quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

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Deus habita na impureza


por Jefferson Ramalho
Confio na Graça, não consigo não confiar na Graça, não é possível viver sem confiar na Graça! Minhas impurezas, meus pecados, meus maus desejos e sentimentos, minhas perversidades, minha arrogância, minha maldita ansiedade, meu materialismo, meus interesses e toda sorte de malignidade que me habita, me condenam e me fazem depender o tempo todo da Graça de Deus, em Jesus. Só em Jesus! Tudo por Jesus! Nada sem Jesus, e, suficientemente em Jesus.
Estou ouvindo algumas canções do grande amigo Stênio Marcius. Faz meses que não nos vemos. Mas sempre que o ouço, parece que nos vimos há poucos minutos. Costumo dizer para mim mesmo que se Deus toca algum instrumento de cordas, o nome desse instrumento é Stênio Marcius. E o que mais me constrange é que ao ouvir suas canções, minha alma parece ser lançada a um mar de Graça. Nas palavras de cada letra que o Stênio compõe, percebo que sem Cristo eu nada posso fazer. A Bíblia tinha razão!
Para mim, a Mensagem de Deus está no cânon, mas o cânon foi feito sagrado. Não que ele, por si só, o seja. A Mensagem do Evangelho está ali e é capaz de me causar paz e desespero, ao mesmo tempo. Paz, porque tranqüiliza a minha alma fazendo-me perceber que se eu me esconder no abrigo do Altíssimo, poderei descansar tranqüilamente.
Ora, e o desespero? O Evangelho me desespera, também. Porque, apesar da clareza da Graça impressa nas páginas do cânon, percebo que minha sujeira existencial consegue se esconder de tudo e de todos, mas não do olhar dAquele que é. Você sabe quem eu sou? Por onde passei nessa semana? Se eu fui aos lugares mais santos ou aos mais promíscuos? Não sabe e nem saberá. Mas Ele, antes que eu pensasse em ir a algum desses lugares, já sabia que pra lá eu iria.
Que Deus é este que sabe que vamos em direção à perdição e não nos livra? Mas que também sabe que vamos aos lugares supostamente sagrados e nos envergonha com sua Santidade diante de nossa imundície? A minha vida é dEle. Só pode ser dEle. Se fosse minha, nem em lugar sagrado eu pisaria. Freqüentaria apenas os lugares que proporcionariam satisfação e prazer ao meu corpo. Só que a minha vida é dEle. Por causa disso, não vou aos lugares, mas a estes sou levado. Levado aos lugares supostamente santos para ser constrangido. Levado aos lugares impuros para ser identificado com minha própria condição.
Meu amigo Carlos Bregantim disse certa vez: “não há mais lugar!” Exatamente! O cristianismo autêntico – não o da história que só nos desvia e nos distancia de Deus – mas o do Evangelho, não tem forma, não tem lugar, não tem dia sagrado, não cabe num pacote, não cabe num livro de Teologia Sistemática, não pode ser transformado ou resolvido em/ou através de Códigos, Confissões de fé, Catecismos, de nada disso. Nós até gostamos dessas coisas e com elas aprendemos o máximo que conseguem nos ensinar.
Mas elas não passam de fôrmas, apesar dos bolos deliciosos que muitas vezes assam! Mas dessas fôrmas também saem bolos ruins. Bons ou ruins, o fato é que dessas fôrmas saem apenas bolos, não o Evangelho. O Evangelho não cabe numa fôrma nem é uma receitinha de bolo. É o Cristo!
Santo Tomás de Aquino, autor da Suma Teológica, que é sem dúvida a mãe de todos os pacotes doutrinários e teologias sistemáticas, com toda erudição, superioridade e incomparabilidade se colocado ao lado de todos os teólogos de toda a História – inclusive Santo Agostinho – concluiu que: “tudo o que havia escrito sobre Cristo lhe parecia palha!”
Portanto, não há mais lugar. Na verdade, nunca houve. E quando houve, a arrogância e a confiança na justiça própria tomaram conta do lugar que deveria pertencer à Graça. Que lugar é esse? O coração humano. Nele cabe arrogância, nele cabem sentimentos de justiça própria, nele cabe a ingenuidade de que pelas obras somos salvos, nele cabe a inocência de que os rituais conseguem simbolizar a reverência diante dAquele que não pode ser reverenciado de outra maneira senão através de um silêncio constrangido do ser.
Não há tempo nem espaço que Ele possa ocupar ou habitar. Não existe Casa de Deus, mas casa de Deus, isto é, nossas almas perversas. Deus não habita templos feitos por mãos humanas, onde a santidade apenas parece existir. Isso não seria Graça.
Mas Deus habita em corpos perversos, pecadores, imundos, desejosos do pecado e da perdição. Isso é Graça! Deus habitar em lugares sujos, sendo Ele quem é! Os templos, os rituais, as liturgias, as representações humanas do Sagrado, não passam de representações. Eu diria ironicamente que essas coisas são santas demais para Deus habitar. Ele, ao contrário, por Ser Santo, só habita no que não é santo. Assim, sua Graça transformada em Sangue, purifica as impurezas das paredes e móveis dessa habitação. Os lugares santos não precisam de Deus lhes habitando!
É por isso que o dr. Milton Schwantes, incontestavelmente o principal teólogo brasileiro vivo, diz: “A Bíblia, graças a Deus, está cheia de homens safados”. Quem não concorda com esta afirmação, não entendeu o Evangelho. E ele complementa: “Graças a Deus, pois assim percebemos que os homens da Bíblia são exatamente como você e eu!”
E foi entre esses safados que Deus resolveu habitar, na Encarnação. E só teve problemas quando se viu diante dos “santos”, dos “religiosos”, “dos preocupados com rituais e liturgias”, “dos guardiões e protetores da sã doutrina”. Deus é o santo que resolveu habitar na impureza para fazer da impureza, santidade e, para mostrar, que aquilo que se chama “santidade” é o que de fato é impuro e ofensivo ao Seu Nome.
na Graça,
Jefferson
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Quarenta livros que fizeram a cabeça dos evangélicos brasileiros nos últimos quarenta anos

Ricardo Quadros Gouvêa

Toda lista é pessoal, e esta não é uma exceção, mas busquei seguir aqui critérios objetivos: livros que foram campeões de vendagem, citados e debatidos, que influenciaram e continuam influenciando os evangélicos brasileiros, livros muito lidos com alto índice de rejeição, e também os que hoje estão operando uma mudança paradigmática na cultura evangélica contemporânea. Escolhi no máximo um livro por autor e procurei incluir alguma diversidade cultural e de gênero literário, bem como denominacional e teológica, sem que isso nos tirasse do projeto original: listar os quarenta livros que, nos últimos quarenta anos, fizeram a cabeça do povo evangélico brasileiro. Ordenei a lista por ordem de importância: dos livros mais influentes aos menos influentes dentre os quarenta selecionados, independentemente da data. Divirta-se concordando ou discordando, corrigindo meus equívocos e fazendo sua própria lista.

1. “Mananciais no Deserto” -- Lettie Cowman [Betânia]Não há outro livro mais amado pelos evangélicos brasileiros. Este campeão de vendagem é um livro de leituras devocionais diárias que conquistou nosso país. O livro é, de fato, bom, mas desconfio que a tradução deu uma mãozinha.

2. “Uma Igreja com Propósitos” -- Rick Warren [Vida]O maior “best-seller” evangélico de todos os tempos é uma catástrofe literária. É ainda difícil calcular o dano que esta obra equivocada causou e ainda irá causar, com sua filosofia de ministério inteiramente vendida ao “Zeitgeist”, propondo a homogeneização das igrejas e um pragmatismo de dar medo.

3. “A Quarta Dimensão” -- David Paul Yonggi Cho [Vida]Este livro fez mais pelo movimento pentecostal no Brasil do que qualquer televangelista. O testemunho bem escrito do pastor coreano que vive cercado de milagres causou “frisson” até mesmo nos grupos mais conservadores. Seu modo de ver a vida com Deus e o ministério marcaram as últimas décadas.

4. “A Agonia do Grande Planeta Terra” -- Hall Lindsay [Mundo Cristão]Calcado no pré-milenismo dispensacionalista de Scofield, este “best-seller” apocalíptico empolgou os profetas do fim do mundo no Brasil, com sua interpretação literalista imprudente e seu patriotismo norte-americano acrítico. Lindsay foi o arauto de três décadas das mais absurdas especulações escatológicas em nossas igrejas.

5. “O Ato Conjugal” -- Tim e Beverly La Haye [Betânia]Sexo é um assunto importante, e o povo ansiava por uma orientação em face da revolução sexual dos anos 60. Daí o sucesso de um livro bem escrito como este, didático e conservador, ao gosto da moral evangélica, mas sem ser inteiramente obtuso. Mesmo assim, muitos o chamaram de pornográfico. Nada mais injusto.

6. “Este Mundo Tenebroso” -- Frank Peretti [Vida]A ficção convence mais rápido. Revoluções acontecem inspiradas por romances, e não por tratados filosóficos. Peretti, com seu horror cristão, nos ensinou o significado da batalha espiritual nos anos 80, reencantou o submundo evangélico, inspirou pregadores e, o que não é nada ruim, motivou muitos adolescentes a ler obras de ficção bem melhores.

7. “A Morte da Razão” -- Francis Schaeffer [ABU]A intelectualidade evangélica adotou este livro como alicerce nos anos 70, para enfrentar o existencialismo, o movimento “hippie”, o marxismo e a contracultura em geral. O livro convencia que o cristianismo não era incompatível com o estudo e a reflexão. É um pena que Schaeffer estivesse tão equivocado em suas idéias centrais.

8. “Celebração da Disciplina” -- Richard J. Foster [Vida]Este clássico da espiritualidade cristã, escrito por um quacre, fez um tremendo sucesso no Brasil a partir dos anos 80. É excelente, mas será que todos que o compraram de fato o leram? Gostaria de perceber uma maior influência das idéias de Foster em nosso povo, mais oração, silêncio, calma, estudo, empenho, enfim, disciplina espiritual.

9. “De Dentro para Fora” -- Larry Crabb [Betânia]Os livros devocionais evangélicos de viés psicológico ou de auto-ajuda são os títulos que mais vendem. Dentre eles, alguns se destacam não só por serem campeões de vendagem, mas porque são os melhores do gênero. Crabb é o melhor autor do gênero e este é seu melhor livro, que impactou o nosso povo nos anos 90.

10. “Louvor que Liberta” -- Merlin R. Carothers [Betânia]Este pequeno e poderoso manifesto em forma de testemunho revolucionou, nos anos 70, o louvor e a adoração no Brasil. O bom capelão ensinou a todos nós a espiritualidade da adoração, o poder do louvor, impulsionando as guerras litúrgicas que marcariam a vida de nossas comunidades a partir de então.

