sábado, 3 de setembro de 2011

Outra via crucis







Nesta semana dois HIV-soropositivos cruzaram o meu caminho. O primeiro, logo após o culto matinal do domingo, na Igreja Batista do Pinheiro. Solicitava-me uma ajuda em alimentos e um complemento em dinheiro para uma passagem de ônibus. O segundo, dentro de um ônibus coletivo a caminho da Universidade Federal de Alagoas. Dirigia-se a todos os passageiros pedindo uma ajuda financeira para tocar a vida e continuar cuidando de sua saúde. Nenhum dos dois provocou pânico ou rostos constrangidos, nem no templo nem no ônibus.



Dificilmente teria sido assim na década de 1980, quando a AIDS emergia como a possibilidade de uma pandemia. Sem as informações e os avanços no tratamento de que dispomos hoje, uma crosta de preconceitos recobria os corpos dos HIV-soropositivos. Sua simples presença num recinto qualquer era motivo de apreensões e constrangimentos. Apertos de mão, beijos no rosto e outros tipos de contato físico, hoje amplamente desmistificados pelo conhecimento acerca da doença, não tinham vez naquele momento. Também os lugares públicos estavam vedados à presença dos HIV-soropositivos. Em programa exibido recentemente nos Estados Unidos, Oprah Winfrey mostrava como numa cidade do interior daquele país, uma piscina pública fora interditada na década de 1980 quando se descobriu que um soropositivo a havia utilizado.



Outra peculiaridade daqueles dias relacionada às representações sociais acerca da AIDS era a sua tipificação como uma “peste gay”. Não foram poucos os grupos religiosos que ajudaram a disseminar na sociedade a idéia de que a AIDS consistia numa sanção divina impetrada como conseqüência do estilo de vida dos homens e mulheres homossexuais.



Passados já trinta anos, os avanços no tratamento do HIV proporcionam uma qualidade de vida que permite a estas pessoas tocar suas vidas e participarem de todo tipo de dinâmica social. A expectativa de vida dessa população cresceu consideravelmente, muito embora o acesso ao coquetel de medicamentos continue bem difícil para os mais pobres. A informação se disseminou no tecido social, de tal maneira que se o preconceito contra estas pessoas ainda existe, hoje ele existe numa escala diferente daquela da década de 1980. Obviamente, o conhecimento científico e algumas políticas públicas têm grande mérito nessas transformações. Mas a diminuição do preconceito contra os HIV-soropositivos também tem a ver com a convivência, com o acolhimento e com a aceitação incondicional, que sempre ajudam a derreter visões falsas acerca das coisas e das pessoas. Juntos, a razão (ciência e política) e o coração (convivência, acolhimento e aceitação) removem montanhas.



Aí, eu fiquei pensando no seguinte: estariam os homossexuais atualmente percorrendo esse mesmo itinerário que vai da homofobia até a aceitação e a convivência pacífica com todos os setores da sociedade? Até 1985 a homossexualidade constava no Catálogo Internacional de Doenças (CID-10) como uma patologia de tipo psiquiátrico – uma psicopatologia. E ainda que alguns manuais de psicopatologia continuem classificando-a como um “transtorno da identidade de gênero”, a Organização Mundial da Saúde deixou de concebê-la como tal. Será que o itinerário dos homossexuais rumo a uma convivência plenamente cidadã em todas as dinâmicas sociais também vai precisar passar pelo progresso dos recursos científicos, pela implementação de certas políticas públicas, pela disseminação da informação, e pelas atitudes de aceitação e acolhimento?



Me parece que a experiência histórica dessas três décadas de enfrentamento da AIDS em todo o mundo já serviu para tornar arcaico o discurso religioso que a relacionava ao estilo de vida homossexual. Pelo menos, se ainda se crê nisso, ninguém mais nas igrejas tem coragem de confessar. A experiência histórica do continente africano e seus índices pandêmicos de contaminação por HIV, por exemplo, serviu para liquidar essas visões tacanhas acerca desse problema. Que experiências históricas serão necessárias para tornar arcaico o atual de discurso de que a homossexualidade é uma “doença da alma”?



Fico me perguntado: se o itinerário histórico dos HIV-soropositivos e dos homossexuais fosse comparado a uma via crucis, o papel das igrejas cristãs estaria mais para Simão Cirineu, ou para os soldados romanos que cumpriam as ordens de seu “senhor”?



Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico
Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.



Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=606

0 comentários: