sexta-feira, 25 de maio de 2012

0

Sem direito de resposta




Continuo bombardeado. Perguntas, inquietações, constrangimentos se amontoam. Quase todos os dias alguém chega para contar que “pastor fulano acabou com você no sermão do domingo”. Não passa uma semana sem que recadinhos desaforados entulhem os contatos do site. Já me xingaram com todos os predicados que a piedosa linguagem gospel permite.


Insisto em escrever. Sigo em busca do que me faz sentido. Alio-me a pessoas que não se acovardam naquilo que pensam, sentem, refletem. Leio vorazmente. Procuro preencher a alma com beleza. Faço-me amigo de poetas. Tento brincar com as palavras. Trato de valorizar parênteses – espaços em que não valho por título, fama ou riqueza. Continuo a pastorear minha comunidade de fé – a Betesda.


Diante de tanto mal estar, fico com o “Soneto Antigo” de Cecília Meireles:


RESPONDER as perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.


Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma, que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.


O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.


Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.


Soli Deo Gloria


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/minhavida/sem-direito-de-resposta/
0

Ímpios, incrédulos e profanos! Como deveríamos referir-nos aos não cristãos?





Por Hermes C. Fernandes


Ontem, enquanto falávamos sobre Maçonaria, apresentei como uma das razões pelas quais há tanta resistência à esta sociedade no meio evangélico, o fato do iniciando ter que admitir-se profano, e alguém que está nas trevas em busca da luz. Como um cristão genuíno, seguidor d’Aquele que é a Luz do Mundo, poderia aceitar tal alcunha? Entre as pessoas que assistiam à nossa palestra havia dois jovens pertencentes a um capítulo da Ordem DeMolay, que se apresenta como uma sociedade discreta de princípios filosóficos, fraternais, iniciáticos e filantrópicos, patrocinada pela Maçonaria, para jovens do sexo masculino com idade entre 12 e 21 anos. Após a palestra, eles me procuraram para me convidar para uma sessão aberta em seu capítulo. Disseram-me que o termo “profano” já não é usado em alguns ramos maçônicos, por compreenderem tratar-se de um termo extremamente pejorativo.


Enquanto conversávamos, lembrei-me de que nós mesmos usamos termos muito pesados para referir-nos àqueles que não professam a nossa fé, entre os quais, destacam-se “ímpios” e “incrédulos”. Como deve sentir-se um não cristão quando chamado de ímpio? O que é um ímpio, senão aquele que pratica a impiedade? Poderíamos afirmar que todo não cristão é um ímpio? Alguém que vive de maneira ilibada, bom chefe de família, cidadão considerado exemplar, deveria ser chamado assim?


E quanto ao termo “incrédulo”? Por definição, incrédulo é todo aquele que não professa crença alguma. Logo, não cabe em qualquer um que não seja cristão. Um muçulmano não é um incrédulo. Tão pouco um espírita kardecista, ou budista. Todos professam alguma crença, nem que seja na própria ciência.


Talvez o termo que melhor se adeque seja “pecador”. Porém, este termo não deve distinguir cristãos de não cristãos; todos somos igualmente pecadores.


Que tal se deixássemos de rotular as pessoas, e começássemos a tratá-las da maneira como Jesus as trataria? Talvez assim elas se abrissem mais à mensagem do Evangelho.
 
 
0

Somos como o ano velho por isso tememos o novo



O que estou fazendo com as minhas partes que ficaram paradas?


O que está você fazendo com as suas.


O que estou fazendo para renovar o que há de antigo em mim, tão arraigado que até já o suponho convicção?


O que você está fazendo como que há de antigo em você, e que talvez se exteriorize com a aparência de ser o mais moderno?


Somos como o ano velho. Como um montão de anos velhos, acumulados. Vivemos a repetir o que já sabemos, o que já experimentamos. Repetimos, também, sentimentos, opiniões, ideias, convicções Somos uma interminável repetição, com raras aberturas reais e verdadeiras para o novo do qual cada instante está prenhe.


Somos muito mais memória do que aventura.
Somos muito mais eco do que descoberta.
Somos muito mais resíduo do que suspensão.


Somos indissolúveis, pétreos, papel carbono, xerox existencial, copiadores automáticos de experiências já vividas, fotografias em série das mesmas poses vivenciais. Somos um filme parado com a ilusão de movimento. Só acreditamos no que conhecemos. Supomos que conhecer é saber.


O ser humano é feito de tal maneira inseguro que a sua tendência é sempre a de reter as experiências e fazer da vida uma penosa e longa repetição do já vivido. O ser humano adora repetir. Ele precisa repetir, porque não está preparado para o novo de cada momento, para o fluir do Todo na direção da Transformação Permanente. Ele é uma unidade estática e acumuladora, num cosmos mutante e em permanente transformação.


Aceitar a mudança e a transformação é ameaçar tudo o que o homem adquiriu e guarda com avareza, para tentar explicar a realidade e a vida. Mas cada vez que o ser humano usa o instrumental guardado com tanta avareza para explicar o real, este já se transformou e o que antes era eficaz, novo, “descoberta importante”, logo se transformou numa informação parcial, num mero dado da realidade. Esta é sempre mais rica. Está sempre grávida de transcendência.


Aí está o grande dilema: para explicar o real só temos a nossa experiência anterior, mas esta só é válida no momento da sua revelaçãoo. Um segundo depois já ficou parcial, relativa, incompleta. Não temos, então, instrumental de aceitação do novo e o que temos fica mais velho e superado a cada aplicação.


Por isso é mais cômodo, fácil e simples para o ser humano cair na repetição do que já é, do que já sabe, do que já viveu. Ele chega a chamar isso de “conhecimento”, quando é, apenas, cristalização de um saber anterior.


Por isso o ser humano tende tanto ao conservadorismo: atingida uma conclusão, montado um sistema de interpretação da realidade, logo o ser humano se aferra a ele (sistema) e, numa extensão, aplica-o a todo o real. Se o sistema é lógico, então, a mente racional se satisfaz e com isso o homem se supõe portador de uma verdade. Aferra-se então a ela, passando a ser um de seus defensores. Cria, a partir da verdade na qual crê e passa a repetir escolas de pensamento, doutrinas, religiões, ideologias, esquemas de interpretação da realidade, correntes, seitas, crenças, opiniões, convicções e até fanatismos.


Cria uma espécie de dependência das próprias verdades. Passa de senhor a escravo. E quanto mais escravidão mental, mais sensação de liberdade.


Sim, somos viciados na próprias crenças, dependentes das próprias verdades, toxicômanos das próprias convicções. E, como ocorre em todas as dependências, precisamos repetir as nossas verdades para que não caiamos no pânico da dúvida, na ameaça da mutação. Inventamos uma pacificação ilusória e grandiloquente. Seu nome: coerência.