11. “Vivendo sem Máscaras” -- Charles Swindoll [Betânia]Outro “best-seller” devocional dos anos 90, de viés psicológico e de auto-ajuda, com o vigor característico das obras de Swindoll, escritas a partir de suas pregações. Muitos se sentiram não apenas edificados, mas tocados e transformados.

12. “A Cruz e o Punhal” -- David Wilkerson [Betânia]Outro opúsculo dos anos 70 que, na forma de um testemunho pessoal, inspirou os jovens evangélicos a uma fé mais comprometida. Curiosamente, não levou as igrejas a um investimento em missões urbanas, idéia que permeia todo o livro. Talvez o Brasil evangélico dos anos 70 não estivesse pronto para missões urbanas.

13. “Crer é Também Pensar” -- John Stott [ABU]Stott é um ícone no Brasil, um nome respeitado pela sua erudição e sua notável produção literária, apesar de estar invariavelmente sob suspeita de heresia pelos mais neuróticos. O fato é que a qualidade de seus livros varia. Seu excelente “Ouça o Espírito, Ouça o Mundo” merece mais atenção. Já o opúsculo selecionado, tão conhecido desde os anos 70, não tem muito a dizer além do título.

14. “O Senhor do Impossível” -- Lloyd John Ogilvie [Vida]Outro devocional que emplacou no Brasil nos anos 80, não sem méritos. É o maior sucesso do autor, ainda que inferior a “Quando Deus Pensou em Você”, que o antecedeu. O livro estimula a fé e nos faz mais esperançosos, apesar da teologia rasa.

15. “A Família do Cristão” -- Larry Christenson [Betânia]Antes de Dobson e tantos outros, Christenson já era “best-seller” nos anos 70. Pioneiro entre os que se pretendem auxiliares da vida familiar cristã, ele foi estudado nos lares por grupos e células, em escolas dominicais etc. Sua eficácia é comprovada.

16. “O Jesus que Eu Nunca Conheci” -- Philip Yancey [Vida]Os anos 90 assistiram ao aparecimento de um dos mais argutos e estimulantes autores evangélicos de todos os tempos: o audaz Yancey, que começou a apontar para o paradigma emergente em livros como “Alma Sobrevivente”, “Descobrindo Deus nos Lugares mais Inesperados”, “Maravilhosa Graça”, “Rumores de Outro Mundo”, “Decepcionado com Deus” e tantos outros livros excelentes. E o mais conhecido e lido parece ser mesmo “O Jesus que Eu Nunca Conheci”.

17. “O Discípulo” -- Juan Carlos Ortiz [Betânia]Poucos livros foram tão impactantes nos anos 70 quanto esta obra que, excepcionalmente, não vinha do mundo anglo-saxão, mas da Argentina. Por isso mesmo, Ortiz tinha uma outra linguagem, um discurso que convencia os jovens brasileiros da seriedade e do valor de se tornar mais do que um mero freqüentador de igrejas, um genuíno discípulo de Cristo.

18. “Bom Dia, Espírito Santo” -- Benny Hinn [Bompastor]O neopentecostalismo brasileiro é, em grande parte, de inspiração norte-americana. Talvez o nome mais importante nesse processo seja o do “showman” evangélico Benny Hinn, que desde os anos 90 assombra os norte-americanos pela televisão com seus feitos espetaculares. Mesmo quem não o leu conhece sua influência no Brasil.

19. “O Refúgio Secreto” -- Corrie Ten Boom [Betânia]O testemunho desta nobre senhora holandesa encantou também o Brasil, onde seu livro foi um grande sucesso nos anos 70. Suas aventuras durante a Segunda Guerra Mundial, sob o pano de fundo de sua educação em um lar cristão, são comoventes e inspiradoras.

20. “A Autoridade do Crente” -- Kenneth Hagin [Infinita]Hagin foi um divisor de águas no mundo evangélico, pois desde sua influência os crentes “tomam posse”, “determinam”, “amarram” e “exigem”. Uma nova forma de falar se fez presente, o que gerou muitas novas piadas também.

21. “Entendes o que Lês?” -- Fee e Stuart [Vida Nova]Que bom que um livro sério como este foi tão lido e estudado no Brasil. Trata-se de um compêndio de hermenêutica bíblica sem complicações, em linguagem acessível, adotado por quase todos os seminários e estudado até mesmo nas EBD’s e pequenos grupos. Este livro fez muito pela educação bíblica dos evangélicos brasileiros.

22. “Culpa e Graça” -- Paul Tournier [ABU]Não há, com raras exceções, psicólogo cristão que não considere este livro um fundamento e um marco do pensamento cristão. Mas ele não se limita a isso, tendo tido considerável influência na teologia evangélica brasileira nos anos 90, preparando nosso povo para o paradigma emergente do século 21.

23. “Novos Líderes para Uma Nova Realidade” -- Caio Fábio D’Araújo Filho [Vinde]Este opúsculo foi, se não o mais lido, certamente o mais importante dos numerosos livrinhos do pastor Caio Fábio, fenômeno de popularidade no Brasil nos anos 80 e 90, pastor midiático, influente, contundente, imitado, adorado e odiado. Caio nos ensinou a ver as coisas de outro jeito, e seu legado não vai desaparecer.

24. “Vida Cristã Normal” (ou “Equilibrada”, na reedição) -- Watchman Nee [Editora dos Clássicos]O controverso evangelista e autor chinês Nee teve muita influência nos anos 70 e 80, com sua visão mística do que significa ser um cristão evangélico conservador. Este livro foi seu maior sucesso, um comentário de Romanos, ainda que seu livro mais objetivo e claro seja “A Liberação do Espírito”.

25. “É Proibido” -- Ricardo Gondim [Mundo Cristão]Gondim é um dos melhores e mais polêmicos autores evangélicos contemporâneos. Seus livros, como Eu Creio, Mas Tenho Dúvidas, O que os Evangélicos (Não) Falam, Orgulho de Ser Evangélico, são sempre interessantes. Nenhum, porém, foi tão influente e marcante como “É Proibido”, um verdadeiro libelo anti-legalista.

26. “Conselheiro Capaz” -- Jay Adams [Fiel]Adams era uma pessoa muito simpática. Sua escola de aconselhamento cristão é muito antipática. Diferentemente de Crabb, por exemplo, problemas emocionais têm origem fisiológica ou pecaminosa. Por isso, é preciso confrontar as pessoas e insistir na mudança do seu comportamento. Foi um sucesso nos anos 80. Haja behaviorismo!

27. “Quebrando Paradigmas” -- Ed René Kivitz [Abba Press]Este livro foi decisivo para que os evangélicos brasileiros começassem a enxergar a outra margem do rio, a margem pós-evangélica do paradigma emergente. Kivitz é um autor surpreendente e notável, de mente dinâmica e arejada, que propõe importantes rupturas e renovações, como em seu outro livro “Outra Espiritualidade”.

28. “O Amor Tem Que Ser Firme” -- James Dobson [Mundo Cristão]O conhecido “Dr. Dobson” é pensador e autor de grandes qualidades e grandes defeitos. Seus livros, como “Educando Crianças Geniosas”, ajudam famílias e promovem uma espécie de teologia aplicada que merece atenção. Há, porém, muito que não se deveria levar a sério, já que vai contra o que há de mais consagrado na psicologia moderna.

29. “Supercrentes” -- Paulo Romeiro [Mundo Cristão]O autor de “A Crise Evangélica” tem talento e tem algo a dizer. Seus textos, especialmente o famosos “Supercrentes”, têm apontado para os exageros e enganos de muitas posturas comuns no meio evangélico contemporâneo.

30. “Cristianismo e Política” -- Robinson Cavalcanti [Ultimato]Trata-se de um clássico. Este livro está nas origens de toda reflexão política evangélica. Robinson é importante por outras questões, como seus livros sobre sexualidade (“Uma Bênção Chamada Sexo”, “Sexualidade e Libertação”), mas sua contribuição permanente é o estímulo que deu à reflexão política evangélica.

31. “O Evangelho Maltrapilho” -- Brennan Manning [Mundo Cristão]Não há outro autor mais importante no meio evangélico nos últimos dez anos do que Brennan Manning. Seus livros devocionais, como “O Impostor que Vive em Mim”, “A Assinatura de Jesus”, “O Obstinado Amor de Deus”, estão transformando radicalmente a maneira como os evangélicos entendem a vida cristã. Eu fico muito grato.

32. “O Pastor Desnecessário” -- Eugene Peterson [Mundo Cristão]Peterson é muito estimado no meio evangélico brasileiro e um dos autores mais bem avaliados dos últimos tempos. Responsável por projetos como “The Message” (excelente paráfrase bíblica), tem nos galardoado com obras como “Corra com os Cavalos”, “A Oração que Deus Ouve”, “A Vocação Espiritual do Pastor”, “Transpondo Muralhas”, entre outros. Selecionei o que talvez seja o mais importante.

33. “Poder Através da Oração” -- E. M. Bounds [Batista Regular]Nos anos 70, quando não havia ainda bons livros sobre oração, como o de Richard Foster ou o de Eugene Peterson, os livros de Bounds sobre oração circulavam de mão em mão, trazendo avivamento às igrejas. Hoje Bounds está quase esquecido. Quase.

34. “Cristo é o Senhor” -- Dionísio Pape [ABU]No fim dos anos 60 e começo dos anos 70, o nome de Pape se destacava pela espiritualidade, profundidade e sucesso ministerial. Seu opúsculo “Cristo é o Senhor” levou muitos à consagração e ao ministério.

35. “O Caminho do Coração” -- Ricardo Barbosa [Encontro]Barbosa (junto com Osmar Ludovico, James Houston e outros) é responsável pelo retorno ao interesse pela mística cristã em nosso país. Seus livros nos ensinam uma outra atitude não somente em relação à vida, mas também em relação à teologia. Uma atitude contemplativa.

36. “O Novo Testamento Interpretado” -- R. N. Champlin [Hagnos]Não privilegiei obras teológicas e comentários bíblicos nesta lista porque tais livros, em geral, não vendem bem e sua influência é pequena. Uma exceção precisava ser feita em relação ao favorito das bibliotecas. O empenho exaustivo de Champlin precisava ser lembrado, pois ainda vende bem e é o comentário primordial dos evangélicos.

37. “Icabode” -- Rubem Martins Amorese [Ultimato]Este livro pode não ter sido tão lido quanto é citado, mas definiu um novo tipo de reflexão cristã no Brasil, que propõe diálogo com a cultura em outro nível que não o da evangelização, e sim o da discussão de valores e princípios que podem levar nossa sociedade para um patamar melhor ou pior. É uma boa influência.

38. “A Bíblia e o Futuro” -- Anthony Hoekema [Cultura Cristã]Este estudo do Apocalipse cresceu em importância no Brasil em uma época em que quase não havia obra que fizesse uma defesa do amilenismo, apesar dos pouco conhecidos esforços de Harald Schally. O livro provocou conversões em massa a partir dos anos 80, e a escatologia nunca mais foi a mesma no Brasil.

