quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Verdade e liberdade em um reino de vida





Pode um historiador ser objetivo e desapaixonado? Não faz ele suas investigações como alguém que busca uma carta de amor perdida, carta que faria o amante feliz para sempre, como alguém que busca o testamento esquecido, testamento que faria rico ao pobre que o busca? (1)



Identificar agendas teológicas para o tempo atual é fazer nosso papel de imaginação teológica, ao qual me refiro a partir de duas dimensões: a de um amante que busca essa “carta de amor perdida” – um tema, questão ou causa candentes esquecidos ou omitidos do debate, como pontua Alves na citação de Bonino acima – e a de discernimento dos “sinais dos tempos”.



Quero aqui dar uma possível contribuição no exercício deste papel, retomando outra vez um velho vocabulário da teologia e da filosofia, que é a questão da verdade, aproveitando a deixa do Congresso Internacional de Evangelização (Lausanne III) e seu documento oficial (o documento da Cidade do Cabo), e problematizando a questão com a finalidade de prosseguir em um debate de uma questão antiga, mas ainda atual.



1. O testemunho da verdade: entre a vida-proposição e a proposição-vida

Um dos temas propostos no Compromisso da Cidade do Cabo foi “Testemunhando a verdade de Cristo em um mundo pluralista e globalizado”. A abordagem inicial ao tema, portanto, é bíblica, uma vez que o próprio Cristo, nas palavras de João, é aquele que veio dar “testemunho da verdade”. Mas o que significa dar “testemunho da verdade” no mundo atual?



Lausanne III, em geral, ainda adota a via da apologética moderna, de que devemos proclamar e defender a verdade em termos proposicionais, com argumentos consistentes, como “embaixadores” e paladinos da verdade. Ainda que o documento considere a via relacional e pessoal e a vivência da verdade como instrumentos úteis no mundo pós-moderno, elas não passam de “veículos” da verdade, entendida como objeto de posse daqueles que se dizem seguidores de Cristo.



Aliás, o documento apresenta uma visão caricatural da pós-modernidade, afirmando que “sua ideologia não permite a verdade universal ou absoluta” (2). Bem, o que entendo da pós-modernidade é que ela questiona precisamente as vias não-permissivas (então, não poderia ser ela também uma dessas vias), e que seu problema é com a “questão da verdade” e não com “a verdade” em si, especialmente quando as muitas “questões da verdade”, dentre elas as do cristianismo, pretendem ser detentoras da própria verdade.



Agora, em meu entendimento, numa sociedade secularizada e plural, a “voz cristã” precisa se reconhecer como “uma” e nunca como “a voz”. Ela está quase que totalmente desconectada deste tempo se (e quando) ainda pretende ser “a”. Uma possível alternativa a tal postura está em se admitir como mais um (fraco) elemento no circuito de religiões, culturas e visões, pois a “força” que alegamos possuir não vem de nós, mas de Deus e do evangelho. E, como disse Paulo, quando somos fracos é que somos fortes, pois em nossa fraqueza opera a força do poder de Deus.



A igreja evangélica brasileira, em termos gerais, ainda vive, porém, sob a égide de uma mentalidade (moderna) colonizadora da vida e do pensamento. Muitos líderes acreditam ter respostas para todos os problemas da sociedade com declarações e ações isoladas, e se esquecem (se é que um dia se deram conta) que o reino pode ser messiânico, mas a igreja e seus ministérios não. Ela pode (e deve) sinalizar o caminho do Messias, mas não pretender ser portadora da “lista de chamada escatológica do reino”, pra dizer quem vai e quem não vai por este caminho.



Essa discussão sobre a lei contra a homofobia e a liberalização do universo gay só tem servido para colocar ainda mais na vitrine, exposta pra quem quiser ver, nossa fé intolerante e truculenta, salvo raras exceções. Esta face (majoritária) da igreja não está preparada pra enfrentar todas as implicações, nem de viver em um estado laico, tampouco para operar dentro da liberdade do reino.