Coerência passa a ser grande virtude. “Fulano, conheço-o há trinta anos. Sempre na mesma posição. Tipo coerente está ali!” E assim saudamos a alguém que parou no tempo, que tão logo ganhou uma convicção fechou-se a todas as demais.


Assim nas crenças, assim nas ideias e assim, também, nos sentimentos, nas vontades e nos hábitos. Uma pessoa diz, com orgulho, que há quarenta anos torce pelo mesmo time. Fico a pensar no que ela perdeu de vida, alegria e descoberta nesse tempo todo, de oportunidade de apreciar a qualidade dos demais, a beleza da camisa dos outros, a virtudes dos antagonistas, o estilo dos adversários. No afã de querer a vitória das suas cores, quantas outras vitórias dos outros ela deixou de fazer também suas, quantas alegrias perdeu.


A rigor não sabemos o que estamos fazendo para renovar o que há de antigo em nós. Em geral, nada. Não me refiro ao que há de permanente, pois o ser humano é feito de permanências e provisoriedades. As permanências (ligadas às essências) devem ficar. Mas as provisoriedades que se tornaram antigas, paradas e repetitivas e que ali estão remanescentes por nossa preguiça de examiná-las ou por nossa incapacidade (medo) de removê-las, estas precisam ser revistas, checadas, postas em discussão, em debate e arejamento.


… Criar é manter a vida viva. Criar é ganhar da morte. Morte é tudo o que deixou de ser criado. Criatividade é, pois, um conceito imbricado no de vida. Não há como separar os dois conceitos. Vida é criação e criação é vida. Só criatividade nos dará uma possibilidade de solução para cada desafio novo. As soluções jamais se repetem. Nós é que nos repetimos por medo, comodismo ou burrice. Adoramos repetir, tememos renovar, por isso tanto sofremos.


[TÁVOLA, Artur da - Cada um no meu lugar - Crônicas - Editora Nova Fronteira, 1984, pg.63]


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/perolas/somos-como-o-ano-velho-por-isso-tememos-o-novo-artur-da-tavola/
0

Deus, liberdade e suicídio





Ficou famosa a frase de Albert Camus sobre o suicídio: “O suicídio é a grande questão filosófica de nosso tempo, decidir se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia.” O existencialista francês não contemplou, com certeza, a questão pelo ângulo que vou abordar. Pego, entretanto, a afirmação dele para mostrar que a inciativa de acabar com a vida radicaliza a ideia de liberdade.


O suicida desafia as questões fundamentais do livre arbítrio. A liberdade de dizer sim ou não à própria existência contrapõe qualquer conceito de soberania divina. Até onde Deus controla o dedo que puxa o gatilho ou a mão que enlaça o pescoço? O suicida cumpre algum propósito preconcebido antes de seu nascimento? Insisto em perguntar (sem cinismo): “Quem se mata interrompe por conta própria os planos divinos ou cumpre o papel que lhe foi designado antes da fundação do universo?”.


Para melhor entender o embaraço, imaginemos um debate sobre os limites da liberdade humana. O auditório está lotado. De um lado fica o grupo que defende teses deterministas: “cultura, genética e forças econômicas se somam a infinitos fatores circunstanciais, e ninguém é livre”. À esquerda, existencialistas meneiam a cabeça. Com chavões sartreanos, repetem: “a existência precede a essência, e a existência acontece no imperativo de ser livre”. No centro, teólogos agostinianos, dedo em riste, deixam claro: “a humanidade só conhece a liberdade de pecar”. Nas últimas cadeiras, niilistas gritam: “a vida não tem sentido algum e a própria necessidade de dar sentido à existência não passa de desespero em face da morte”. De repente, no meio da algazarra, um jovem se levanta. Ele carrega um revólver. Enfia o cano na boca, e antes que alguém possa evitar, puxa o gatilho.


No exato instante em que o rapaz escolhe acabar com a própria vida, os debatedores, perplexos, se entreolham. Não há o que dizer.


O susto deixa várias perguntas sem resposta. A brutalidade do gesto estava “escrita e determinada” por quais fatores? Deus? Ele tinha o código genético de matar-se? Em vidas passadas, selou aquela hora? Ou Deus o predestinou para tal insanidade? Alguma mão cobria a que executou o gesto? Quem ajudou ou, pior, empurrou o suicida para o abismo? É possível entender as forças sociais, genéticas ou instintivas que levam um rapaz a um ato tresloucado?


Por mais de um motivo, Camus acertou. O suicídio é, sim, um nó górdio tanto da teologia como da filosofia. No suicídio reside o mais radical e completo exemplo do livre arbítrio. A não interferência divina nas escolhas individuais ficam claras quando alguém se mata. Repetindo Sartre, o findar-se com as próprias mãos mostra que a humanidade “está condenada à liberdade”.


Aristóteles afirmou que mulheres e homens se diferenciam dos animais só por serem racionais. Descartes tentou ir além: humanos são mais excelentes por terem desenvolvido sentimentos. Rousseau, entretanto, procurou demonstrar que liberdade é o fator determinante para se entender a humanidade


Para o iluminista francês, somos livres porque dispomos da capacidade de aperfeiçoar-nos – ou de destruir-nos. Só os humanos conseguem libertar-se de instintos naturais quando agem. Um cachorro, que carinhosamente lambe a mão do dono, não é movido por virtude. Ele age sem noção. Desconhece que pode morder ao invés de lamber. Mas o torturador arranca as unhas do preso e o marido espanca a companheira por maldade; isto é, existia a possibilidade de não fazerem aquilo. Se em qualquer ação forçada, o crime se torna inimputável, o pitbull que destroça a criança não pode ser levado a qualquer tribunal e o pedófilo, sim.


O conceito de liberdade implica em ações não coagidas – ou manipuladas. Um ato só é virtuoso ou viciado se existir a possibilidade de eleger o oposto. É possível afirmar: liberdade é vocação. Deus decidiu criar o mundo para a liberdade. Seu intento único é amar; e liberdade é atributo do amor. Deus não criou por carência. Ele escolheu rodear-se de pessoas que pensam, sentem e decidem não porque necessitava dar satisfação a outra divindade ou para cumprir alguma demanda misteriosa. Deus criou porque sua natureza essencial é amar.


A Bíblia expressa com clareza: Deus é amor. Quem ama busca relacionar-se. E relacionamento significa valorizar o outro. Deus estima tanto que se expõe e se vulnerabiliza. Caso nunca tivesse criado, não lidaria com pessoas imperfeitas. E jamais experimentaria dor e frustração. Em seu apreço, a liberdade humana passa a ser o limite que Deus impõe a si mesmo.