39. “Cristianismo Puro e Simples” -- C. S. Lewis [Martins Fontes]Também conhecido como “Mero Cristianismo”, a busca de Lewis pelo denominador comum da fé cristã impacta brasileiros desde os anos 70. Seleciono o livro simbolicamente, já que Lewis não poderia ficar de fora, seja por causa de “Os Quatro Amores”, “Milagres”, “Cartas do Inferno” ou “As Crônicas de Nárnia”.

40. “A Mensagem Secreta de Jesus” -- Brian D. McLaren [Thomas Nelson]Em 2007 o leitor evangélico brasileiro foi surpreendido por este livro do mesmo autor de “Uma Ortodoxia Generosa”. Fiquei admirado ao ver como todos passaram a conhecer e a comentar a obra de McLaren, que representa melhor do que ninguém o paradigma teológico evangélico emergente. Não dá pra não ler.

• Ricardo Quadros Gouvêa é ministro presbiteriano e professor de teologia e de filosofia.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

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Perdas e ganhos


Perdi a fé. Sem qualquer constrangimento, sem medo, saio do armário e confesso publicamente: Perdi a minha fé. Estou consciente que hei de constar no fichário condenatório do Santo Ofício. Corro o risco de ser torturado no garrote gospel.
Receberei inúmeras advertências. Minha caixa postal vai se entupir com mensagens de gente decepcionada. Serei aconselhado a não destruir o meu “futuro promissor”; vão lembrar-me do fogo do inferno, reservado para quem retrocede. Mas não há muito o que fazer, não planejei perder a fé.
Caminhei pelos porões escuros da humanidade. Conversei com pessoas carbonizadas no fogo do sofrimento. Vi crianças subnutridas, sem força sequer de sugar o peito mirrado da mãe. Li uma tonelada de tratados teológicos que tentavam explicar o sofrimento universal. Ouvi um sem-número de sermões sobre a condição humana. Temi os castigos eternos e aprendi sobre os meios que conduzem ao perdão divino. Entretanto, pouco a pouco, vi-me desgostoso com explanações, que julgava simplórias - a princípio, apenas antipatias. Depois, passei a rejeitar o que as pessoas chamavam de fé. Por fim, conscientizei-me que simplesmente não era mais condômino do edifício onde residiam muitos religiosos.

Perdi a fé em um Deus que precisa de pilha para mover o braço. Deixei de acreditar que a “Duracell” que faz Deus “funcionar” seja a fé. No passado, eu procurei mostrar à Deus toda a minha sinceridade. Eu acreditei, piamente, que, caso conseguisse acabar com a dúvida ou hesitação, seria testemunha ocular de grandes prodígios. Jejuei para mortificar a mente; eu precisava calar as minhas inquietações. Certa vez, ao lado do leito de morte de um amigo, chorei desesperadamente; não pelo amigo que agonizava, mas por mim. Eu sabia que, por mais que tentasse, nunca conseguiria demonstrar uma fé inabalável. Meu amigo morreu e eu carreguei por muito tempo, a culpa dele não ter sido curado.

Perdi a fé em um Deus que recusa atender qualquer petição enquanto não houver santidade total. Diziam-me que Deus só ouve os “vasos” puros. Um pensamentos furtivo era suficiente para eu me sentir um lixo humano. Imaginava os difíceis graus de devoção e pureza necessários para eu poder “reivindicar” uma bênção. Vi que jamais teria acesso à bondade divina porque as minhas penitências nunca foram suficientes. Como nunca fui devidamente alvo, minha imperfeição me condenava; um pastor sem milagres, portanto, desqualificado.

Perdi a fé em um Deus que só opera nas micro-realidades. Eu acreditava que Deus intervém pontualmente, isto é, focado e restrito às complicações e necessidades de pessoas. Mas eu não me sentia inquieto. Sequer perguntava: por que essa mesma fé intervencionista não serve para resolver, por milagre, as desgraças que assolam nações e continentes? Ora, se Deus abre uma porta de emprego para um indivíduo, porque não reverte com uma simples ordem, a crise econômica que desemprega milhões?

Perdi a fé em um Deus discriminatório. Já não consigo acreditar em um Deus que pinça alguns para premiar com milagre, mas deixa muitos outros a ver navios. Não faz sentido aplicar a lógica dos bingos e das loterias nos espaços religiosos - para cada sortudo sobram milhões de azarados. Se há razões misteriosas para Deus agir assim, e ninguém pode questionar; se ele trabalha no escuro e a vida é um tapete trançado que só faz sentido do lado da eternidade, então só resta à humanidade seguir os trilhos do destino. Fé não passa de uma mera submissão à bitola do que já foi providencialmente traçado por Deus.
Perdi a fé, mas não sou incrédulo.

Ganhei uma nova fé que celebra a imanência de Deus. Agora percebo que Deus não está longe, mas vive em nós e entre nós. Seu nome é Emanuel, o Deus conosco. Ele está mais próximo que nosso hálito, mais entranhado que nossa medula e mais íntimo que nossos pensamentos. E fez o seu tabernáculo no coração dos homens e das mulheres.

Ganhei uma fé que bendiz a compreensibilidade de Deus. Ele não mede nossa inadequação com critérios tão rigorosos que precisaríamos nos transformar em anjos. Como pai, Deus não leva em conta as nossas transgressões, pois se lembra que somos pó. Deus não rejeita, mas perdoa. Sua pedagogia é libertadora.

Ganhei uma fé que não espera por intervenções de Deus. Minha fé virou uma aposta: Creio que os valores do Reino são suficientes para que eu atravesse a vida sem perder a alma. Minha fé possui uma convicção: Jesus é o modelo digno de ser imitado. Estou certo que seguindo as suas pegadas serei justo, solidário e realizado.

Ganhei uma fé que não tem a expectativa de favoritismo. Busco a mesma atitude de Moisés que, diante da possibilidade do povo não entrar na terra prometida, disse: “Se eles não entrarem, risca o também o meu nome do livro da vida”. Antes de ser brindado por qualquer dádiva, espero que as crianças famintas do Congo, Darfur e sertão cearense, tenham água, comida, roupa, educação e muitos brinquedos.

Estou feliz pela fé que perdi, mas esfuziante com a nova fé que ganhei.

Soli Deo Gloria.

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

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A doutrina dos ciclos.


Um dia, no futuro mais longínquo, daqui a bilhões de trilhões de épocas, eu voltarei a escrever esta sentença na frente deste computador; e com a mesma fatiga.
Não, não me refiro à re-encarnação ou ressurreição, mas à "doutrina do eterno retorno”. A doutrina que diz que tudo se re-encaixará em uma mesma engrenagem. E eu voltarei a ser eu, com o mesmo código genético, o mesmo nome. Vestirei, inclusive, a mesma camisa de malha; e vou reclamar do calor.
Mas isso vai acontecer lá na frente. Centilhões de eras depois que o sol apagar, a Via Láctea implodir e todo o universo se resumir a uma bola de bilhar. Acontecerá uma explosão seguida de um enorme “bang”; e vai começar tudo de novo.

Essa teoria maluca foi atribuída a Nietzsche, mas explicada, e, ao mesmo tempo, criticada por Jorge Luis Borges: “O número de todos os átomos que compõem o mundo é, embora desmedido, finito, e só capaz, como tal de um número finito (embora também desmedido) de permutações. Num tempo infinito, o número de permutações possíveis deve ser alcançado, e o universo tende se repetir. Novamente nascerás de um ventre, novamente crescerás teu esqueleto, novamente chegará a esta página às tuas mãos iguais, novamente percorrerás todas as horas até a de tua morte inacreditável”.

Simplificando: Quando alguém joga um dado muitas vezes, o número seis acaba se repetindo. Dessa forma, em algum ponto do infinito os átomos se combinarão, repetindo a realidade atual. As peças do gigantesco quebra-cabeça universal cairão no mesmo lugar e tudo voltará a ser igual ao que já foi. É meio maluco, mas teoricamente possível. Tão plausível que o Eclesiastes afirmou:
“O que foi tornará a ser, o que foi feito se fará novamente; não há nada de novo debaixo do sol. Haverá algo de que se possa dizer: ‘Veja! Isto é novo!’? Não! Já existiu há muito tempo, bem antes de nossa época” (1,9-10).
Portanto, o Eclesiastes intui que somos uma reconfiguração de uma realidade universal capaz de já ter acontecido; outros mundos iguais a este já teriam existido.
Que doidice! Com tal lógica, seria possível, inclusive, conjeturar que o cosmo já se arranjou com outras configurações. Os cromossomos de Hitler, em outro arranjo, não teriam sido perversos. Nero não teria incendiado Roma, mas se convertido ao cristianismo. Lutero poderia ter sido Papa. Nova Iorque, um dia, não teria passado de um campo de refugiados. Pinochet seria digno do Prêmio Nobel da Paz. Tom Jobim, sem ir ao happy-hour com Vinicius de Moraes, não teria composto a Garota de Ipanema.

Quem sabe os déjà vu não seriam resíduos dessa memória? E as “almas gêmeas”? Saudades de amores já vividos? Ora, se toda a probabilidade acaba se concretizando, o Eclesiastes insistiu: “Aquilo que é, já foi, e o que será, já foi anteriormente” (3.15).

Considero isso tudo um desvario. Talvez elucubrações de quem não tem o que fazer. Contudo, mesmo reconheçendo a plausibilidade teórica de que eu reviva uma mesma versão de mim ou que voltei a ser eu de novo, não posso adiar o imperativo de dar signficado ao dia-a-dia . Não posso perder a chance de melhorar e desfrutar intensamente cada instante. Procurar viver o máximo, nos exíguos anos dessa oportunidade inédita, é a sabedoria do Eclesiastes:
“Portanto, vá, coma com prazer a sua comida e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se alegrou do que você faz.... Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo árduo trabalho debaixo do sol” (9.7-9).
A próxima oportunidade só se repetirá na curva do infinito, onde as paralelas se encontram. É tempo demais para esperar.

Soli Deo Gloria.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

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Uma mensagem para o coração brasileiro


“Quem não se comunica se trumbica”, dizia o Chacrinha. Como pastor pentecostal, acostumei-me à comunicação oral e já ouvi excelentes comunicadores. Aliás, a maioria dos púlpitos brasileiros prioriza a retórica. Entretanto, a pergunta é: os tribunos evangélicos são bem-sucedidos na transmissão da sua mensagem? Sim, caso se considere o espetacular crescimento numérico dos crentes. Não, caso se avalie o recrudescimento dos preconceitos e uma ostensiva rejeição aos evangélicos entre os formadores de opinião.