Como disse alguém no twitter, defendendo sua posição contra a “iniquidade” de alguns partidos políticos e dos homossexuais, “o estado pode ser laico, mas a minha fé não é laica”. Quer dizer, eu não posso viver as implicações de ser cristão e ser laico ao mesmo tempo? Ora, o reino é laico, porque o reino não é a cristandade. E a igreja que não perdeu de vista o reino é laica, enquanto povo e comunidade do Rei, e não fruto de projeto teocrático, institucional ou eclesiástico.



Estamos querendo trazer a mensagem do gueto e do privado para a esfera pública e querendo que as pessoas engulam, quase que dizendo: “Chupa que é de Cristo!”. Só que “mundanos” mais espertos, como um Gandhi da vida, sabem que nem tudo o que se diz “cristão” vem de Cristo ou tem parte com ele. Quiçá a maioria das pessoas tivesse essa mesma percepção... Pelo menos a gente não teria que ficar se explicando tanto quando somos nivelados sob o rótulo de “evangélico”.



Enquanto não pararmos de reconhecer no pluralismo (pós-moderno ou não) apenas um “inimigo”, mas algo que está aí e é parte de nosso tempo, não sei se poderemos avançar no diálogo com as mais diferentes expressões culturais de nosso tempo, tampouco “dar razão da esperança que há em nós”. Quem sabe uma saída seja conceber o pluralismo fora do ideal (dualista) de cristianização, no qual se diz que o que é colorido precisa ser branco, porque “branco é de Deus” e “colorido é do Diabo”. Precisamos mais da linguagem abarcante do reino e da liberdade do Espírito, que sopra onde quer, e não onde a gente quer (e nosso doutrinismo permite) que ele sopre.



Outro caminho é fazer (por vias práticas) voltar a valer entre nós a insígnia do “princípio protestante” (Paul Tillich), de protesto contra toda tentativa de dar contornos absolutos ao temporal e ao relativo. Isso é básico, é um “bom brill” protestante que entre nós se perdeu. Podemos continuar a afirmar/ declarar a verdade-Cristo? Sim, mas entendendo que esta é uma afirmativa de fé e de vida, que pode até ser proposicional, mas não pode ser limitada a meras proposições. E se é de vida, chama para dentro, não exclui; se é de vida, não tenta expor suas convicções pela aniquilação da dos outros, cristãos ou não.



Concordo em parte com Rubem Alves quando ele diz que “todos os que têm certezas estão condenados ao dogmatismo. Se estou certo da verdade de minha teoria, por que motivos haveria de perder tempo ouvindo uma outra pessoa que, por ter ideias diferentes, tem de estar errada? As certezas andam sempre de mãos dadas com as fogueiras...” (3).



Disse que concordo em parte, pois a própria linguagem de Alves é traiçoeira quando utiliza as palavras “todos” (que é muita gente) e “sempre” (que é muito tempo). A questão por ele proposta no meio de sua fala me parece pertinente, afinal parte do pressuposto de alguém que tem certeza da “verdade” de sua teoria e, portanto, não teria porque dialogar com ninguém. Contudo, quando ele dá a entender que todos os que têm certezas são dogmáticos e inquisidores, desconsidera a possibilidade da concepção de uma fé-certeza exercida no honesto reconhecimento de sua fragilidade e das incertezas que a cercam; uma fé, assim, de quem paradoxalmente se percebe como certo incerto. Em outras palavras, nem todas as certezas precisam ser absolutamente certas do ponto de vista do humano que nelas está e por elas vive. E a fé é uma delas (4).



2. Os defensores do Livro no reino de vida e da diversidade

Dias atrás, recebi uma carta do Conselho de Pastores de minha cidade, chamando a uma mobilização contra um Projeto de Lei proposto por um vereador desejando erigir um monumento islâmico em uma praça da cidade, que passaria a se chamar “praça islâmica”. O argumento do conselho para ser contrário a tal projeto tem uma dupla face. Primeiro, é porque um vereador (homem público) não pode querer privilegiar no espaço público e no exercício de sua função uma religião em detrimento de outra – engraçado, os políticos evangélicos da cidade fazem isso o tempo todo e não vejo o mesmo conselho se manifestando contrariamente. Segundo, porque os islâmicos em seus países de origem estão longe de tratar os cristãos com a mesma condescendência, então não há motivos para facilitarmos as coisas para eles – ou seja, quase que uma ideologia do “olho por olho e dente por dente”!