Tal fragilidade pode ser bem compreendida nas metáforas do profeta Oséias e do Filho Pródigo. Nos dois, os amantes se veem em situação embaraçosa. O comportamento tanto da mulher como do filho causam dor; escapam ao controle do marido e do pai. Na parábola, o filho sai de casa. O pai não reage. A porta precisa ficar aberta. Não lhe interessa manter o filho constrangido. Resta ao velho esperar. O profeta se vê na desdita de amar uma leviana, que se prostitui com qualquer um. Sobra perdoar; e aguardar. Quem sabe ela voltará?


Comparando Deus a um imperador, temos uma leve insinuação da relação amor, liberdade. Certo rei dispõe de várias mulheres no harém. Ele, porém, se apaixona por Sulamita. Caso ordene, ela será conduzida à câmara real como objeto de prazer. Mas o monarca não quer desse jeito. Ele a vê em outro patamar. Para isso, precisa conquistar o seu coração. Mais complicado: ele também quer ser dela. Na busca do amor, por mais poderoso que seja, o imperador ficou vulnerável, indefeso.


Deus deseja cativar. Ele anseia por filhos, por amigos. E também quer ser nosso. Os amantes não se forçam. Impor-se e amar não combinam.


Deus é frágil? No amor, sim. Mas afirmar isso não o enfraquece, apenas descreve o poder do amor. O sofrimento de Deus não diminui a sua grandeza, apenas distingue o Aba de Jesus dos ídolos gregos. O sentimentos divinos ajudam a entender: o poder mais maravilhoso do universo não usa da coerção, ele é a plenitude dos afetos.


Jesus encarnou Deus e vimos as suas lágrimas. No Galileu, Deus se revelou empático. Por causa do Nazareno, ficou impossível conceber que a divindade tudo ordena, tudo dispõe e tudo orquestra. Não existe um deus que toca projetos sem levar em consideração as pessoas, que ele jura amar. Para promover a sua glória, Deus não tece sorrateiramente os fios da história. Não há subterfúgio em seu caráter.


As carnificinas de Aushwitz, Ruanda e Iraque não foram planejadas em algum tempo remoto. Deus não guia a bala perdida que mutila a criança na favela. A lógica que tenta transformar Deus em títere, que às vezes deixa os eventos correrem frouxos, é cruel. Se, para capitanear a história Deus fecha os olhos (vontade permissiva), ele é maquiavélico. Se orquestra horrores como etapas necessárias para cumprir uma ”vontade soberana”, ele é monstruoso. Um deus cruel, maquiavélico e monstruoso não merece ser adorado.


Começo, meio e fim da história não estão prontos. Se Deus se sente feliz em gerenciar cada nano evento e se preordenou, em sua providência, todos os fatos, a humanidade vive uma farsa. E se tudo está pronto: busca de justiça, indignação contra o mal e solidariedade não passam de iniciativas fúteis.


Prefiro aceitar que o mal nunca fez parte de qualquer projeto. O Deus da Bíblia sofre com a morte de inocentes e se indigna com a injustiça que condena bilhões à miséria. Ele ainda conclama homens e mulheres de boa vontade a serem pacificadores.


Não é certo confundir Jesus de Nazaré com o deus frio e distante dos gregos. Determinismo, antônimo de liberdade, anula o amor. Deus não planejou, determinou ou ajudou o rapaz a dar fim à própria vida. Vale bater na mesma tecla: Deus é amor.


“… e a fraqueza de Deus é mais forte do que os homens”. [1Coríntios 1.25].


Soli Deo Gloria


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/estudos/deus-liberdade-e-suicidio/
0

Onde está a sua fé?




Criam-se ditados que, por serem repetidos à exaustão, acabam inculcados na mente das pessoas e interferindo na própria forma como veem a vida. Quem nunca ouviu: “Depois da tempestade, vem a bonança”?. Tem ainda um que é mais próprio do meio cristão, em especial, evangélico: “Com Jesus no barco, tudo vai bem.”


Discordo. Essa é uma visão simplista, supersticiosa, que usa Jesus como talismã. Ora, se o talismã está no barco, ele não afunda, tudo irá bem. Será? Não é bem assim.


Com Jesus no barco, o barco pode afundar. Depois da tempestade pode vir o naufrágio, o que não quer dizer que Deus estivesse ausente. O apóstolo Paulo, no Mar Adriático, quando era levado para seu julgamento em Roma, sofreu um naufrágio, o barco se acabou. E quem é que pode dizer que Jesus não estava com ele?


Tempestade é algo assustador. Gostamos de chuva, aquela chuvinha suave, gostosa, que ajuda a dormir melhor com o barulho dela no telhado. Mas uma tempestade, com ventos muito fortes, muitos relâmpagos, com uma precipitação muito grande, nos deixa logo apreensivos.


A tempestade bem pode ser uma metáfora das situações complicadas e difíceis que temos em nossa vida. Crises de toda ordem, consequências de decisões mal tomadas, tragédias que independem de nossa vontade, enfim, tempestades que podem assolar a vida de qualquer um de nós. O que fazer?


Certa vez, Jesus, junto com os discípulos, estava atravessando o Mar da Galileia, quando o barco em que estavam foi assolado por uma grande tempestade, ventania, fazendo parecer que o barco ia soçobrar. E Jesus dormia. Os discípulos o acordaram: “Mestre, vamos morrer!”. Então Jesus acorda, interrompe a tempestade, acalma o mar e dá uma bronca nos discípulos: “Onde está sua fé? Por que vocês são tão medrosos?”


Quando Jesus pergunta onde está a fé dos discípulos não creio que seja fé para acalmar a tempestade, para intervir na natureza, para dar ordem ao vento e ao mar. A pergunta tem muito mais a ver com a condição que os discípulos deveriam ter para enfrentar aquela tempestade sem ficarem apavorados. Para isso e preciso fé.


Fé para atravessar a tempestade, calma suficiente para fazer as manobras necessárias para o barco não afundar. Se o barco afundasse, presença de espírito suficiente para tentar se salvar a nado. E fé para enfrentar até mesmo a morte.


Veja que ao clamor: “Mestre, vamos morrer”, Jesus responde: “Onde está a sua fé”. Vamos morrer, sim, mas onde está sua fé?


Para qualquer crise é preciso ter fé. Uma fé madura, não um poder mágico que manipula as forças da natureza, mas a que faz ter força o suficiente para atravessar qualquer situação. Fé que gera uma maturidade tal que traz a consciência de que mesmo a morte terá de ser enfrentada, e com serenidade.


Fé que traga a capacidade de continuar sereno e esperançoso, mesmo que não haja um livramento espetacular, que produza maturidade para sorver as tragédias pessoais e jamais deixar de acreditar que o Senhor está conosco na alegria e na tristeza, na riqueza e na pobreza, na saúde e na doença, na vida e na morte.


Acho que era essa fé que Jesus estava a sentir falta nos seus discípulos.


Márcio Rosa da Silva


Vi no http://marciorosa.wordpress.com/2012/05/18/onde-esta-a-sua-fe/
0

A renitência do bem



Permitamos, por um pouco, imaginar a vida em opostos. Contraponhamos alto e baixo, quente e frio, necessário e casual, áspero e macio. Desprezemos a média. Vamos nos ater a bem e mal, sem suas nuanças.


O mal é atabalhoado e o bem sabe esperar. Paciente. Sem afobação, entende que serralheiros, especialistas em forjar grilhões, um dia perderão seus lugares. E os poetas, artesãos da beleza, continuarão a falar de espadas fundidas em arados.


O mal é bruto e o bem, delicado. Frágil, carece de proteção; pede que humildes e mansos ousem defendê-lo. O bem é simples, depende de ambientes despretensiosos para sobreviver. Mantem-se com o olhar sobre o indefeso, importa-se com o exilado e procura entender as razões do proscrito.


O mal é irascível e tempestivo, mas o bem, íntimo. Suas origens estão ligadas às entranhas da alma, de onde brotam os afetos. O bem vem do âmago, da medula do espírito. Para sobreviver, não se apóia em estruturas poderosas. Discreto, não carece de luz, como as mariposas.


O mal se impõe e o bem corteja. Atrai por suas insinuações. Seduz, desde as mãos delicadas da fisioterapeuta que exercita o ancião, desde o rosto da assistente social que pesa a criança subnutrida, desde o esforço do voluntário que distribui cobertor para o desabrigado na enchente.


O mal é vago e o bem, concreto. Sua realidade, desce no conta gotas do sangue doado; pode ser atestada pelo empenho do médico estrangeiro quando escolhe viver na Faixa de Gaza; na disposição do rapaz que marcha pela paz, mesmo no frio que congela a ponta do nariz e nas bombas de gás que o fazem chorar.


O mal se dissolve em nada. O bem, que escapou ao pelourinho, há de resistir o perene massacre do opressor. Quando o ódio tenta extingui-lo, renasce na esperança de meninos e meninas. Celebrado das catedrais aos bordéis, o bem se perpetua, simultaneamente, humano e divino, angelical e terreno.


Soli Deo Gloria


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/meditacoes/a-renitencia-do-bem/
0

No meio do jardim tinha uma árvore





Tinha uma árvore no meio do jardim. Lá, onde o dilema divino era apenas trazer o homem ao mundo ético, e isso, de forma ética. Como fazê-lo entender o bem, sem conhecer o mal? Como criar luz, aparte das trevas? Como fazê-lo experimentar a vida, sem antes provar da morte?


Sem o conhecimento do mal, o homem não reconheceria o bem. E sem o conhecimento do bem e do mal o homem seria uma eterna ingênua criança. Ele nunca alcançaria o status de “filho de Deus”, que, como Deus, conhecedor do bem e do mal.


Deus, como bom pai, queria um homem maduro, livre e independente. Um ser consciente de si mesmo e, por isso mesmo, com uma consciência pura capaz de discernir entre o bem e mal.




Desconhecendo o bem ou o mal, não poderia fazer escolhas pautadas em sua própria consciência. Incapaz de julgar por si mesmo, o homem teria que, para não ser compararado a um robô pré-programado, ser capaz de, no mínimo, agir voluntariamente, de criar suas próprias escolhas.


O fruto da árvore que estava no meio do jardim, seja lá como o entendermos, é que traria poder ao ser humano, para agir no universo ético.


Por ser essencialmente bom, Deus não poderia induzir o homem a provar daquele fruto, pois é claro que o conhecimento ético leva o homem às catacumbas da morte.


Como um criador amoroso, Deus precisava garantir que o homem, criado à sua semelhança, fosse um ser moralmente livre, com vontade livre. Livre para amar, ou odiar. Livre para obedecer, ou desobedecer. Livre para se relacionar, ou para se isolar. Livre para viver, ou para morrer.



0

Frágeis intuições sobre o amor




O que se pode falar do amor? Inaptos, hesitantes, imperfeitos, homens e mulheres guardam frágeis intuições sobre o amor. Há de se concordar com Miguel de Unamuno: “o amor é o que há de mais trágico no mundo e na vida; o amor é filho da ilusão e pai da desilusão; o amor é a consolação na desolação, o único remédio contra a morte, da qual ele é irmão”.


Amamos antes de sabermos explicar como funciona o amor. Não há teoria suficiente que elucide os retratos da mãe debruçada sobre o berço, do reencontro de amigos separados há muito por uma guerra, do lamento do filho diante do túmulo da mãe. As cartas ridículas dos namorados valem por qualquer tratado sobre o amor.


Contudo, dá para rabiscar algumas ideias (incipientes e precárias, claro) sobre o amor. E a partir de três concepções: liberdade, excelência e personificação.


Liberdade


André Comte-Sponville diz que amor “não é dever, mas virtude… [já que] dever é uma coerção e virtude, uma liberdade”. Nietzsche afirma corretamente: “O que fazemos por amor sempre se consuma além do bem e do mal”. Para o amor não há lei. Sempre que amor nasce do dever se esgota na rejeição. A adolescente, forçada pelos pais a um relacionamento com a divindade, desentranha sua revolta honesta: “Odeio ter que amar a Deus”.


Não existe amor sem liberdade. Agostinho sintetizou bem: “Ama e faz o que quiseres”. Se o rei mantém um harém, o faz para ter sexo, somente. No dia em que precisar de afeto, por mais déspota que for, terá que cativar. Para ser correspondido no amor, jamais poderá se impor. Ou o rei se fragiliza como qualquer namorado enquanto espera que a amada responda ao seu aceno ou fica sozinho.


Excelência


O amor se desdobra como excelência. Padre Antônio Vieira narrou uma parábola mais ou menos assim: “Certo homem saiu para caçar antes do alvorecer. Ao longo do dia, tentou alvejar vários animais. Errou todos os dardos. Ruim de pontaria foi mal sucedido em abater um bicho que alimentasse a família. Triste, voltou para casa no crepúsculo. A poucos metros da porta da choupana, deparou-se com uma cena desesperadora. Uma cobra se enrolava no pescoço do filho. Sem hesitar, o caçador retesou o arco e mirou a flecha. A cabeça da serpente estava perigosamente próxima do filho. Desta vez, acertou em cheio. E salvou a vida do filho. O que fez o pai para atingir a cabeça da áspide, se era péssimo caçador, ruim de pontaria? Como o homem se fez exímio no arco e flecha?”. O próprio jesuíta responde: “O amor”. A vida do filho corria risco.


O amor cria especialistas. Excelência nasce do afeto. As pessoas se tornam criteriosas por conta do seu bem querer. Quem ama não aceita a lógica do “de qualquer jeito” – aliás, detesta “jeitinho”. No carinho reside a meticulosidade. Cuidado refina atitudes. Os amantes não se importam em caminhar milhas extras. Quem aprecia transforma decisões banais em imperativos. Esmero e amor se irmanam.


Personalização


O amor descarta ideações. Não se contenta em sobreviver no mundo das ideias. Amor precisa se encarnar. Paixões platônicas ou virtuais se extinguem, morrem de inanição. Unamuno avaliou que o amor na relação com Deus sai do mundo da perfeição para realizar-se no real: “O amor personaliza tudo aquilo que ama. Só nos podemos enamorar de uma ideia, personificando-a. E quando o amor é tão grande e vivo, tão forte e transbordante que tudo ama, então tudo ele personifica, e descobre que o todo total, que o Universo é também Pessoa que tem Consciência, Consciência que por sua vez, sofre, se compadece e ama, como quem diz – é consciência. E esta Consciência do Universo, que o amor descobre personificando tudo aquilo que ama, é o que nós chamamos Deus. E assim a alma compadece-se de Deus, e sente que ele se compadece por seu lado, ama-o e sente-se amado por ele, abrigando a sua miséria no seio da miséria eterna e infinita, que é, pela sua eternidade e infinidade, a suprema felicidade.


Deus é, pois, a personificação do Todo, é a Consciência eterna e infinita do Universo, Consciência presa da matéria, e esforçando-se para se libertar dela. Personalizamos o Todo, para nos salvarmos do nada…”


“… pois o amor é tão forte quanto a morte… Nem muitas águas conseguem apagar o amor; os rios não conseguem levá-lo na correnteza. Se alguém oferecesse todas as riquezas de sua casa para adquirir o amor, seria totalmente desprezado” [Cântico dos cânticos, 8.6-7].


Soli Deo Gloria


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/estudos/frageis-intuicoes-sobre-o-amor/
0

Oração, eficácia e anarquia





A oração é um daqueles temas sobre os quais todo mundo tem algo a dizer, talvez mais pela experiência que qualquer coisa (como uma definição conceitual, por exemplo). É o tipo de ato mais comum para quem acredita em (um) Deus ou pertence à (uma) religião. Mas, por ser, dos atos humanos, talvez o mais democrático (ou egocrático), qualquer pessoa pode fazer a qualquer momento sem impedimento algum. As razões são sempre variáveis, e o que se espera, via de regra, é uma intervenção divina (pressupondo, pela fé, que Deus intervém).


Poucas vezes, porém, associamos a oração a práticas de cunho não (ou nada) religioso, como por exemplo, aquelas que, no cotidiano, tocam o campo da ação e da eficácia. Nesse ínterim, mais que saber sobre “o poder da oração” (dimensão sobrenatural), cabe a pergunta: o que faz a pessoa que ora (dimensão vivencial)? Em tese, ela não precisaria fazer nada (em relação a sua pauta de oração) – uma vez que, ao orar, aguarda uma resposta, milagre, revelação e intervenção da parte de Deus.


Então, quer dizer que quem ora não age, não luta, não reivindica participar da construção de sua própria história? Quero entender que não é bem por aí. Pensando na oração a partir de um princípio de mutualidade na fé em uma comunidade de fraternos, Tiago escreveu: “Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” (Tiago 5.19). Na tradução The Message, de Eugene Peterson, diz-se: “A oração de uma pessoa que vive corretamente com Deus é algo poderoso a ser levado em consideração”. Para entender melhor o lugar desta citação aqui, é preciso definir o que entendo tanto por “eficácia” como por “oração do justo”.


A eficácia tem a ver com a qualidade da ação que promove alguma transformação objetiva na realidade. Têm-se alguns objetivos que antecedem a ação e estes objetivos são cumpridos. Nesse sentido, sua relação com a oração envolve a transformação promovida no viver concreto de pessoas e em seu mundo — é preciso, portanto, não reduzir a “eficácia” da oração ao alcance/favorecimento de bênçãos e milagres em particular, o que parece ser a tendência geral. Mais importante que as fórmulas pragmáticas de eficácia — a oração eficaz como aquela “que funciona” — é saber o efeito da oração em seu modo de vida, isto é, se a oração representa uma revolução de mentalidade e de estilo de vida ou se tem sido mais um instrumento ideológico de alienação e amansamento de consciências a serviço dos sistemas de dominação e adestramento vigentes.


Vale lembrar aqui da advertência feita pelo diretor de cinema norte-americano Godfrey Reggio: “Penso que é ingênuo orar pela paz mundial se não vamos mudar a forma pela qual vivemos”. De nada adianta orar pelo governo e seus governantes, como muitos acreditam ser a orientação principal das Escrituras neste quesito (o que é questionável), sem que isto nos conduza ao patamar de indignação, protesto e denúncia quando, por exemplo, no governo há (e quase sempre há) corrupção, improbidade e injustiça. É inócuo o compromisso de oração de pastores de uma cidade, que oram, ungem e abençoam o prefeito em seu gabinete, sem a eficácia de uma conversa franca, construtiva e inteligente sobre a maneira como este e seus correligionários têm administrado a cidade. É triste quando circunscrevemos a oração apenas aos terrenos do “religioso” ou do “espiritual”, pois, assim fazendo, arrancamos seu potencial de transformação integral, desde o instante em que oramos “venha o teu reino, seja feita a sua vontade”, como nos ensina Jesus, e nos comprometemos, como corolário, a discernir o que isto significa em nossos múltiplos contextos e a agir segundo esta orientação e opção, lutando para que o reino continue a vir, e não somente esperando que ele “caia do céu” um dia, quem sabe...