Ouço relatos de discriminação contra pastores quando precisam preencher um cadastro de crediário, quando alugam casas ou fazem o “check in” do hotel. O senso comum é que pastores são falastrões, sempre ávidos por dinheiro. Eugene Peterson conta a aflição de uma conversa com um passageiro que viajava ao seu lado pela Ásia. Em determinado momento, o homem indagou o que Peterson fazia. “Sou pastor”, respondeu. O que se seguiu foi constrangedor: “Pastor, responda-me, por favor: por que, quando viajo perto de um monge budista, tenho a sensação de estar ao lado de um santo homem de Deus, mas junto de um pastor, fico com a impressão de que estou acompanhado de um homem de negócios?”

Para comunicar uma mensagem para o coração do brasileiro é preciso mais que retórica. O conteúdo da enorme maioria dos sermões restringe-se a chavões surrados, reciclados e esvaziados, por excessivo uso. Os versículos usados são restritos a cerca de uns cem, preferivelmente descrevendo a vitória na guerra e milagres excepcionais, como o mar que se abriu e o sol que parou. Os melhores evangelistas decoram esses poucos textos para citá-los feito metralhadora no meio do sermão. A arte da retórica funciona bem para os que já se acostumaram com a linguagem daquele ambiente, mas para quem precisa organizar os conceitos para melhor entendê-los não bastam as frases prontas.

Para comunicar uma mensagem para o coração brasileiro é preciso que o discurso se alicerce na credibilidade. Cansados de corrupção, de enganos e de ouvir contos-do-vigário, o povo precisa confiar que os pastores não participam da mesma cultura dos caudilhos, dos coronéis, das oligarquias, das elites que só se locupletaram com a miséria. Se os líderes religiosos passarem a idéia de serem espertalhões, as pessoas os procurarão apenas para “conseguir” uma bênção, mas nunca organizarão a vida a partir de seus valores. Assim os pastores se condenam a meros feiticeiros, que sabem acessar o sobrenatural para alcançar milagre. A magia substitui o discipulado, e a técnica, o relacionamento.

Para comunicar uma mensagem para o coração brasileiro é preciso que haja sintonia entre o sermão e a vida. Não adianta lidar com conceitos que fazem todo sentido numa torre de marfim, mas que não se conectam com a difícil realidade. Como o evangelho não doura a pílula existencial, os pastores não podem ter a pretensão de que, “em tese”, o crente literalmente anda sobre as águas, pega em serpentes sem ser picado e bebe veneno. Mesmo cristãos, mulheres e homens pegam ônibus lotados, esperam semanas por uma vaga em ambulatórios públicos e sobrevivem de subempregos.

Para comunicar uma mensagem para o coração brasileiro é preciso que se fale com poesia e com ternura. Em “Casa-Grande & Senzala”, Gilberto Freyre atribui o jeito manhoso e delicado do brasileiro à influência das negras na educação do Brasil colonial. “Dói dos grandes tornou-se o dodói dos meninos. Palavra muito mais dengosa. A alma negra fez muitas coisas com as palavras, o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no Norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo”. A aspereza do mundo anglo-saxônico não combina com esse amolecimento da linguagem: “E não só a língua infantil se abrandou desse jeito, mas a linguagem em geral, a fala séria, solene, da gente grande, toda ela sofreu no Brasil, ao contato do senhor com o escravo, um amolecimento de resultados às vezes delicioso para o ouvido”.

Para comunicar uma mensagem para o coração brasileiro é preciso que se restaure a dimensão lúdica da fé. Por décadas os missionários tentaram mostrar que fé combinava bem com austeridade. Reverência virou sinônimo de rigidez. Mas brasileiro chega atrasado, não se sente bem de terno e gravata e detesta ambientes protocolares. Enquanto os cultos solenes exigiam becas, togas e hinos com música e métrica rebuscadas. O protestantismo manteve-se estrangeiro enquanto insistiu em liturgias suntuosas que não combinavam com a informalidade nacional. Os pentecostais conseguiram enorme penetração nos estratos mais populares porque contextualizaram os cânticos, improvisaram os sermões e bagunçaram a liturgia.

Para comunicar uma mensagem para o coração brasileiro é preciso que se faça teologia com tolerância. O fenômeno do duplo, e até triplo, pertencimento não é anomalia católica, mas um traço cultural. O brasileiro não se constrange de freqüentar e conviver com diversas influências espirituais. O protestantismo tupiniquim absorve, rapidamente, peculiaridades tanto do catolicismo popular quanto das religiões afro-brasileiras. Portanto, é preciso acabar com as intransigências que promovem ódios religiosos.

Finalmente, para comunicar uma mensagem para o coração brasileiro é preciso que se fale aos sentimentos mais que à mente; que se transmitam os afetos divinos e não os áridos pressupostos da teologia; que se promova a solidariedade; que se busque a justiça; e que se produza uma geração de mulheres e homens bons, parecidos com Jesus de Nazaré.

Soli Deo Gloria.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

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Comunicação e Adolescência - o modelo da encarnação

Rubem Amorese


Ensina a criança no caminho em que deve andar, e ainda quando for velho não se desviará dele. Pv. 22:6

Uma das ciências que mais tem evoluído nos últimos tempos é a Comunicação Social. Está em alta nos vestibulares, nos cursos de Recursos Humanos das empresas, nas grandes multinacionais e até nas campanhas políticas, cuidando da imagem de partidos e candidatos. Parece que as pessoas, sob a influência da poderosa mídia, descobriram a importância de se comunicar bem (ou o desastre de uma comunicação cheia de ruídos). Com isso, até os programas de aprimoramento institucional ou pessoal - de cursos de liderança a encontros de casais - têm que ter, obrigatoriamente, um capítulo sobre comunicação.

As teorias da comunicação remontam a Sócrates, para quem, um bom discurso tinha o objetivo de persuadir. Ou seja, mudar a forma de pensar do meu ouvinte, na direção do meu pensamento. Desde então, até os dias de hoje, essa concepção da Comunicação tem ocupado um importante espaço entre teóricos e práticos. O professor é um bom comunicador se é capaz de "enfiar" sua matéria na cabeça do aluno (de preferência, sem que este tenha muito trabalho de estudar); o pregador é avaliado por seu poder de convencimento, de transformação dos seus ouvintes; o político atilado é aquele que se faz compreender facilmente (mesmo que ele próprio não saiba bem o que está dizendo, não importa), e assim por diante.

Mas essas teorias evoluíram. Principalmente, quando se começou a descobrir que nem sempre a persuasão modificava o comportamento das pessoas; que a boa comunicação do professor nem sempre fazia o aluno conhecer mais, e que sermões inflamados nem sempre produziam a vida desejada nos ouvintes. Na verdade, foi ficando claro que esse modelo implicava uma certa dose de prepotência e arrogância, pois avaliava o resultado dos processos comunicativos a partir da ótica do comunicador. O aluno aprendeu, se for capaz de reproduzir o que o professor ensinou - e se ele pensar diferente? Pode pensar? O fiel foi impactado pelo sermão, se modificou seu comportamento na direção prevista pelo pregador - e o espaço para ter sido abençoado em outra direção?

A idéia de que "comunicar é transferir informação", até geograficamente, começa a ser revisada. O conceito da via de mão única começa a ser repensado. E o termo assume a idéia de "comum-nicar", ou seja, estabelecer coisas em comum. A novidade é que, a partir dessa compreensão, o processo passa a igualar o comunicador como parte, e não senhor, desse processo. Colocar em comum é tarefa para os dois pólos teóricos do processo. Os dois se transformam em comunicadores-receptores; os dois têm uma dignidade própria de sujeitos (e não objetos) do processo. Os dois têm algo a dizer.

Ensina a Criança

Uma das áreas em que essas evoluções da teoria e da prática da Comunicação têm tido dificuldades de penetrar é nas relações entre pais e filhos. Acho que dá para entender por que. Nem sempre percebemos que nossos filhos estão crescendo. Refiro-me à dignidade que vão assumindo, como pessoas, autônomas em relação a nós, com seus desejos, vontades, pensamentos etc. Aos nossos olhos, vão ficando grandes, cheios de espinhas, voz grossa, mas dificilmente deixamos de chamá-los de meninos. Até afetivamente, são nossas crianças.

Junto com esse lado bom, no entanto, vai a nossa arrogância disfarçada de amor. Nossa comunicação com eles está sempre na mesma direção que esteve nos últimos dezoito anos: de cima para baixo. Tudo o que eles nos comunicam se resume em sinalizações sobre como estão de saúde, o que fizeram ou deixaram de fazer, e outros "elementos de controle"; informações que captamos para poder corrigir suas trajetórias. Nem sempre pensamos no assunto, e muito menos verbalizamos que "eles não têm nada a nos ensinar", mas essa é uma realidade tácita.
É um pressuposto pacífico.

Na verdade, temos até o sábio Salomão, a corroborar esse pressuposto. Quando ele dizia que deveríamos ensinar a criança, e ela, mesmo velha, não se afastaria desses princípios, não nos estaria colocando como autoridade suprema em relação ao seu conhecimento? Esse ensino que hoje lhe dou, é para sempre!

De certa forma, isso é verdade. E implica grande responsabilidade. Mas Salomão está falando, a meu ver, mais que isso: está dizendo que a criança precisa ser orientada no caminho em que deve andar; e esse caminho há de ser o dela, também. É mais que um caminho moralmente aceitável. É o caminho da vida. Preciso ensiná-la a caminhar seu caminho. Não o meu. Preciso ajudá-la a adolescer e encontrar o caminho em que deve andar. Um caminho de santidade, é verdade, mas não, necessariamente, o meu. E como vou fazer isso se não aprender com ela sobre esse seu caminho?

Encarnação e Comunicação

É interessante o que aconteceu com a teoria da Comunicação. Toda a evolução dessa ciência acabou por se mostrar a "redescoberta da roda". Estudaram, estudaram, e descobriram o que já se sabia há dois mil anos: que a forma mais completa, mais dignificante, mais eficiente de comunicação é aquela que promove todos os participantes do processo, sem transformar qualquer deles em objeto, em elemento menor. Descobriram que comunicação e adestramento são coisas muito distintas; descobriram que a simples transferência de conteúdos mentais não existe, pois o "receptor" é inteligente e tem seus próprios conteúdos, pelos quais avaliará o que recebe. Descobriram que a redução do receptor à condição de objeto do processo é reflexo da minoridade do emissor, que usa conceitos extraídos da Psicologia para manipular, dominar, encabrestar.

Ao contrário, o modelo mais avançado de comunicação já estava descrito pelo evangelista João:

E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do unigênito do Pai. Jo. 1:14

Outra versão, diz: "e armou tenda entre nós".

O senhor do universo, ao se comunicar conosco, não usou técnicas persuasivas de transferência de conteúdos. Ele poderia muito bem ter feito isso. Ele poderia ter aberto um alçapão no céu, e gritado. Mas não o fez. O que fez? Abriu mão da sua glória e nasceu entre nós, como um de nós.

As Lições

Gostaria de extrair, dessa revelação de João, 6 lições sobre comunicação, aplicáveis a qualquer relação de liderança, mas em particular entre uma mãe e seu filho adolescente.

1. Primeira lição: Comunicação é mais que palavras

Deus já havia falado, muitas vezes e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas (Heb. 1: 1-2). Deus já havia utilizado a técnica das palavras. Mas chegou um tempo, em que aprouve ao Pai apresentar-se por inteiro, de forma que o que de Deus se pudesse apreender nos fosse manifesto, inteiramente no seu Filho. E então, Deus pára de falar e parte para atos e gestos. Deus encarna.
Comunicação é mais que palavras. É gesto eloqüente, é ação de integração, é encarnação que faz nascer junto ao seu filho adolescente. Comunicação é fazer junto, é sofrer junto. É aprender e crescer com ele.

2. Segunda lição: Comunicação requer proximidade

Deus já havia falado à distância: já havia mandado cartas (livros sagrados) e enviados (profetas), mas não estava satisfeito. Tudo acontecia numa distância insuportável para quem realmente ama e quer salvar. Então, pelo gesto de "habitar entre nós", definitivamente encurtou distâncias, e se fez um Deus próximo. Em Jesus, Deus fez a aproximação do homem consigo mesmo.
Comunicação requer proximidade. Uma proximidade muito mais que física, amocional e afetiva; uma proximidade de quem se interessa, de quem quer o bem; de quem quer saber do íntimo, do coração, da alma, dos problemas. Uma proximidade que se dispõe, humildemente, a "comun-icar".

3. Terceira lição: Comunicação exige horizontalização

A vida e as palavras de Jesus não foram um discurso de poder, mas de fraqueza; não houve, na boca de Jesus, argumentos de força, do tipo - faça isto porque eu estou mandando; eu sou sua mãe - mas espírito de sacrifício.
Comunicação verdadeira não se dá de cima para baixo; daquele que manda para aqueles que obedecem; daquele que sabe para ignorantes; daquele que detém o cetro para plebeus. Comunicação verdadeira compartilha ideais, visões, alvos e sonhos; busca, procura ajudadores; inspira vocações; fortalece os fracos; solidariza-se com as dificuldades e limitações.

4. Quarta lição: Comunicação é gesto de amor

O texto sagrado nos ensina que a motivação da encarnação foi só uma: amor. Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu..." Um amor que não ficou em palavras, nem em sentimentos platônicos, mas que deu. Mais que isso: um amor que se deu. Essa partícula "se", no caso é muito importante, porque muitas vezes somos capazes de dar para não termos que nos dar. No caso do pai, da mãe, do líder, isso é muito comum. Damos coisas aos nossos filhos para que parem de exigir de nós proximidade, horizontalização, e doação pessoal. Mas o amor de Jesus não foi assim. Manifestou-se em uma intensidade e dramaticidade tal que, ao invés de dar, deu-se. Este é o gesto de amor de Deus, revelado na encarnação de Jesus.
Comunicação é gesto, é atitude, é ação concreta; é cumprimento de promessa; é realização de esperança.

5. Quinta Lição: Comunicação é caminho de serviço

O texto de Daniel 7: 14 fazia prever que aquele que viria seria forte e poderoso; destinado a ser servido pelas nações da terra. Quem poderia esperar que Cristo viria na forma de Isaías 53? No entanto, Lucas 9:48 encontra Jesus ensinando, a partir de seu próprio exemplo, que seu caminho, seu exemplo, foi um exemplo de serviço humilde e singelo.
Comunicação é mais que palavras; é mais que proximidade; é mais que horizontalização; é mais que gesto de amor.

6. Sexta lição: Comunicação é um contínuo atravessar de fronteiras. É romper barreiras

O primeiro grande gesto de amor de Deus se consumou na travessia de uma barreira dimensional entre o divino e o humano. Quando Deus se faz homem, estava vencida a grande distância; a fronteira das naturezas, das dimensões, das visões do mundo, das compreensões da vida e do cosmo. A encarnação significa Deus cidadão do mundo; Deus entre nós - Deus Homem.

Comunicação é ser capaz de nascer na realidade em constante e rápida mutação de seus filhos adolescentes, para fezer-se um com eles; para compreender sua realidade, para sofre sua angústia de não ser mais criança e ainda não ser adulto.

Conclusão

Não precisamos de um curso de Comunicação Social para nos relacionar bem com nossos filhos adolescentes. Até que não é má pedida. Mas o essencial é que, também nessa área, sejamos discípulos de Cristo, quando diz: assim como o Pai me enviou aos seus filhos rebeldes, eu também vos envio aos vossos adolescentes.

terça-feira, 13 de maio de 2008

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Contentamento.

Ricardo Gondim.

De que mais carece um homem senão de um olhar que não lhe condene, principalmente, no momento tenebroso quando se sentir arqueado de culpa? E que lhe devolva a sensação de saber-se acolhido por pura gratuidade, sem pedir explicações; e que o deixe pleno de paz, sem exigir nada.

De que mais carece um homem senão de um ombro que se oferece para dividir a carga, de um parceiro que não considera a ajuda um sacrifício? Para que, ao caminhar ao lado desse amigo, possa dizer que sua companhia é mais valiosa do que uma jazida de ouro.

De que mais carece um homem senão de um irmão que lhe estenda a mão no corredor escuro, quando as opções se mostrarem arriscadas? Basta que diga: “vamos tentar acertar uma dessas portas, não importa quanto errarmos” e desaparecerá o medo dos labirintos, das armadilhas, das setas malignas.

De que mais carece um homem senão de um ouvido para desabafar? Ele se sentirá feliz ao encontrar o confidente que não precisa responder, mas, calado, esquece. Sim, um amigo com amnésia para nunca alegar inconveniências antigas; não cobrar o porquê das insensibilidades despercebidas; um teimoso que deseja continuar ao lado, mesmo quando não for chamado.

De que mais carece um homem senão de poesia para fazê-lo vivenciar a linguagem criadora do universo? Somente o poema lhe fará vagar pelos sentimentos indizíveis do artista e sofrer com a angústia do profeta. Só a beleza da palavra é pão; só o verbo, carne; só o verso, um copo d’água.

De que mais carece um homem senão de música para embalar seus sonhos, descansar seu corpo fatigado e devolver graça para suas pernas trôpegas? Com melodia, ninguém perde leveza para acabar insensato. Cantar torna íntimo, nunca distante; grave, nunca pessimista.

De que mais carece um homem senão de colo para deitar-se e sentir-se amado? Todos carregam a nostalgia do aconchego uterino; todos desejam retornar ao ninho primordial e falar com um Deus que também é mãe. “Que meus olhos sejam tão mansos para com os outros como os teus são para comigo. Porque, se for feroz, não poderei acolher a tua bondade. Ajuda-me para que não seja enganado pelos maus desejos. E livra-me daqueles que carregam a morte nos próprios olhos”. (Rubem Alves).

De que mais carece um homem senão de uma noite insone para virar-se ao avesso e dialogar com suas sombras e não horrorizar-se? Nessas inquietações, sem relaxar, sempre é possível identificar dores que pedem cura. Nos conflitos internos, aprende-se a apalpar a asa ferida e evita-se o vôo precipitado antes que a madrugada chegue com suas réstias de esperança.

De que mais carece um homem senão de dormir profundamente e sonhar? E nessa experiência que prenuncia a morte, atravessar o deserto do silêncio até aprender a amá-lo; no descanso profundo e total, dialogar com a eternidade, vaga e misteriosa, até perder o medo da solidão e encontrar Deus.

De que mais carece um homem senão de espelhos que reflitam seu olhar sereno mesmo quando enfrenta a mais terrível tribulação? E mirando-se, não esquecer que, sobretudo, deve manter guarda constante de si mesmo para continuar solidário, misericordioso e amigo da justiça.

De que mais carece um homem senão de um Salvador que se pareça com um cordeiro não com um leão? E que seu Senhor lhe inspire a voltar o coração para os sofredores; a identificar-se com a sorte das ovelhas, não dos lobos, dos condenados, não dos carrascos.

De que mais carece um homem senão de paixão para acordar pleno de entusiasmo a cada manhã? E revestido de ideais, transformar-se em um hino que confronta os egoístas, fazendo da sua teimosia um sino que convoca o medíocre a abandonar seu discurso raso e irrelevante.

De que mais carece um homem senão de uma esperança que lhe desafie como o horizonte de um vasto oceano? E que esta esperança more além da história, além do tempo, além da vida; e ele, semelhante a um veleiro, não queira achar um porto, preferindo a aventura de navegar ao sabor do vento indomável.

Soli Deo Gloria.

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Teologia da Esperança.

Ricardo Gondim.

Jürgen Moltmann causou espécie. Sua obra, “Teologia da Esperança”, encantou e importunou quando publicada em 1964. Alguns consideraram o livro a concretização de temas que “estavam no ar”, cumprindo assim um kairós (a inevitabilidade do "tempo que chegou").

Na Igreja Católica Romana, o Concílio do Vaticano II propunha a atualização de sua missão, liturgia e teologia. Nos Estados Unidos, o movimento pelos direitos civis ganhava força com Martin Luther King, que levou multidões às ruas. Em Cuba, jovens guerrilheiros tomavam o poder de Batista, um fantoche da máfia, para despertar a esperança dos pobres das Américas. Nesse ambiente, nascia a "Teologia da Esperança".

Releio Moltmann depois de vinte anos. A cada página, pergunto-me: “onde eu estava que não apreendi seus conceitos?”. Ainda na introdução, Moltmann repensa o signficado de “escatologia” – a doutrina das últimas coisas. Para ele, era aceito que “a compreensão da expressão “últimas coisas” englobava eventos, sobre o mundo, a história e a humanidade que irromperiam no fim dos tempos. Entre esses acontecimentos estava a volta de Cristo em glória, o juízo universal e a consumação do reino, a ressurreição universal dos mortos e a nova criação de todas as coisas. Esses acontecimentos finais irromperiam de fora da história para dentro dela e poriam fim à história universal, na qual tudo se move e se agita”.

Moltmann considera, então, que, como esses acontecimentos ficam no limiar do “último dia”, eles tiveram pouca relevância para os “tempos vividos antes do fim”. Escatologia ficou condenada a ser apenas uma aspiração piedosa. Isso explica, segundo ele, porque “as doutrinas do fim vegetavam esterilmente nas últimas páginas da dogmática cristã. Eram como um apêndice meio solto, que definhavam em sua insignificância apócrifa”.

Daí, Moltmann ousa resignificar a escatologia, trazendo-a para o presente. Ele afirma que “a escatologia é idêntica à doutrina da esperança cristã, que abrange tudo aquilo que se espera como o ato de esperar, suscitado por esse objeto”. A escatologia não adia, sine die, o apogeu da história, mas o trás para o presente, porque, “o cristianismo é total e visceralmente escatologia, e não só como apêndice; ele é perspectiva, e tendência para frente, e, por isso mesmo, renovação”.

