terça-feira, 31 de março de 2009

A Época de Calvino

Laurence M. Vance - O Outro Lado do Calvinismo
A Época de Calvino
Calvino viveu, como Agostinho, durante um período único da história da igreja. A Reforma, que oficialmente começou com Martinho Lutero, na Alemanha, estava começando a contagiar o resto da Europa. Isto é especialmente verdadeiro por causa da união entre a Igreja e o Estado que ainda existia nesta época. Na França natal de Calvino, os escritos do reformador alemão foram declarados heréticos em 1521.[1] Durante os reinos de Francis I (1515-47) e seu filho Henry II (1547-49), os acusados de “Luteranismo” eram severamente perseguidos, alguns até a morte.[2] As primeiras igrejas protestantes não estavam oficialmente organizadas até 1555,[3] e não foi até o Edito de Nantes em 1598 que a tolerância foi estendida.[4] E como agora veremos, o próprio Calvino teria que deixar a terra onde nasceu para evitar a perseguição.

As autoridades católicas romanas na Alemanha não gostaram muito da difusão do Luteranismo na terra natal de Lutero. Após a Dieta de Worms em 1521, um edito foi assinado pelo Sacro Imperador Romano, Charles V (1500-1558), que não somente denunciava Lutero e seus seguidores, mas também autorizava que os livros luteranos fossem queimados.[5] Mas porque o império alemão era nesta época uma confederação livre de sete eleitorados, pequenos principados, e cidades livres, foi difícil forçar o Edito de Worms, pois a questão de religião estava em grande medida dependente das autoridades civis em cada área.[6] Esta dificuldade, unida a um enorme aumento na publicação de literatura, incluindo o Novo Testamento alemão de Lutero em 1522, levou à divisão da Alemanha em dois campos separados – católico e protestante.

O conflito na Alemanha foi temporariamente acalmado com a Dieta de Speyer em 1526. Lá os governantes protestantes foram capazes de obter uma abstenção temporária do Edito de Worms. O Comitê de Governantes apontado pela Dieta propôs que um conselho geral devesse ser reunido para resolver a questão da religião, mas até esta época, “todo Estado assim existirá, governará, e crerá enquanto ele possa esperar e confiar responder diante de Deus e sua imperial Majestade.”[7] Os protestantes interpretaram esta decisão como dando a eles o direito legal para praticar sua religião sem ser molestado. O Luteranismo prosperou, e quase todos da Alemanha do Norte se tornaram protestantes dentro de três anos.[8] Deve ser lembrado, entretanto, que a idéia Igreja-Estado ainda estava impregnada nas mentes das pessoas. Tolerância religiosa não é liberdade religiosa. As autoridades civis decidiram a religião de seus territórios, e os protestantes foram às vezes tão intolerantes quanto os católicos.[9]

Na Segunda Dieta de Speyer, reunida em 1529, a tolerância religiosa que emanou da Dieta de 1526 foi rescindida. Os luteranos por sua vez publicaram um protesto oficial em 25 de abril, e foi deste documento que o nome protestante foi adotado, primeiro aos luteranos, e depois a todos que se opunham à Igreja Católica.[10] Em 1530 uma outra Dieta se reuniu em Augsburg[11] para fazer planos para a guerra contra os turcos. Mas temendo que um império dividido não pudesse repeli-los com sucesso, foi proposto primeiro resolver as diferenças religiosas que dividiam a Alemanha. Os luteranos, em 25 de junho, apresentaram uma “declaração de seus descontentamentos e opiniões relativos à fé.”[12] Escrito por Melanchthon, a Confissão de Augsburg, como a declaração veio a ser chamada, ainda é aceita pelos luteranos hoje. Depois da Dieta de Augsburg, em que o imperador deu aos protestantes até 15 de abril de 1531, para ser submetida, os protestantes formaram a Liga Schmalkald (em Schmalkalden) para se defender.[13] A guerra foi evitada, entretanto, na Dieta de Nuremberg em 1532, quando os protestantes conseguiram uma “trégua.”[14] Mas após a morte de Lutero em 1545, o imperador invadiu a Alemanha com suas tropas espanholas católicas com conseqüências desastrosas para os protestantes. O imperador então editou o que é conhecido como o Ínterim de Augsburg, um documento incerto destinado a apaziguar os protestantes, mas que as pessoas não pudessem ser coagidas a aceitar.[15] A paz religiosa não foi finalmente concluída até a Paz de Augsburg em 1555.

Embora Huldreich Zwínglio seja conhecido como o primeiro reformador suíço, a Reforma na Suíça não foi diretamente dependente dele como a Reforma alemã foi de Lutero. Isto é evidente pelos nomes que os próprios crentes na Alemanha e na Suíça foram chamados. Os luteranos, obviamente, foram assim chamados por causa de Lutero, mas os cristãos na Suíça, visto que eles foram mais “reformados” do que os luteranos, vieram a ser referidos como reformados.[16] E embora ambos os ramos da Reforma foram unânimes em sua posição contra as doutrinas e tirania de Roma, foi a tentativa da Suíça de reformar o culto e os princípios morais da Igreja que originou o humanismo da Renascença.[17] Todavia, antes da Reforma do século dezesseis, a Suíça desempenhou um papel pequeno na história da Europa comparado com o que iria tornar público depois que Zwínglio iniciou seu ministério em Zurique em 1519.

Na época da Reforma, a Suíça era uma confederação de treze distritos e algumas cidades livres como Genebra. Os suíços tinham com sucesso mantido sua independência desde a união dos três distritos originais de língua alemã em 1291. Como o resto da Europa, entretanto, a Suíça estava sujeita ao Papa, e somente o Catolicismo Romano era tolerado. E como o resto da Europa, o sacerdócio era corrupto, com excessiva imoralidade entre os sacerdotes.[18] Mas sinais de reforma estavam evidentes nos distritos de língua alemã, mais notavelmente na cidade de Basel, onde a universidade se tornou um centro de ensino e a gráfica o meio para sua disseminação.[19] A Reforma, entretanto, não foi inaugurada em Basel, devia proceder de Zurique, a terra de Huldreich Zwínglio.

Zwínglio nasceu em Wildhaus, no alto dos Alpes suíços, em 1º de janeiro de 1484. Como a maioria das crianças na época, ele foi um membro de uma grande família católica. Depois de se sobressair em seus primeiros estudos de latim, o jovem Zwínglio entrou na Universidade de Viena em 1498. Em 1502 ele se matriculou na Universidade de Basel, obtendo duas graduações enquanto lecionava latim em uma outra escola.[20] Foi ordenado sacerdote em 1506 e assumiu seu primeiro ofício em Glarus, sudeste de Zurique.[21] Zwínglio permaneceu em Glarus por dez anos, durante este tempo ele também serviu como capelão para um contingente de soldados suíços.[22] Ele foi, por volta desta época, um músico completo, um estudioso clássico, um patriota suíco, e um sacerdote romano.[23] Ele então começou a estudar grego para que pudesse estudar o Novo Testamento.[24] Ele também trocou correspondência com Erasmo e mais tarde o visitou em Basel.[25]

Em 1516 Zwínglio mudou de Glarus para perto de Einsiedeln. Aqui ele lia extensivamente as obras de Erasmo e começou a pregar contra os abusos da Igreja Católica.[26] Ele mais tarde escreveu deste período:

Comecei a pregar o evangelho antes que qualquer um em minha localidade tivesse sequer ouvido o nome de Lutero: pois eu nunca deixei o púlpito sem levar as palavras do evangelho conforme usadas na missa do dia e as expondo por meio das Escrituras; embora inicialmente eu contei muito com os Pais como expositores e intérpretes.[27]

Após dois anos em Einsiedeln, notícias do talento de Zwínglio se espalharam e ele foi chamado a Zurique. Aqui ele chocou seus paroquianos ao pregar direto dos livros do Novo Testamento.[28] E embora não oficialmente rompendo com Roma, Zwínglio pregou contra as indulgências e os jejuns quaresmais.[29] Em 10 de outubro de 1522, ele abandonou o sacerdócio e se tornou um pregador empregado pela cidade.[30] Uma série de disputas públicas foram então realizadas em que Zwínglio insistia na supremacia da Escritura e atacou a Missa como “uma tarefa blasfema.”[31] A Missa logo foi abolida e a Santa Ceia foi celebrada em seu lugar.