Em Londrina temos vivenciado nos últimos tempos uma situação política das mais vergonhosas e tristes de nossa história, na qual prefeito, primeira-dama, funcionários de alto e de baixo escalão, além de alguns vereadores, estão sendo acusados e investigados pela (suposta em alguns casos, comprovada em outros) participação em um esquema de corrupção, lavagem de dinheiro, improbidade administrativa, formação de quadrilha, suborno e extorsão, dentre outros. Enquanto não aparecem evidências claras de seu envolvimento direto no esquema (seja lá o que isso for: vídeos, documentos, fotos, gravações, que desbanquem o “crime perfeito”?), o prefeito Barbosa Neto, do PDT, tem adotado o discurso manjado do político “João sem braço”, tal qual o presidente Lula no famigerado esquema “Mensalão”, de dizer que é inocente, não sabia de nada e, como “prova” disso, faz questão de que tudo seja devidamente apurado e investigado em seu governo. A impressão que fica é que o mito do “caçador de marajás”, desde Fernando Collor de Melo, se perpetua com certo grau de sucesso na política brasileira, na qual continuam reinando a supremacia burra da evidência, das vistas grossas e da cara de pau. Só oro para que o GAECO — grupo de atuação especial de combate ao crime — e a comissão de vereadores da cidade, que estão no caso, provem o contrário.


É um contrassenso que continuemos a orar pela apuração divina dos fatos, tratando-os como se nada nos afetassem. É lamentável que nós (cidadãos, cristãos ou não — mas falo mais aos cristãos) não tenhamos opinião alguma a emitir, nos resignando a tão somente papagaiar o repetido jargão de que “na política é assim mesmo”, ou a fazer a conformada oração “para que Deus abençoe nossa cidade e nossos governantes”. Isso só comprova o que Jacques Ellul disse no fim da década de 1980, em seu livro Anarquia e cristianismo:


Todas as igrejas sempre respeitaram escrupulosamente e, por vezes, até apoiaram as autoridades do estado, tornaram o conformismo uma grande virtude, toleraram as injustiças sociais e a exploração do homem pelo homem (1).


É um devaneio dos mais perversos reivindicar prosperidade, bênçãos e a conquista do território da cidade para Jesus quando nela grassam sinais do antirreino bem diante dos nossos lustrosos narizes!


Quando isso acontece precisamos lutar para que, do subterrâneo da luta humana por poder, no qual devemos nos encontrar como discípulos de Jesus, vozes e ações de protesto e repúdio emerjam contra essas formas deturpadas de exercício do poder e de lidar com a coisa pública. E mais: precisamos (falo de novo especialmente aos cristãos) dizer que o cristianismo não-constantiniano, que ainda subsiste pela graça dentro de nós, não está identificado ou mancomunado com qualquer sistema ideológico ou político, mas tem seu compromisso primeiro com o Reino de Deus e seus valores. Isto implica, talvez, na identificação com um modo não-integrado, não-sistêmico ou institucional, anárquico e pacifista de ser, no qual a oração deixa de ser um instrumento a serviço da “ordem” e do “progresso”, passando a ser um instrumento desestabilizador da ordem humana decaída. Esta oração é o combustível dos espíritos livres e subversivos, identificados com o Deus louco revelado em Cristo, que não dobraram seus joelhos como os adoradores de Baal, não se vendem nem negociam sua integridade e seu compromisso com as coisas do Reino em troca de “apoio político”, proteção ou benefícios escusos.


A oração do justo — como diz Tiago, do que procura andar, mesmo que tortamente às vezes, conforme a vontade de Deus — é a oração por justiça; que se conjuga com a luta corajosa contra a injustiça onde quer que ela, e a despeito de que forma, apareça; e em favor da paz do reino, que é uma “paz com voz”.


Entenda-se o elemento de anarquia aqui não como apologia infantil da desordem, ausência de qualquer governo ou mesmo da violência gratuita, mas — como defende Ellul — como um voto de protesto e contestação em prol do direito à vida e do ser humano, e como rejeição dos caminhos associados ao poder como dominação vigente nas instituições, religiosas ou políticas. Não é preciso dizer que este tipo de espírito incomoda, gera desconforto e produz perseguição. É o tipo de espírito que conduziu Jesus à morte de cruz, lugar dos malditos. Mas é o tipo de espírito que, na indispensável escuta ao Espírito, pode nos livrar da associação perversa e hipócrita, seja com a agenda de oração dos sacrílegos ou com a agenda de poder dos corrompidos. Como diz Gabriel, O Pensador, “não adianta olhar pro céu com muita fé e pouca luta”. Até quando a gente vai ficar levando porrada (risada e cusparada na face) nessa vida aburguesada que levamos, fazendo de conta que não estamos sendo atingidos ou que não é da nossa conta?


Notas
(1) ELLUL, Jacques. Anarquia e cristianismo. São Paulo: Garimpo, 2010, p. 11.



Por Jonathan Menezes



Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=852

sexta-feira, 4 de maio de 2012

0

O sândalo e o machado






Doces lembranças me ligam à casa da vovó. Mergulho nos porões mais remotos da infância e lá, na pequena casa de vila, encontro meu natal colorido, minhas inquietações adolescentes, minhas viagens juvenis. Numa estreita moradia de Fortaleza, meia parede, experimentei o carinho de tios e tias. No bairro de nome doce, Gentilândia, acordei para a vida. Estranho, sempre chamei casa da vovó, nunca casa do vovô.


Amei minha avó materna. Ela me embalava na rede para dormir, contava histórias de fadas; por suas mãos, fui levado ao mundo corajoso dos cangaceiros. Vovó me encantou; conhecia os seres que povoam o mundo mágico do matuto cearense. Sem exagero: Vovó Maria Cristina Sales Gondim foi a mulher mais doce e, ao mesmo tempo, mais determinada e firme que já conheci.


Sua casa era pequena, mínima: sala de visita e jantar juntas; dois quartos para o lado esquerdo de quem entra; no fundo, cozinha e banheiro diminutos. Quando a ditadura militar prendeu papai, nos vimos obrigados a morar nesse aperto.


Só havia duas camas na casa – e somávamos 13 almas. Eu dormia de rede. Depois que todos se acomodavam, pendurava os punhos nos ganchos que atravessavam a sala, e procurava apagar.


Sempre que alguém se mexia, ouvia o ranger doloroso das outras redes. As caladas da madrugada me metiam medo. Aquele barulho, que mais parecia um choro, amedrontaria qualquer insônia. Repousávamos amontoados – as redes se entrelaçavam, umas por cima das outras. Com o tempo, aprendi a reconhecer o fôlego de todos. De portas fechadas, com uma janela apenas, a casa esquentava. Eu ressentia, naquele calor, o forje do amor. A sala era forno e nos fundiamos uns nos outros. Viramos uma grande família.


Depois de vários anos, visitei vovó. Ela já não morava na mesma vila. Idosa e cansada, vivia com uma tia. Vovó gostava de conversar comigo. Por vezes implorava por minha companhia. E eu, absurdamente idiotizado pelo idealismo religioso, esquecia; varava semanas sem aparecer.
Numa tarde, fui ver-lhe. Péssimo dia para visitar uma pessoa querida; eu estava com raiva. Fora traído por pessoas mesquinhas há pouco. Sem me dar conta, comecei a despejar um rancor bolorento na vovó.


Como eu estava amargo! Havia esquecido que ódio guardado apodrece, vira amargura. Falei para ela do quanto desejava uma vingança divina. Enquanto debulhava ira, me desfigurava. Rancor deforma. Eu esquecera de escalar um sentinela para os lábios; e vomitei toda a ira que trouxe comigo.
Sem me repreender, ela perguntou: –Você se lembra do quadro que ficava pendurado no quarto lá de casa?

– Claro – respondi. Ele é uma das boas recordações daqueles dias.


Um quadro tridimensional bem pequeno ficava pendurado no primeiro cômodo da casa. Nele, havia a miniatura de uma tora de árvore. Um machado cravado, feria o caule. Por cima, a frase: “Sê como o sândalo que perfuma o machado que o fere”.


Vovó não disse mais nada. Eu me calei. Dei-lhe um beijo na testa e parti. Nunca mais fui o mesmo.


Passados tantos anos, ganhei uma talha de madeira que virou sacramento dessa verdade, que espero reproduzir na vida dos meus netos. A talha se parece com o quadro, e tem a mesma inscrição: “Sê como o sândalo que perfuma o machado que o fere”.


“Abençoem aqueles que os perseguem; abençoem, e não os amaldiçoem… Não retribuam a ninguém mal por mal”. – [Romanos 12.14 e 17]


Soli Deo Gloria


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/minhavida/o-sandalo-e-o-machado/
0

O discriminado e o jurista





Os samaritanos eram pessoas discriminadas.


Para um judeu, ser chamado de “samaritano” não era nenhum elogio.


O jurista queria saber quem era seu próximo. Quem ele deveria amar?


Talvez estivesse pronto para amar até mesmo seu inimigo, afinal a lei já determinava isso. Poderia amar um cidadão romano, inimigo, dominador; mas nunca passaria por seu coração amar uma gente daquela, de baixo calão, um samaritano.


Um samaritano não estava próximo, não era próximo, e seria bom que permanecesse assim: bem distante. Assim, o jurista jamais precisaria amá-lo.


O problema do samaritano, aos olhos do judeu, é que eles eram parecidos demais com os judeus, só que diferentes. Eles eram israelitas, possuíam a mesma origem, a mesma língua, o mesmo Deus, a mesma religião. Só que o samaritano se separou de Judá, se misturou, adorou outros Deuses.


Eles viviam sob o juízo divino e era bom assim!


Um samaritano era alvo da condenação e não da misericórdia, do juízo e não da graça, do ódio e não do amor.


“Mas qual foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” Pergunta Jesus.


“O samaritano” – responde o jurista. O maldito samaritano é o próximo. Se ele estava distante, ele agora se aproximou, porque ele teve misericórdia de mim quando eu estava na pior.


Porque ele se aproximou, o discriminado é o próximo que eu devo amar. Porque proximidade é uma relação recíproca. Se alguém está próximo de você, não temo como você não estar próximo dele.


Jesus deixa para o jurista uma resposta, respaldada no exemplo de um povo discriminado:


Os próximos são aqueles que estão se aproximando de você.


Ame-os! Siga o exemplo deles!


Não se prenda às pseudo atividades jurídico eclesiástica. Não se engane com a máquina institucional, nem com as questões meramente teóricas.


Encare os desafios práticos de quem está em necessidade, carregue o problema do outro como se fosse seu, use também de misericórdia. Se aproxime também.


“Vá e faça o mesmo”.


0

O jurista e o discriminado




Poucas coisas são mais justas do que o "olho por olho, dente por dente"; a graça, o amor e a misericórdia são algumas delas.


Lá estava ele mais uma vez sentado na roda de pecadores, seus amigos: publicanos, prostitutas, e gente da mesma laia, gente discriminada.


Isso já era demais para um certo jurista religioso de sua época (e ainda é demais para os de nossa), o qual montou uma arapuca:


“Mestre, o que eu tenho que fazer?”


A velha mentalidade mecanicista, “qual botão deve-se apertar, qual alavanca puxar?” Me diga, e eu simplesmente faço! Como formularia a Nike milênios mais tarde: just do it!


Mas o galileu de sandálias chutou a arapuca:


“O quê está escrito (exegese)? Como você lê (Eisegese)?”


Porque para Jesus as duas coisas claramente distintas deveriam andar juntas.


O jurista, eufórico, aproveita para recitar seu catecismo e não percebe que o Rabi, com os mesmos pauzinhos, a poucos chutados, refaz a arapuca, na qual o jurista acabava de cair:


“Bravo! Perfeito! Então não há pergunta… just do it…”


Já engaiolado, o jurista pia mansinho: “Mas pelo amor de Deus, quem é este cara que se chama próximo? Como você, Mestre Jesus, lê isso?” [Como se a cena por si só não oferecesse uma resposta].


A conversa assume, então, outro tom.


Os discriminados pelo sociedade judaica, prostitutas e publicanos, que naquele momento gozavam de prazer com a cara atordoada do jurista, fixaram seus olhares ávidos no contador de histórias.


“Um homem descia de Jerusalém para Jericó…”


Vi no http://teologia-livre.blogspot.com.br/2012/04/o-jurista-e-o-discriminado.html
0

O clamor do pobre




Tolstói iniciou Anna Karenina com uma das mais espetaculares afirmações da literatura: ”Todas as famílias felizes se parecem umas com as outras, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. A felicidade é indistinta, mas a tristeza carrega particularidades específicas. Ao longe, os cenários são belos; próximos, expõem detritos horrorosos. De perto, o lixo fede. Narrativas universalizantes foram incapazes de retratar dramas pessoais – vivenciados na dura realidade cotidiana.


Filosofia e teologia se especializaram em grandes narrativas para lidar com o sofrimento. Esqueceram as pequenas realidades. No microcosmo, gente com nome, história e laços de amor geme. Oprimidos em inúmeros cativeiros, os judeus cantavam: “Quem são homens e mulheres para que Te lembre deles? Onde Te escondeste, ó Senhor?”.


Voltaire afirmou que se há vida em outros mundos, a terra é o manicômio do universo. Segundo a ONU, dois milhões morrem de fome a cada dia – eu disse: cada dia. Estima-se que só na Europa, 500 mil mulheres sejam traficadas a cada ano – a maioria para exploração sexual. (as brasileiras engrossam as estatísticas no Velho Continente e somam 75 mil, o equivalente a 15% das vítimas). O que fazer com a cólera no Haiti, a malária na África, a guerra civil no Sudão, a perseguição religiosa no Afeganistão, o consumismo e a indiferença na Europa e os homicídios do México ao Brasil?