“O escatológico não é algo que se adiciona ao cristianismo, mas é simplesmente o meio em que se move a fé cristã, aquilo que dá o tom a tudo há nele, as cores da aurora de um novo dia esperado que tingem tudo o que existe”.

Para Moltmann, portanto, a doutrina da “escato-logia” deve ser substituída por uma teologia da esperança: “Mas como falar de um futuro que ainda não existe e de acontecimentos vindouros aos quais ninguém ainda assistiu? Não se trataria aí de sonhos, especulações, desejos e temores, todos necessariamente vagos e indefinidos, já que ninguém pode verificá-los?”.

Ora, se se entende doutrina “como uma coleção de afirmações doutrinárias que se conhecem a partir de experiências que podem ser repetidas e feitas por todos; o termo logos se refere a uma realidade que está aí, que existe sempre e que pode ser conhecida como verdade na palavra que lhe corresponde”.

Concordo com Moltmann, pois também acredito que “não é possível haver logos do futuro, a não ser que o futuro seja a continuação ou retorno periódico e regular do presente. Mas se o futuro traz algo de surpreendente e novo, sobre ele nada podemos afirmar, nem conhecer sobre ele qualquer coisa que tenha sentido, pois a verdade ‘lógica’ (verdade com logos) não pode existir no que acontece no futuro como novo, mas tão somente naquilo que é permanente e retorna regularmente”.

Moltmann desmonta a arrogância do teólogo que se imagina capaz de fixar a realidade, pois “os conceitos teológicos não podem se tornar juízos, os quais fixam a realidade naquilo que ela é, mas tão somente juízos provisórios, os quais descobrem à realidade suas perspectivas e suas possibilidades futuras. Conceitos teológicos não devem fixar a realidade, mas ampliá-la pela esperança e assim antecipar seu futuro. Não devem arrastar-se atrás da realidade, nem olhar para ela com os olhos da coruja de Minerva, mas iluminar a realidade, mostrando-lhe seu futuro”.

Incentivo a leitura de “Teologia da Esperança” (Edições Loyola) de Jürgen Moltmann, seus conceitos são revolucionários:

Deus não está em alguma parte no além, mas ele vem e está presente, como aquele que vem e promete um novo mundo de vida plena, de justiça e de verdade, e com essa promessa põe novamente em questão este mundo. Não porque o mundo nada é para o que espera, mas porque ainda não é aquilo que está colocado à sua frente. Pelo fato de o mundo e a existência humana serem assim questionados, eles se tornam “históricos”, pois são postos em jogo e colocados na crise do futuro prometido. Quando o novo aparece, o velho se manifesta. Quando algo de novo é prometido, o antigo se torna passageiro e superável. Quando é esperado e aguardado algo de novo, o antigo pode ser abandonado. Assim a “história” resulta a partir de seu término, a história daquilo que acontece, o qual é percebido na promessa prévia e iluminadora.

A escatologia não é soterrada pela areia movediça da história, mas, ao contrário, mantém a história viva por meio da crítica e da esperança; ela é, por assim dizer, a própria areia movediça da história que vem do fim. A impressão da transitoriedade universal, que é tão evidente ao triste olhar de quem olha para trás, para o que não pode ser segurado, na realidade nada tem a ver com a história...

A história não engole a escatologia (Albert Schweitzer), nem a escatologia engole a história (Rudolf Bultmann). O logos do eschaton é a promessa daquilo que ainda não existe, e, por isso, faz a história. A promissio, que anuncia o eschaton e na qual o eschaton se anuncia, é o motor, a motivação, a mola propulsora e o tormento da história.

Soli Deo Gloria.

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Desaforos, resiliência e perdão.

Ricardo Gondim

Há tempo escrevo memórias e garimpo reminiscências. Antes que se rompa o fio de prata, procuro revolver emoções sedimentadas, talvez em busca de achar-me.

Desisti de querer voltar aos lugares da infância. Casas, avenidas e praças encolheram demais para despertar meu olhar adulto. Chamo, porém, pelos personagens que me marcaram. Um ou outro obedece e sai dos porões úmidos onde jaziam. Reencontrá-los, entretanto, nem sempre me alegra, alguns continuam assustando.

De Londrina, por exemplo, não revejo apenas o pó vermelho que encardia meus pés e que toldava o céu nas tardes de temporal. – Que medo! Ressuscito amigos com quem nadei em ribeiros e represas e não esqueço o rosto do padre que estendeu-me a hóstia da Primeira Comunhão.

Mas não idealizo as recordações. Não vivi uma infância ou adolescência protegida; cedo conheci gente ruim e despertei para um mundo perigoso.

Um dos momentos mais doloridos aconteceu nos tempos da prisão do papai. Logo antes do golpe militar, papai requerera sua transferência de Londrina para outra base aérea, porém, antes do despacho oficial, o governo caiu. Assim, mamãe, grávida de gêmeos com seus cinco filhos, ficou no meio do caminho. A situação de nossa família era complicada: não tínhamos para onde voltar e não sabíamos para onde ir. Ainda bem que meus avós maternos nos acolheram na pequena casa de vila onde moravam.

E como eu não podia ficar sem estudar, fui matriculado num Grupo Escolar mal cuidado; de carteiras, pensas, prestes a desabar e com uma lousa verde desbotada. Na primeira semana de aula, meu irmão e eu chamamos a atenção. Nosso sotaque paranaense soava afeminado para os ouvidos cearenses.

A choça era geral. Nunca hei de esquecer quando alguém gritou “viado”. Fui ao encontro da voz, disposto a brigar. Mas não dei três passos e uns seis moleques formaram uma parede humana. Todos fortes e bem mais velhos do que eu. Um assumiu a liderança e me provocou com um montão de coisas, mas não ousei nenhum gesto. Ele então escarrou e cuspiu no meu rosto.

Ódio, raiva, ira, furor, mal sei o vocábulo adequado (talvez todos), acendeu uma febre súbita por todo o meu corpo; e rompeu-se a indignação que eu represava por saber que papai estava preso, por não ter casa nem quarto de dormir, por pressentir que jamais me deitaria no colo da mamãe como fazia em Londrina, por estar naquele colégio vagabundo, por ter perdido meus antigos amigos. Lutei para não enfrentá-lo - eu sabia que não tinha chance - esforcei-me para não chorar e saí de perto deles. Mas, enquanto enxugava o cuspe, jurei vingança e por anos procurei guardar a fisionomia do meu ofensor para matá-lo.

Hoje acordei e pensei naquele evento. Perguntei-me se já consegui perdoar a afronta. Tentei redesenhar aquela face detestável, mas não consegui - sem um rosto o ódio não se adensa. Mas a memória daquele dia continua; escrevo como catarse, querendo enterrar o passado - sei que as obras das trevas só se destroem na luz, que revela a poder destrutivo do rancor.

Muitas outras decepções marcaram a minha vida. Não posso esquecer que namoradas me traíram; que perdi amigos que me acharam pobre por não ter dinheiro para comprar um mísero refrigerante na praia e por tentar pular o muro do estádio e ser apanhado pela polícia; que me vi diante de um conselho de presbíteros, antes dos 20 anos de idade, para um inclemente ritual de excomunhão.

Perguntam sobre a minha tristeza e respondo: ela é filha da decepção, mas a mãe dos vários eus que precisaram nascer para minha sobrevivência. Mia Couto escreveu: “Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não de raças, mas de existências”.

Nessas muitas existências numa só vida aprendi resiliência, que depois se misturou ao imperativo do amor e fez de mim uma crise ambulante.

Soli Deo Gloria.

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MILAGRES, SENTIDO E CONSCIÊNCIA[1]

Elienai Cabral Junior

Ninguém discorda de que estamos experimentando um tempo de angustiante desconstrução na teologia da Betesda[2]. Continuo acreditando que os sentidos dessa desconstrução já vinham sendo apontados há muito tempo. O que não tínhamos era a maturação desses sentidos para fazer as perguntas necessárias e sugerir algumas respostas.[3]

Creio que ninguém nunca inventa um sentido. Nunca surge um sentido até então inédito e impensável. O que há é o ponto de maturação de sentidos que nos puxam há muito tempo. Nesses pontos de maturação da nossa história, idéias consideradas estranhas, mesmo que ponderáveis, são testadas pelo tempo e as experiências. Se não se diluem, são adensadas, agravadas, ganham sobrevida e, se sobrevivem, agregam força de persuasão e plausibilidade. Se não sobrevivem, são esquecidas como um delírio infantil. Caso resistam, ganham força gravitacional, o poder da coerência de nos puxar para dentro de um sentido. Puxam-nos com a força da consciência de algo que mostra real.

Quem resiste, sem enlouquecer, a algo que lhe pareceu real? Só despreza algo novo que faz sentido e ama o que se mostra injustificável quem esquizofrenizou. Em outras palavras, se eu sei que uma idéia esgotou seu sentido e que outra idéia indica um mundo de sentidos novos, basta um pouco de coragem para acolher mudanças, propor novas lógicas e chegar a algumas conclusões.

Portanto, o que chamamos aqui de desconstrução não é uma demolição fortuita e muito menos arbitrária. Também não pode ser confundida com um arroubo irresponsável de novas idéias. Nossa experiência de desconstrução é o enfrentamento corajoso das implicações desses sentidos que há muito nos puxam. Sim, somos puxados pelos sentidos apontados pela história. Não confundam isso com nenhum novo determinismo. Mas entendam o “ser puxados” como uma consciência histórica, como a escolha pelo que salta aos olhos. Toda consciência é construída pela história. À medida que vivemos e refletimos o que vivemos, coletivamente, acolhemos o que faz e repelimos o que deixa de fazer. As individualidades interagem, mas, preciso frisar, a consciência é sempre coletiva. Sinto que esse é o momento que vivenciamos, o do surgimento de uma nova consciência.

Mesmo sendo coletiva a experiência de surgimento de nova consciência, cada um caminha no ritmo em que discerne a (sua) história. Por isso também escolhi a palavra maturação. Porque se trata de um processo que não pertence inteiramente à pessoa que o experimenta. Ninguém possui em sua livre iniciativa todo o movimento de abertura para uma nova lógica.

Além da boa vontade, da coragem, do despojamento, da sinceridade, de um alargamento de horizonte, há também elementos que não dependem apenas de vontade pessoal. Outras experiências escapam ao indivíduo, como as decepções sofridas com as explicações convencionais, uma vivência cultural e comunitária com o esgotamento de modelos antigos e a demanda por novos modelos que melhor respondam às expectativas. Além, é claro, de elementos subjetivos e psíquicos: alguns tendem à resignação, foram adestrados em sua formação pessoal a adiarem conflitos. Outros são inquietos e ávidos por enfrentar as novas questões que surgem e imediatamente propor novas respostas. Enquanto alguns experimentam inquietações e desencantos típicos de sua idade ou experiência de vida, outros tendem a um olhar idealista, apaixonado e otimista para a vida, também, mas não somente, em função de sua idade emocional.

