segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Teologias estranhas para revolver as entranhas: sobre a opção pelos pobres






Para o Sr. Expedito e D. Carmelita



Pra começo de conversa...



Como é estranha a afirmação de que Deus tenha predileções quando se trata de seu amor pelos seres humanos. Faz pouco tempo que o pessoal da Teologia da Libertação apareceu falando sobre uma tal “opção preferencial do Evangelho pelos pobres”. Foi um mundo de estranhamentos. Aquilo aparecia como uma das grandes heresias de nosso tempo. Afinal, afirmar que Deus tem predileções em seu amor pelos seres humanos é afirmar sua rejeição por outros tanto seres humanos. Assim, aquilo parecia a nova versão de um calvinismo moderno e sua idéia de predestinação radical. A diferença estaria somente em que agora a predileção de Deus pelos seres humanos estaria condicionada à posição sócio-econômica que estes ocupassem no mundo, bastando-lhes a pobreza como garantia do favor divino.



Engrossando o caldo dessas teologias estranhas está a forma como o pastor Marcos Monteiro intitula uma das seções do seu livro Um jumentinho na avenida, afirmando ali que “o Deus do rico não é o Deus do pobre”! (1) Como assim? Afinal, Deus é um só. Como, portanto, se pode dizer que um é o Deus do rico e outro o Deus do pobre?



E para não me estender muito na citação dessas teologias esquisitas, retomo uma das ênfases do trabalho teológico de Jon Sobrino, que repetidamente vem nos chamando a atenção para o fato de que o grande desafio para a teologia em nossos dias não é o ateísmo, mas a idolatria (2). Dito de outra forma, o grande problema de nossos tempos não é a descrença em Deus, mas a superabundância de deuses, que produz como efeito colateral a negação da vida para milhares de seres humanos.



Temos assim três heresias diferentes:



a) Uma no campo da “moral da divindade”, supondo que Deus tem predileções em seu amor pelos seres humanos, e essa predileção está direcionada aos pobres;



b) Outra no campo da “ontologia do sagrado”, que diferencia o Deus do rico do Deus do pobre;



c) E mais outra no campo da “epifania do sagrado”, que admite não somente a existência de muitos deuses, mas também julga como nefasto o culto que se oferece à maioria deles.



Eu diria que esses estranhamentos todos são filhos dos nossos entranhamentos!



Entre estranhamentos e entranhamentos, não nos damos conta de que as heresias a que fizemos menção acima são de fato repetições do discurso bíblico acerca de Deus. A bíblia, frente aos nossos entranhamentos religiosos, é uma enorme heresia. Os entranhamentos de nossa cultura cristã, católica, protestante, grega e ocidental, produzem em nós esse estranhamento diante destes fatos: quando estamos falando do Deus da bíblia estamos falando de um Deus que:



a) tem predileção pelos pobres e por todas as vítimas das injustiças e opressões humanas;



b) se diferencia daquilo que os ricos e abonados desse mundo pensam e dizem sobre Ele;



c) reconhece a possibilidade de que os homens tenham outros deuses, e convoca aqueles a lhe servirem unicamente, sobretudo com a prática da justiça e do amor verdadeiros dedicados aos seus semelhantes.



O Deus da bíblia tem predileção pelos oprimidos do mundo



Na bíblia, a relação de Deus com os pobres é algo parecido com aquilo que os poetas dizem ocorrer durante o processo de criação literária. Um dia desses ouvi a Adélia Prado dizer numa palestra que a poesia é uma forma de transcendência. O poeta vê a pedra, mas em seu olhar ela está transcendida de sua condição ontológica de pedra. Portanto, ao olhar a pedra, vê outra coisa. O Milan Kundera dizia que sabemos que amamos uma pessoa quando ao seu rosto se junta uma metáfora poética (3). Então, o processo de criação poética se dá quando as coisas são transcendidas dessa forma. A flor do poeta é diferente da flor do botânico. O corpo feminino que o poeta vê é diferente daquele que vê o anatomista.



Na bíblia, ocorre o mesmo no que diz respeito à relação de Deus com os pobres e oprimidos de toda sorte. Esses que representam uma forma de “lixo humano” (Zigmunt Bauman [4]), esses que ocupam as últimas categorias nas tipologias sócio-econômicas mais comuns, esses que são a ralé, a escória, os vira-latas, os párias, esses sem vez e sem voz, vitimados pela História e excluídos das benesses de um tempo tão pródigo em maravilhas tecnológicas; esses todos têm sua condição miserável transcendida (porém não negada). Eles são, em primeiro lugar, os destinatários privilegiados dos segredos mais íntimos de Deus. Jesus de Nazaré estava tão certo da preferência de Deus por esses que numa oração deu graças da seguinte forma: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas dos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos” (Mt 11,25).



E aqui, nós, teólogos da libertação, temos que prestar muita atenção:



Nenhuma teologia será verdadeiramente libertadora se quiser apenas “libertar os pobres” de seu cativeiro sócio-econômico, mas será plenamente libertadora se, além disso, se deixar entranhar pela cultura dos pobres, uma vez que, conforme Jesus, a mesma está entranhada dos mistérios mais íntimos de Deus.



Estranho, não?



Mas em segundo lugar, a preferência de Deus por estes desgraçados e desgraçadas da terra chega ao estranho absurdo de identificar ontologicamente aqueles e aquelas com o próprio Cristo (veja Mt 25,31-40). E eu ainda sonho com o dia em que nossas campanhas missionárias proponham o desafio de, em lugar de levar Cristo aos miseráveis do mundo, discernirmos o Cristo que já está com eles e neles.



“O Deus do rico não é Deus do pobre”



Dito de uma perspectiva bem pragmática, o rico nem precisaria de Deus. No máximo, o rico seria deísta, crendo num Deus que permanece distante e sem qualquer tipo de relação com o mundo. Isso porque as necessidades primárias do rico estão satisfatoriamente resolvidas por sua riqueza. Deus, portanto, seria uma hipótese de trabalho da qual ele poderia prescindir sem prejuízo para as questões práticas da vida. Mas, a despeito dessa lógica, o rico também é crente. Só que, via de regra, seu Deus precisa ser diferente do Deus do pobre. E para dizer o quanto é verdadeira a afirmação de que “o Deus do rico não é o Deus do pobre”, vou citar um caso contado pelo próprio pastor Marcos Monteiro. Dizia ele:



Numa visita a um irmão, recém-convertido, morador de uma das favelas próximas à nossa igreja, ouvimos esta história exemplar:
Ao entregar um quilo de carne na casa de um deputado, um açougueiro avistou a mesa posta para o café da manhã, com tudo que podia imaginar.
— Mesa farta, doutor! – disse o açougueiro.
— Graças a Deus! – exclamou o deputado.
— É, doutor – replicou o açougueiro –, o Deus do rico não é o mesmo Deus do pobre. Na minha casa, quando tem pão, não tem manteiga; e quando tem manteiga, falta pão. Por isso, doutor, o Deus do rico não pode ser o Deus do pobre.



Como o caso acima deixa ver, o Deus do rico nada tem a ver com as dissimetrias sociais. Como os próprios ricos fingem pensar, o seu Deus não vê qualquer relação dialética entre a riqueza de uns poucos e a miséria das maiores populares. Nesse instante, eu recordo as missas e os cultos em ação de graças a cada início de safra do setor canavieiro de Alagoas. É uma prática historicamente arraigada aqui – e suponho que também o seja em outros lugares onde vige a monocultura da cana – que os grandes latifundiários comecem a safra anual pedindo ao seu Deus que lhes abençoe e lhes deem a melhor das safras possíveis. E nessa intenção se agregam patrões, empregados e sacerdotes num clamor ao Deus do rico, para quem a exploração do trabalho dos bóias-frias cortadores de cana pouco importa. Mesmo esmagando uma legião de homens e mulheres com jornadas de trabalho extenuantes a custos baixíssimos, e negligenciando a estes os direitos trabalhistas mais fundamentais, é possível orar a este Deus pedindo-lhe sucesso na safra da cana. Afinal, para o Deus do rico e seus adoradores, o culto e a ética estão totalmente divorciados.



O Deus do rico sequer cogita acerca da transformação da sociedade. Seu mundo é estático, fragmentário e a-histórico. Portanto, o culto é um momento de alento, de narcótico, de fuga momentânea do mundo, com pouca relação com os dilemas reais que estreitam a vida das pessoas. No máximo, nesse culto busca-se um alento para suportar as agruras desse mundo, mas de forma resignada. No culto ao Deus do rico, as esperanças escapistas e apocalípticas têm destaque. No lugar da transformação da sociedade, vigora aí a legitimação de suas estruturas.