É a interpretação de Zwínglio da Santa Ceia que o distingue de Lutero. Zwínglio cria, e com razão, que a Santa Ceia era um memorial e que os elementos meramente representavam o corpo e o sangue de Cristo. Lutero, por outro lado, cria na presença de Cristo nos elementos, embora ele rejeitou a doutrina católica da transubstanciação. A controvérsia entre Lutero e Zwínglio culminou na Convenção de Marburg em 1529. Aqui os dois reformadores se encontraram pela primeira e única vez. E embora eles tenham concordado em quatorze dos quinze artigos que foram redigidos, eles não chegaram a um consenso sobre a questão da Comunhão.[32]

A Reforma na Suíça se espalhou rapidamente por todos os outros distritos, mais notavelmente em Basel sob John Ecolampádio (1482-1531).[33] Por volta de 1530 foi firmemente estabelecida nas cidades da Suíça.[34] Entretanto, a guerra irrompeu entre os distritos protestantes e católicos. Então, após um breve período de paz, eles começaram a lutar novamente. Desta vez, entretanto, Zwínglio foi tragicamente morto em batalha no dia 11 de outubro de 1531. Seu sucessor em Zurique foi Heinrich Bullinger, que pregou lá até sua morte em 1575. Bullinger foi um hábil substituto, não somente mantendo correspondência com Calvino, Melanchthon, Bucer, e Beza, mas também tendo parte na Primeira Confissão Helvética (1536) e sendo o autor da Segunda Confissão Helvética (1566).[35]

Embora os movimentos de reforma na Alemanha e nos distritos alemães da Suíça diferiam quanto à sua causa, líderes, e práticas, há uma coisa que ambos concordavam: aqueles que divergiam deles não deviam ser tolerados. Isto incluía não somente os católicos, mas aquele nobre grupo de “heréticos” que pensavam que os reformadores não iam longe o suficiente. Zwínglio os chamou de Wiedertäufer (anabatistas). Na Zurique de Zwínglio eles foram ordenados para que suas crianças fossem batizadas.[36] O rebatismo era considerado um crime que devia ser punido com a morte.[37] Em 5 de janeiro de 1527, Felix Manz foi amarrado e atirado no rio pelas autoridades de Zurique porque ele “se envolveu com o Anabatismo.”[38] As execuções e os banimentos seguiam nos outros distritos suíços também.[39] Na Alemanha eles aconteceram de maneira igual. Eles eram perseguidos tanto pelos católicos quanto pelos protestantes. A supracitada Segunda Dieta de Speyer em 1529 decretou que “todos os anabatistas, homem ou mulher, de idade madura, será posto à morte, pelo fogo, ou pela espada, ou de outra forma, de acordo com a pessoa, sem que haja julgamento.”[40] O problema que Lutero tinha com os batistas não era porque eles imergiam (o próprio Lutero um vez reconheceu a imersão como bíblica e até imergiu seu próprio filho[41]), mas porque eles rebatizavam. Os luteranos e os reformados praticaram intolerância entre si. Era uma época de mudança e controvérsia, e Calvino iria estar bem no meio das duas.

[1] John T. McNeil, The History and Character of Calvinism, ed. Brochure (Londres: Oxford University Press, 1966), p. 239.
[2] Ibid., p. 243.
[3] Ibid., p. 245.
[4] Ibid., p. 245.
[5] Schaff, History, vol. 7, p. 319.
[6] Ibid., pp. 320-321.
[7] Ibid., p. 684.
[8] Lindsay, vol. 1, p. 344.
[9] Schaff, History, vol. 7, p. 686.
[10] Alister E. McGrath, Reformation Thought, 2a. ed. (Grand Rapids: Baker, 1993), p. 6.
[11] Hence, Augsburg Publishing House, agora Augsburg Fortress Publishers.
[12] Lindsay, vol. 1, p. 363.
[13] Ibid., p. 373.
[14] Ibid., pp. 374-375.
[15] Ibid., pp. 390-391.
[16] Leith, p. 34.
[17] McGrath, Reformation Thought, pp. 8, 61.
[18] Schaff, History, vol. 8, p. 6.
[19] Ibid., p. 7.
[20] McNeil, p. 22.
[21] Ibid., p. 23.
[22] Estep, p. 164.
[23] Schaff, History, vol. 8, pp. 23-25.
[24] Ibid., p. 24.
[25] Ibid., p. 25.
[26] Estep, pp. 165-166.
[27] Huldreich Zwínglio, citado em Estep, p. 166.
[28] George, p. 113.
[29] Schaff, History, vol. 8, pp. 42-43, 47.
[30] George, p. 114.
[31] Huldreich Zwínglio, citado em George, p. 118.
[32] Estep, p. 190.
[33] Schaff, History, vol. 8, p. 108.
[34] Ibid., p. 165.
[35] Ibid., pp. 208, 219-221.
[36] Schaff, History, vol. 8, p. 108.
[37] Estep, p. 186.
[38] Citado em Estep, p. 186.
[39] Schaff, vol. 8, p. 83.
[40] Citado em Armitage, vol. 1, p. 402.
[41] Estep, pp. 130, 158, 184-185.

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