Há tantas variantes quantas individualidades envolvidas no desenvolvimento da cosmovisão de uma comunidade. Logo, falamos de uma experiência marcada necessariamente pelo conflito e assimetria. É neste ponto que nossas fantasias de unidade e nossa obsessão por simetria institucional atrapalham. Nenhuma comunidade desenvolve sua cosmovisão com integridade e liberdade sem abrir mão da hegemonia e do espírito de manada.

O fato, no entanto, de falarmos de assimetria na formação de uma nova consciência não pode ser entendido como uma experiência desencontrada e anárquica. Novamente, falamos de uma consciência histórica, logo, de um fenômeno que a todos abarca. Senão, qualquer proponente de novas idéias sequer seria entendido, sendo confundido com um lunático. Como são, talvez, os líderes das chamadas seitas messiânicas que já tantas tragédias causaram na história recente do mundo.

Se uma nova idéia provoca amplo debate, atrai novos pensadores, agrega indivíduos não pessoalmente envolvidos e nem participantes de um mesmo segmento, como igreja, cidade, país ou religião é porque essa idéia é parte de uma nova consciência que nos puxa. Mesmo que a essa idéia sejam contrapostas ferozmente idéias conservadoras. Inclusive, o fato de representantes de idéias conservadoras, de antigas consciências, serem mobilizados e agirem com violência intelectual apenas confirma que as novas idéias nem são invenções, nem delírios, nem idéias absurdas. Ao contrário, talvez porque façam todo sentido e terminem por ameaçar a sobrevida de antigas consciências, sejam tão fortemente combatidas.

Minha primeira sugestão é de uma desistência acompanhada por uma aceitação. Precisamos desistir de um debate monofônico. Nossas conversas serão marcadas pela polifonia de idéias. Haverá tons distintos que precisaremos orquestrar se não quisermos desperdiçar a chance de construirmos com múltiplas percepções uma nova consciência. Mas também precisamos aceitar que temos bem mais em comum do que imaginamos. Por isso defendo que essa nova consciência sobre Deus, a Bíblia, a fé, a salvação, a oração, os milagres e todos os demais assuntos da vida cristã já se mostra nos sentidos que sempre nos puxaram.

Nessa altura do campeonato, os debates de idéias já criam grupos distintos. Cada um se forma em função da identidade de cada participante e dos preconceitos de muitos que acabam por catalogar e isolar os diferentes. É natural que os iguais se aproximem para melhor argumentar. Mas é lamentável que algumas pessoas isolem outras em categorias preconceituosas, tais como: os progressistas, os de esquerda, os conservadores, os fundamentalistas, os legalistas, os liberais e assim por diante. Catalogados pelos preconceitos, perderemos a condição de ampla conversa. Precisamos nos aproximar através das conclusões comuns a todos. Meu esforço inicial será o de intuir alguns desses elementos em comum.

Para tornar nossa conversa mais produtiva, escolho um tema que, segundo entendo, é bem mais que um assunto entre tantos. Milagres. Escolho-o por ver convergir nele nossas maiores tensões. Mas principalmente porque, como já indiquei, é um tema mais abrangente que um simples assunto. É um tema que nos remete ao todo do modo de ver Deus, a humanidade, a liberdade, o amor, a vida autêntica, o sofrimento, a ética e outros ainda. Talvez pudéssemos começar afirmando que o tema dos milagres é o centro nervoso da consciência humana.

Para a consciência religiosa tradicional, não apenas cristã, o debate a respeito dos milagres é o mais intenso. Nenhuma afirmação repercute mais que a aquela que checa a consistência do que acreditamos ser milagre. Nenhuma dúvida atormenta mais que aquela que questiona a expectativa por um milagre. Nenhuma negação afronta mais que aquela que abre mão da pertinência de um milagre. Por quê? Minha idéia é que a discussão sobre milagres é a discussão sobre um modo de viver. Uma cultura. Um modo de se colocar na vida. E um modo de vida é a cultura que desenvolvemos para nos sentirmos seguros diante da imprevisibilidade da história e das ameaças de um mundo que, com freqüência, se mostra hostil.

Basta aceitarmos o tipo de hipótese proposta por Jesus ao “jovem rico” (Mt 19.16-30) para entendermos a dificuldade de se lidar com mudanças de consciência. O jovem se aproxima como que puxado pelo anseio de algo novo, mas ainda desconhecido. Há uma questão: “Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna?” Jesus o remete a um modelo que não consegue mais responder: “obedeça aos mandamentos.” A pergunta insiste com a confirmação de anseio por outras respostas diferentes das que carregou a vida toda: “A tudo isso tenho obedecido. O que me falta ainda?” Jesus respondeu com algo mais que uma proposta radical, um exercício de mudança de consciência: se quisesse ser perfeito, o jovem rico deveria vender tudo o que tinha, dar o dinheiro aos pobres para então segui-lo. Por um instante, ao menos, aquele jovem rico sentiu-se sem a segurança de todos os bens conquistados. Sentiu-se a mercê de um projeto de vida que abria mão da segurança das riquezas. Por um instante, Jesus deu ao jovem a oportunidade de imaginar-se sem o modo de vida com o qual construíra toda a sua história, de sentir-se participante de uma outra consciência.

O episódio se encerra com a força inibidora de qualquer mudança: a sensação de insegurança diante do desconhecido. Uma antiga cultura, mesmo que esgotada em sua pertinência, sustenta-se em sua capacidade de domar mentes inquietas com apelo do medo. Triste, o jovem partiu como chegou: perguntando-se pelo que ainda faltava, mas sem força para romper com um padrão sobre o qual firmou sua segurança existencial.

Importante foi a constatação feita por Jesus da gigante dificuldade de alguém redimensionar seu modo de vida: “é mais fácil um camelo entrar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus”. A pergunta dos discípulos, que não eram ricos, nos diz que a questão não era apenas sobre riqueza, mas sobre abrir mão dos pontos de apoio para experimentar uma nova realidade: “neste caso, quem pode ser salvo?” Ou seja, ninguém, a princípio, está propício a abrir mão de sua cultura de segurança. A resposta de Jesus é o anúncio de esperança do Reino de Deus: “Para o homem é impossível, mas para Deus todas as coisas são possíveis”. A interpelação de Pedro reafirma que o que estava em questão não era ser rico ou ser pobre, mas a segurança em um mundo ameaçador: “Nós deixamos tudo para seguir-te! Que será de nós?”

Quando falamos de milagres estamos tratando sobre um modo de vida organizado para gerar segurança em um mundo que nos ameaça. Qualquer questionamento que levante a possibilidade de não esperar por milagres produz a mesma angústia que sentiu o jovem rico, a de ter todos os amparos construídos até então derrubados. O que parece inaceitável.

Mas até aqui apenas justifiquei os conflitos que estamos experimentando neste momento de surgimento de uma nova consciência. A pergunta a ser respondida é a que reúne os lugares comuns desta nova consciência na Betesda. Alguns prováveis acordos:

1. Não podemos duvidar do poder de Deus em realizar um milagre, muito menos de que milagres possam acontecer. Negar a possibilidade do milagre é negar a natureza de Deus, a dinâmica surpreendente da vida tanto quanto diversos depoimentos registrados na Bíblia. Nosso questionamento está sobre o posicionamento de Deus frente ao nosso anseio por milagres. Nossa questão seguinte é se devemos organizar nossa a vida a partir da expectativa de milagres. Mais ainda, se devemos nos empenhar pelo milagre ou fazer dele objeto de nossa oração.

2. Nem a quantidade, nem a qualidade de nossas orações estão relacionadas com a realização divina de um milagre. O Deus da graça nada faz em nosso favor porque somos mais ou menos convincentes, mas porque é misericordioso. A noção de que a intensidade da fé e o volume de oração e demais disciplinas devocionais podem nos aproximar da chance de um milagre se assemelha à lógica pagã de espiritualidade. Denúncia feita por Jesus no sermão da montanha. (Mt 6.7- 8) Relacionar milagre com desempenho esvazia o Deus bíblico de sua bondade, conhecimento e compaixão.

3. O milagre não é a solução divina para o problema do sofrimento humano. Se a solução para o sofrimento humano fosse o milagre, Deus deveria realizar todas as curas e livramentos que a dor humana reivindica. Se Jesus não curou todas as pessoas, ao contrário, seu ministério teve um alcance geográfico minúsculo: a galiléia, é porque sua resposta ao sofrimento humano não foram os milagres por ele realizados. Sua resposta ao sofrimento humano foi a solidariedade de Deus, que se fez idêntico e nos ensinou a viver com coragem e esperança. No pão partido e na carne sofrida. No vinho bebido e no sangue derramado. No prazer e na dor. Inteiramente solidário. Completamente imitável.

Se, portanto, os milagres realizados por Jesus não resolveram o problema do sofrimento humano, eles incorporaram uma mensagem. O que eles significaram importa mais do que o que eles desempenharam imediatamente. Nossa leitura dos evangelhos deve se empolgar menos com o poder demonstrado e muito mais com os valores indicados.

4. Os milagres na Bíblia nunca tiveram êxito em gerar amigos para Deus e nem pessoas melhores. Toda seqüência prodigiosa na Bíblia é seguida de decepção para Deus. É a história do Êxodo, os dez prodígios das pragas não endureceram apenas o coração de Faraó como também o do povo hebreu que continuou pronto a dar as costas a Deus e a Moisés a qualquer instante. É a história dos evangelhos. Onde estava a multidão de pessoas beneficiadas pelos milagres de Jesus no momento da crucificação? Por que os favorecidos pelos milagres não se tornaram os amigos mais fiéis de Jesus? Depois de todos os milagres, por que Jesus clama: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que depois de tantos milagres realizados Jesus morre solitário e questionável? A Bíblia não seria a história do fracasso dos milagres em promover a vida humana?

5. Jesus, nosso modelo de vida, em momento algum foi beneficiado pessoalmente por qualquer milagre. Para escapar das ameaças precisou se esconder como qualquer homem faria (Jo 8.59). Na tentação do deserto, recusou todas as insinuações para que buscasse um milagre que facilitasse sua vida e carreira. Como afirma Ricardo Gondim no artigo publicado recentemente em seu site, “Tragédia, milagre e fé”[4]:

“Considero, inclusive, que nossas inquietações possam ser respondidas na tentação de Jesus no deserto. Trato o episódio como chave de compreensão de como podemos lidar com a vida. O Espírito levou Cristo até o deserto para ser tentado. Ali o diabo ofereceu três vantagens para que Jesus enfrentasse o desafio de viver: provisão, livramento e prosperidade. Caso aceitasse transformar pedras em pães, todos os famintos do mundo poderiam reivindicar a mesma coisa; se pedisse o socorro dos anjos, todos os acidentes seriam “evitáveis”; ao receber os reinos do mundo por decreto, o livre arbítrio humano ficaria anulado. Jesus rejeitou ter a fome satisfeita por magia; não permitiu que se criassem expectativas falsas de um mundo sem percalços; e rechaçou conquistar os reinos deste mundo pelo poder. Preferiu mostrar em sua própria vida que liberdade era a maior dádiva que Deus nos concedera.”