O palácio dos horrores baixou a ponte. Cavaleiros do Apocalipse entram em cena a galope. De tão barata a vida, milhões e milhões de famílias, à sua maneira, experimentam o inferno.


A prece mais religiosa para esta geração deve ser: “Deus, por que não invades logo o monturo que se transformou este planeta? Por que o Senhor não acaba com o ato desse teatro macabro? A peça já se arrasta além do necessário. O preço que cobras por teres nos criado imperfeitos não está alto demais?”.


Que volte o hino do negro spiritual: “Não se te dá que morramos? Como podes assim dormir?”


Se existe outro mundo possível, onde se esconde? Por que os mínimos sinais de um reino alternativo sempre foram imprecisos? Por que o bem se perdeu em instituições adoecidas? Nada explica a ganância ser maior que a fome de justiça.


Além da indiferença do universo, anônimos sofrem com a burocracia estatal – burocracia fria. Oligarquias se reinventam para manter o poder nas mãos dos mesmos. Estruturas se satanizam. Instituições legitimam processos de alienação. O mal se multiplica com facilidade. O bem consome a vida dos poucos que se atrevem concretizá-lo.


A história segue. Ruma ao grande abismo. T. S. Eliot perguntou: “Onde está a vida que perdemos vivendo? 
Onde está a sabedoria que perdemos no conhecimento? 
Onde está o conhecimento que perdemos na informação?”. Insana, a humanidade se debate sem sequer buscar antídoto para o veneno que a destrói.


Quantos se dispõem quebrar o sistema que abandona crianças à miséria? Mulheres violentadas e idosos abandonados continuarão sem terem quem os vingue? A coerência que justifica o mal será desfeita quando?


Milhões se entorpecem. Tateiam em busca de respostas nos lugares errados. Consumismo junto com as indústrías do esportismo e do “celebrismo” servem para perpetuar a ilusão de que no fim tudo vai dar certo. Estupidez. Quinquilharias tecnológicas salvam e alienam. Erudição ilustra e ilude. Enquanto a mão esquerda escreve poesia, a destra declara guerra.


Vaidosa, a atual geração se considera pouco menor do que os anjos. Só não vê a própria cara desfigurada – monstro de iniquidade.


Os caminhos humanos não apontam para um progresso inexorável; não desembocam, necessariamente, em estrada alguma. Nada garante que o rio da história alcance o oceano do sentido.


O planeta terra parou de brilhar; há muito não embeleza o universo. A eternidade não guardará registro do tempo fugaz dos humanos por aqui. As perguntas que a racionalidade fez foram insuficientes para chegar à verdade. A pouca solidariedade partilhada malogrou em redimir o ódio. Livros da história produziram melancolia por um passado de ouro, apenas. A clemência da geração que sucedeu ao holocausto se revelou impotente para evitar outros genocídios. A ciência não conseguiu reverter o inconsciente coletivo, que ainda viabilizará novas chacinas.


O Nazareno acertou: em todos os dias cabe um mal próprio. Sendo assim, séculos não aliviarão a tragédia da geração atual. Não por acaso os pobres, conscientes de seu sofrimento, devem voltar a clamar: “Maranata – não te demores, Senhor”.


Soli Deo Gloria


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/estudos/o-clamor-do-pobre/
0

Nem tudo o que homem plantar ele colherá





Tudo o que o homem plantar, isso também ceifará. Essa é uma lei difícil de contestar. Paulo, o apóstolo, asseverou isso e quase todas as expressões religiosas pregam algo semelhante. É a lei da semeadura.


Ouso questioná-la.


Essa lei não torna a vida uma caderneta de poupança, em que o poupador fica seguro de seu investimento e, certamente, vai poder resgatar o que depositou com juros e correção monetária. Não é algo matemático, exato. O mundo, a vida, não tem uma balança de precisão pela qual tudo o que se plantar, tudo o que se fizer, retornará de maneira inexorável.


A vida está mais para uma aplicação na bolsa de valores, onde há chances de ganhar muito, mas também o risco de perder tudo. Mesmo a caderneta de poupança, investimento sagrado, não resistiu ao desvario de um determinado presidente da república que se dizia caçador de marajás.


Todos estão sujeitos ao acaso, o que tira qualquer caráter exato da lei da semeadura. Como diz o Eclesiastes, “os velozes nem sempre vencem a corrida; os fortes nem sempre triunfam na guerra; os sábios nem sempre têm comida; os prudentes nem sempre são ricos; os instruídos nem sempre têm prestígio; pois o tempo e o acaso afetam a todos”.


Quem ensinou que a semeadura não tem resultado sempre certo foi Jesus. Ele contou a história de um homem que saiu a semear. Parte das sementes caiu à beira do caminho, chão duro, terra pisada, as sementes ficaram expostas e as aves do céu as comeram. Outra parte foi semeada em solo pedregoso, as plantas nasceram mas não conseguiram aprofundar suas raízes. Vindo o sol, secaram. Outra parte foi plantada em solo em que havia espinhos. As plantas nasceram mas foram sufocadas pelos espinhos. Uma última parte foi lançada em terra fértil. Nasceu, cresceu e produziu muito fruto.


Pelo ensinamento de Cristo, apenas um quarto das sementes deram algum resultado. Nem tudo o que foi plantado foi colhido. Quando se planta a colheita não é certa, porque há fatores que fogem ao controle do semeador. Se o solo não for bom, mesmo que a semente seja boa, não haverá boa colheita. Ainda que seja bom, pode haver problemas ambientais, muita ou pouca chuva, sol demais, geada, ervas daninhas, etc.


Há pessoas boas que plantam o bem, mas recebem da vida dores e agruras. Há aqueles que muito amam, mas recebem desprezo, indiferença e ódio. Há aqueles que muito ajudam, mas quando precisam, ficam desamparados. Plantaram, mas não colheram.


Ora, se é assim, pra que plantar? Para que continuar fazendo o bem? Porque é bom. Apenas isso. Por que continuar amando? Porque a recompensa de quem ama é amar. Por que continuar sendo solidário? Porque a recompensa é ter um coração solidário e compassivo.


Se a semente é boa, vale a pena continuar semeando. Lançar a semente é sempre um gesto esperançoso. Esperança de que o solo seja bom, de que a chuva virá, de que o sol não faltará, de que a praga não virá. Um gesto de fé, uma aposta.


Ainda que não haja frutos, as sementes do bem, do amor e da solidariedade serão sempre boas sementes. Continue espalhando-as. Em algum momento uma delas vai encontrar solo fértil e, então, haverá fruto e outros colherão da boa semente que você plantou.


Márcio Rosa da Silva