Mas o maior incômodo ainda não é este. O pior de tudo é saber o quanto o Deus do rico é assimilado pelos próprios pobres. A estes, é comum que se ofereçam as consolações que não condizem com o Deus da bíblia, que é parceiro dos humilhados. Em linguagem secular, Paulo Freire dizia que é comum que o pobre internalize os valores de mundo que não pertencem à sua classe. Para citar literalmente sua expressão, Freire dizia que “o oprimido tende a hospedar o opressor dentro de si” (5). E não é difícil encontrar entre os pobres gente que replicaria a atitude desumana dos opressores na primeira oportunidade que lhe surgisse. Assim como não é difícil encontrar entre os pobres gente que em suas relações cotidianas replica uma visão de mundo tacitamente burguesa e opressora.



Nossas religiões deveriam atentar para que tipo de discurso elas ajudam a reificar entre os pobres. Por vezes, elas têm sido o instrumento mais eficaz na produção dessa contradição: fazer o povo pobre e oprimido pensar burguesamente, incutindo-lhe uma visão de mundo muito mais afeita ao Deus do rico que ao Deus da bíblia, parceiro do pobre em sua situação de humilhado da História.



A idolatria como grande desafio teológico



Jon Sobrino, Franz Hinkelammert, Juan Luis Segundo, Hugo Assmann, Elsa Tamez, Jung Mo Sung, Ignácio Ellacuria, são os principais representantes de uma denúncia esclarecedora: o grande problema de nossas sociedades não é o ateísmo, mas a idolatria; não é a afirmação da inexistência de Deus, mas o serviço aos muitos falsos deuses (ídolos) de nossa cultura ocidental.



Mas o que é um ídolo? Primeiro, a idolatria não é um fenômeno do passado, e muito menos está circunscrita somente ao universo religioso. Os ídolos são realidades históricas, bem presentes na configuração de nossas sociedades. Ele é qualquer ente condicionado, relativo, temporal, efêmero, passageiro, transitório, histórico, elevado à condição de incondicional, absoluto, atemporal, eterno, a-histórico. Bem na contramão do senso comum da religião, o ídolo pode ser uma pessoa, mas também pode ser um modelo político, um arranjo econômico, uma ideologia de tipo científico, e até uma ideologia de tipo religioso.



A idolatria é um fenômeno com certas peculiaridades e regularidades, qualquer que seja sua espécie. Nietzsche dizia, por exemplo, que a idolatria apaga certas idiossincrasias, inerentes ao ídolo, dos olhos do idólatra (6). Sobretudo aquelas feições demoníacas próprias de todo ídolo, passam sempre despercebidas aos olhos do idólatra, enfeitiçado que se encontra com seu deus. Com efeito, pior do que isso, é o fato de que as relações idólatras exigem vítimas a todo custo, a fim de que o ídolo possa sobreviver.



Numa crítica ao mercado mundial globalizado elevado à condição de ídolo em nossos dias, a pastora Elsa Tamez nos oferece uma ilustração esclarecedora nesse tocante:



Há dois tipos de deuses, uns que dão sua vida para salvar a humanidade e outros que exigem a vida dos humanos para salvarem-se a si mesmos. Nas tradições mexicanas, os deuses da cultura náuatle, junto com Quetzalcóatl, decidiram sacrificar-se para que a humanidade alcançasse o movimento, ou seja, a vida; mas o deus do império asteca, Huitziloposshtli, exigia sacrifícios humanos para ele poder sobreviver com o sol de cada dia. Metaforicamente, isto quer dizer que o “Deus” do mercado [entre os demais ídolos modernos] exige vidas humanas. Este seria o “Deus” de hoje que mata para viver. A soteriologia cristã, pelo contrário, mostra um Deus que dá a vida, sua própria vida, para salvar a humanidade. Fixemos o olhar no Deus cristão e em sua proposta de salvação.(7)



O tema da idolatria esteve muito presente no discurso anticatólico de nossas igrejas evangélicas no Brasil. Mas, estaria esse discurso afinado com o tratamento que aqueles autores citados acima deram a este problema? De maneira alguma! Dissertando sobre esse tema, eu mesmo dizia em outro lugar:



O protestantismo histórico brasileiro, em sua ânsia por perpetuar a identidade anticatólica, tem preservado uma concepção paupérrima do fenômeno da idolatria, identificando-a com as imagens dos santos adotadas na religiosidade católica. Até então, não se desenvolveu no seu interior uma concepção da idolatria como a deificação de certas estruturas criadas pelo homem que oprimem e exigem o sacrifício diário de milhares de vítimas, às quais as imagens dos santos católicos não devem sequer ser comparadas em poder de influência.(8)



Fim de papo...