6. Não há nenhuma indicação na Bíblia de que devemos esperar por uma vida blindada. Estamos sujeitos aos acidentes da vida. Gostamos de citar as palavras de Jesus: “no mundo tereis aflição, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”. E, se vencer o mundo como Jesus significa experimentá-lo do mesmo modo, inclusive uma com a possibilidade de uma morte injusta e violenta, certamente ninguém deve esperar ter um “corpo fechado” por Deus. Dizer ‘quero vencer o mundo como Jesus venceu’ significa dizer ‘não quero nenhum livramento divino de nenhum mal que possa vir sobre mim’, porque foi assim que Jesus se comportou.

7. O milagre é um evento sobrenatural, portanto não está ao alcance de qualquer movimento humano. Sendo assim, cabe a nós conduzirmos a nossa vida a partir daquilo que nos compete. Precisamos viver independentes de qualquer milagre. Pois se o milagre cabe a Deus e a uma dimensão que nos escapa, nada poderemos fazer para torná-lo viável. Se Deus atua milagrosamente contra os sofrimentos humanos, não há nada que façamos que possa tornar esse agir melhor ou mais freqüente, senão, falamos de um agir divino deficiente, de um agir divino que carece do agir humano para ser mais competente. Portanto, se há a possibilidade do milagre, ela não pode ser algo sobre o que estabelecemos nossos valores, expectativas e decisões. Se milagre é milagre não podemos contar com ele. Se é milagre o que Deus pode ou não fazer, precisamos viver como se nunca fosse acontecer.

Se milagre me escapa, organizar minha vida na expectativa de um é uma irresponsabilidade e uma insensatez. Talvez o motivo pelo qual Jesus conta a parábola do administrador desonesto com um elogio à sua inteligência. “O senhor elogiou o administrador desonesto, porque agiu astutamente. Pois os filhos deste mundo são mais astutos no trato entre si do que os filhos da luz.” (Lc 16.1-15) Flagrado em seu delito, o administrador resolveu a encrenca na qual se meteu sem contar a misericórdia de seu senhor e das demais pessoas. O resultado foi um plano brilhante que o cercou de amigos. Mesmo reprovável em um primeiro momento em sua moralidade, foi admirável em sua atitude diante da vida.

8. Qualquer teologia que desenhe um deus aquém de você deve ser descartada como uma idolatria. Na Bíblia, Jesus escolhe a figura do pai para descrevê-lo o mais próximo de nossa compreensão. A comparação é expressa basicamente assim: se vocês pais, sendo maus, sabem dar coisas boas aos seus filhos, como não vos dará tudo o que é bom o Pai que está no Céu. Se quisermos nos aproximar ao máximo da compreensão de como Deus age precisaremos, como Jesus, pensá-lo a partir de nosso ideal de paternidade. É André Torres Queiruga[5] quem propõe o seguinte exercício: o que pensar de um pai que só providencia alimento e segurança para os seus filhos se os vizinhos intercederem? E o que dizer de um Deus que para agir exige ser lembrado de seu papel de provedor? Se eu em minha paternidade supero essa paternidade divina é porque não estou falando do Deus de Jesus, mas de um ídolo.

Mas se os seus filhos passam fome e sofrem violência, o que pensar de Deus senão que ele faz o papel inverso? Deve ser ele quem clama pelos seus filhos a mim e a você para que façamos algo. Porque se a iniciativa solidária é minha, se o ponto de partida de solução é meu, então eu sou melhor que esse deus. Os vizinhos são mais paternos presentes que o pai em sua própria casa. Mas nem sou eu o primeiro a me solidarizar e nem é uma intervenção sobrenatural a solução para o sofrimento humano. Mas sim, a solidariedade humana. Jesus se colocou definitivamente em todos os que sofrem (“os pequeninos”). Quem se solidariza com os que sofrem encontra e abençoa o próprio Deus neste mundo. (Mt 25.31-46)

A oferta de esperança da igreja ao mundo é de solidariedade e não promessas de milagre. Colocar as promessas de milagre como discurso da igreja é esconder-se da responsabilidade de agir. Gente solidária é a única esperança para gente que carece.

9. Se Deus não privilegia ninguém (Deus não faz acepção de pessoas, At 10.35-36), qualquer milagre que faça com o fim de atender a uma carência deve se estender a todos que também carecem. Se Deus transformou uma mulher estéril em uma mãe, não precisaria, na mesma comunidade, também ter impedido outra mulher de ser estuprada? Se Deus mandou alguém presentear outro com um carro novo, não deveria também ter providenciado alimento para as crianças que morreram naquele mês de desnutrição? Não deveríamos ao menos estranhar essas contradições e, novamente, suspeitar de uma teologia que propõe um deus pior do que nós?

10. Um cristão no exercício de sua consciência solidária precisaria sentir-se constrangido ao buscar um milagre enquanto milhões de pessoas simultaneamente padecem pela epidemia da AIDS. Sua oração deveria ser um clamor pelos outros sempre e não por suas aspirações.

11. Causam estranheza testemunhos de milagres parciais. A pessoa sofre um acidente, tem uma perna amputada e uma lesão que comprometerá sua locomoção definitivamente e testemunha o milagre de Deus impedir sua morte. Se foi feito por Deus, porque atendeu em parte às necessidades? Não seria esse tipo de testemunho um esforço coletivo por sustentar a cultura dos milagres e livramentos? A necessidade de acreditar que podemos contar com os milagres é tanta que interpretamos os eventos sempre para encontrar um fim glorioso.

12. Incomoda qualquer mente questionadora o fato de as ofertas de milagres, ou as expectativas por eles, excluírem um grupo de sofrimentos e limites humanos. A expressão é de Ricardo Gondim, só oramos por milagres dentro de uma zona de plausibilidade. Não esperamos muito ou nada por milagres em determinadas circunstâncias: alguém que sofreu a amputação de um membro do corpo, uma criança com Síndrome de Down, pessoas com nanismo e assim por diante. Temos mais ímpeto em orar pelos milagres que possuem alguma chance de acontecerem. Cogitamos o milagre com mais modéstia se possui muito pouca chance de acontecer. Sequer o cogitamos em situações extremas.

13. A Bíblia não pode ter sua interpretação superidealizada. Talvez a mais trágica crença incorporada pela tradição evangélica seja a que coloca a Bíblia acima da vida. Não quero substituir uma pela outra. Também não me atrevo a colocar a vida acima da Bíblia. Mas precisamos entender que só há uma Bíblia com autoridade final sobre nós: aquela que está inexoravelmente conectada à vida. A Bíblia vivida é a única que tem autoridade sobre a vida sem a sufocar, ou mesmo violentar. Uma Bíblia que transcende à vida, acima dela, independente dela, não significa nada, não diz nada, geralmente mata. A Bíblia precisa ser pensada em sua mundanidade.

Como um livro de palavras, sendo todas as palavras sempre precárias para dizer com precisão, a Bíblia carece de nosso esforço sensível, amoroso e modesto de interpretá-la a partir da única realidade que dispomos: a vida que vivemos. Por um cristianismo que contemple os desafornados, uma Bíblia vivida que nos liberte da opressão de uma Bíblia anterior e acima da vida.

A cultura dos milagres – essa que se apresenta como um modo de vida amparado nas intervenções milagrosas de Deus – está necessariamente construída sobre uma interpretação idealizada da Bíblia. O que torna a atitude de alguns crentes irresponsável, absurda, até mesmo criminosa, mas coerente com a sua compreensão da Bíblia:

Sem socorro, menina morre enquanto pais rezavam

Uma menina americana de 11 anos morreu de diabetes enquanto seus pais rezavam pela sua cura, sem chamar médicos para socorrê-la, informaram as autoridades de Wisconsin.

Os pais da garota, Dale e Leilani Neumann, foram acusados de homicídio culposo (sem intenção de matar). O casal acredita somente na Bíblia e está convencido de que sua filha estava nas mãos de Deus, segundo declarou a mãe da menina.

Segundo a agência Ansa, a garota morreu no dia 23 de março passado em sua casa em Weston, vítima de um nível muito baixo de insulina no sangue. Os pais nunca a levaram a consultas médicas.

Redação Terra

Não faz o menor sentido sustentar uma interpretação da Bíblia que não experimentamos de fato, ou que contradiz a vida. A autoridade da Bíblia está exatamente em sua promoção da vida: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra.” (2Tm 3.16-17)

Tenho ouvido com mais freqüência que gostaria, quando no esforço por compreender Deus e suas manifestações em nossa vida, a advertência de que Deus não é alcançável pela lógica humana, de que ele está acima da nossa lógica. O que me parece um absurdo completo. Se de fato fosse assim, haveria um fosso intransponível entre Deus e a humanidade. Sequer dele faríamos qualquer referência. Nem o nome Deus seria pronunciado. A dizermos “Deus” o fazemos sempre de dentro de uma lógica. Porque palavras só significam algo dentro de uma lógica.

Dizer que Deus não cabe em uma lógica é outra coisa. Até porque nenhuma verdade cabe absolutamente em uma lógica. Ninguém cabe dentro de uma lógica. Muito menos Deus. Portanto, abdicar do pensamento para conhecer Deus é matar “Deus” em nossa experiência. O que dá razão novamente a Nietzche. Mas não apenas matamos Deus com uma abdicação do pensamento, matamos a nós mesmos. Desistimos do que nos toca e nos reivindica compreensão.

Portanto, o exercício de construir uma consciência é idêntico ao de viver. É com esse compromisso que somos puxados pela consciência. O de viver com sentido. É com esse compromisso que precisamos responder as questões aqui levantadas. O de fazer teologia para a vida.


[1] Este artigo foi apresentado no 12º Encontro de Pastores da Igreja Betesda no Nordeste, realizado entre os dias 30/04 e 02/05/2008. Minha pretensão foi a de reunir argumentos que têm constituído uma ampla conversa dentro da denominação e oferecer uma pauta de discussão.

[2] A Igreja Betesda é uma denominação de origem assembleiana, com 27 anos de fundação. Desde então foi marcada pela busca de práticas e reflexões afinadas com os novos anseios do mundo moderno. Acabou por se desvincular institucionalmente das Assembléias de Deus no Brasil.

[3] Acredito que a experiência da Igreja Betesda sirva de amostragem para um fenômeno que a todos envolve. Senão com a atitude assumida de ressignificar a teologia, ao menos com a sensação de esgotamento do modelo até então vivenciado e anelo por algo novo.

[5] QUEIRUGA, André Torres. Fim do Cristianismo Pré-moderno. Editora Paulus.