes – sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

Vinicius sentia que Alguém o seguia; havia um olhar perseguidor que o acompanhava e que ele não conseguia distinguir ao certo quem era. Em “Imitação de Rilke”, poetizou:

Alguém que me espia do fundo da noite
Com olhos imóveis brilhando na noite
Me quer.

Alguém que me espia do fundo da noite
(Mulher que me ama, perdida na noite?)
Me chama.

Alguém que me espia do fundo da noite
(És tu, Poesia, velando na noite?)
Me quer.

Alguém que me espia do fundo da noite
(Também chega a Morte dos ermos da noite...)
Quem é?

Vinicius percebeu que nascemos para uma existência diferente(Cristo chamava de “vida abundante”) e sabia que não nos resumimos a um saco de moléculas que funciona direitinho. Em “Poema do Natal”, ele encarna o Eclesiastes:

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação na poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos imensamente.

Vinicius fez poesia até sobre a “Transfiguração da Montanha”. O poema é longo e, lá pelo meio, entre belíssimos versos, diz:

A alma do homem é como o amor morto
Onde todas as coisas bóiam à superfície
Ai! O tempo em que a alma do homem era oceano
O grande oceano que guarda pérolas e possui vegetações esquisitas
E onde a luz bóia à superfície!
Mas o mundo mudou
Ele foi esquecido
A transfiguração foi esquecida
Os homens só se lembraram Dele
Ou para ofendê-lo enquanto viviam
Ou para temê-lo covardemente na hora da morte.

Vinicius conclui o poema sobre o encontro do Filho com o Pai no cume do monte e afirma:

Tu estás lá
E tu estás em todos os lugares
E ouço a tua voz na música do mundo
E sinto a tua mão na plástica das coisas
Tu és o ponto de partida
Tu és o caminho
E és o fim do caminho
És o cardo que fere os pés
E a grama macia que os repousa
E a grande tempestade de vendo
E o ar parado que sereniza.
És o pranto dos olhos
E o riso da boca
És o sofrimento do mundo
Numa promessa de eterna felicidade
És Deus
Deus que vê todas as coisas e a todas dá remédio
E que é o único perdão:
Amém.

Eis um desafio interessante para os cristãos amantes da poesia: pesquisar na vasta obra de Vinicius de Moraes sinais da espiritualidade cristã.

Soli Deo Gloria.