Agora, eu já não tenho dúvidas acerca de como Deus e seu Espírito se encontram de fato entranhados entre os pobres. Mas não digo isso como resultado das muitas leituras nem dos muitos debates entre teólogos e teólogas. Não digo isso de um ponto de vista meramente teórico. Digo isso como produto de uma experiência concreta, cheia de sabor e de vida, experimentada entre gente simples. Digo isso como produto da convivência com o Sr. Expedito e D. Carmelita, pais da minha amiga prª Odja Barros. Um acolhimento de apenas um dia na casa de Sr. Expedito e D. Carmelita me foi suficiente para ratificar a bem-aventurança de que “felizes são os pobres de espírito, pois dos tais é o Reino de Deus” (Mt 5,3). O sabor da vida como dádiva a ser fruída permanecem ainda na boca dias após aquela visita. O riso, o violão, o bom e velho vinho que alegra o coração, a nostalgia musical, a mesa comum, e as aulas de “boa convivência marital” só podem ser vistas, por quem esteve ali, como experiências do sagrado, porque fizeram a vida vibrar numa sintonia gostosíssima, sem explicação.



E, se por um lado é verdade que não se pode infantilizar a figura do pobre; também é verdade que pessoas como o Sr. Expedito e D. Carmelita ajudam-nos a entender essa predileção de Deus e do Evangelho pelos “pequeninos”.



Tendo pouco, o pobre está pronto para acolher em si mesmo o dom de Deus e se alegrar verdadeiramente em Deus e no próximo. Está pronto a depender de Deus em tudo. Tendo pouco, o pobre pode tratar as pessoas como pessoas e as coisas como coisas. Tendo pouco, o pobre sabe acolher em sua casa como uma galinha acolhe debaixo de suas asas os seus pintainhos. Tendo pouco, e sabendo o que é padecer em sua própria carne, o pobre pode se compadecer dos outros mesmo em meio às suas necessidades. O salmista chega a dizer que o pouco do pobre vale mais que o muito dos ricos (Sl 37,16). Por que seria? Exatamente porque o muito do rico é capitalizado egoisticamente em função de si mesmo, enquanto o pobre consegue capitalizar o seu pouco ainda em função dos outros. Por isso vale mais!



Estranho?

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(1) MONTEIRO, Marcos. Um jumentinho na avenida: A missão da igreja e as cidades. Viçosa: Ultimato, 2007.
(2) SOBRINO, Jon. “Ateísmo e idolatria”. In: SOARES, Afonso Maria Ligorio (org.).
Juan Luis Segundo: uma teologia com sabor de vida. Tradução de Afonso Maria Ligorio, São Paulo: Paulinas, 1997
(3) KUNDERA, Milan.
A insustentável leveza do ser. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
(4) BAUMAN, Zygmunt.
Tempos líquidos. São Paulo: Jorge Zahar, 2003.
(5) FREIRE, Paulo.
Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
(6) NIETZSCHE, Fredrich.
O anticristo: A maldição do Cristianismo. São Paulo: Escala, 2005.
(7) TAMEZ, Elsa. “O Deus da graça versus o ‘Deus’ do mercado: Dádivas inesperadas”. In:
Concilium: A face luminosa da fé. Tradução de Lúcia M. E. Orth, vol. 4, nº 287, p. 112-120, Petrópolis: Vozes, 2000.
(8) NASCIMENTO, Paulo. “Rumo à ‘comunidade Messiânico-profética’: Perspectivas eclesiológicas para o protestantismo histórico no Brasil”. In:
Epistêmê. Ano 05, vol. 11, Feira de Santana: Seminário Teológico Batista do Nordeste, 2009.



Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.



Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=73

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