Nesse caso, a gente vê uma defesa de uma laicidade esquizofrênica (sem confundi-la aqui com “neutralidade”). Quando convém, somos laicos e reivindicamos a condição de laicidade do público. Quando nossa liberdade é supostamente ameaçada, queremos uma laicidade mais frouxa, e protestamos pelo direito de expressar nossa crença. O engraçado é que nessa mesma cidade existe um “Monumento à Bíblia”, que não é questionado. Assim como o crucifixo e a santa na parede da escola pública não são questionados. Então, parece que Gianni Vattimo foi assertivo em sua tese sobre o ocidente liberal, quando diz que “o espaço leigo do liberalismo moderno é mais religioso do que o próprio liberalismo e o pensamento cristão estão dispostos a reconhecer” (5). Assim, a sociedade é “leiga”, mas ainda seguindo a fórmula do modelo WASP (Branco Anglo-Saxão Protestante), que entre nós pode ser CHISPE (Cristão Heterossexual Isolado Sectário e Preferencialmente Evangélico) – até porque, católicos, liberais, alguns protestantes históricos, dentre outros, ainda vivem sob a tensão de ter de se converter à “verdadeira fé evangélica”.



Se quisermos defender com radicalidade que se arranque da comunidade islâmica (tão ínfima, pra não dizer marginal entre nós) o direito de ter publicamente seus símbolos religiosos, assim como os cristãos têm tido, mesmo numa sociedade que se diz liberal, democrática e secular, não poderemos estranhar quando o mesmo princípio se voltar contra a comunidade cristã e nossos símbolos passarem também a ser extintos do espaço público (o que não seria de todo ruim, apenas a aplicação de um princípio que se afirma na teoria na prática e para todos). Precisamos, em contrapartida, corroborando ainda aqui com Vattimo, “favorecer uma presença conjunta, livre e intensa de múltiplos universos religiosos”, reforçando a vocação laica da cultura ocidental e do cristianismo.



Há um tempo assisti ao filme O Livro de Eli. Achei interessante a sua crítica, sobretudo aquela dirigida a alguns fundamentalismos religiosos de nosso tempo. Uma das frases marcantes do filme é quando Eli, personagem do protagonista Denzel Washington, afirma: “Todos esses anos que eu o levava e o lia, diariamente, na minha obsessão por mantê-lo a salvo, deixei de viver segundo o que aprendi nele”.



É impressionante como essa frase representa bem o que se tem vivido em termos de história das religiões, dentre elas o cristianismo, até os dias de hoje. Ou seja, quando nos tornamos paladinos cegos de um livro sagrado (no caso do filme, a Bíblia), incorporamos a posição dos fundamentalistas radicais e tendemos a perder de vista a integridade que o próprio livro nos ensina – no caso de Eli, o ensino fundamental esquecido foi: considerar o próximo antes e acima de si mesmo.



E pior: agimos como se Deus (e sua Palavra) precisassem de guarda-costas, e tendemos a abafar a consciência de liberdade e tolerância que essa mesma Palavra reivindica. E, geralmente, aquele que julga que a verdade está do seu lado, é o menos capaz de ver a luz libertária que emana da Verdade, como diz Jesus em João: “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8.32). Dogmas de fé não representam “a verdade” de Deus, embora se lhes atribuam tal valor; o cristão, por mais que conheça a Jesus (caminho, verdade e vida) não deve nutrir a pretensão de exprimir absolutamente essa verdade nas coisas que cria (doutrinas, estruturas, instituições). Conforme diz João em sua primeira carta, no capítulo 3, só saberemos que “somos da verdade” se em nossa vida (mais, embora não só, que em nosso discurso) permanecer o amor de Deus.



Quando a luta pela verdade se desassocia da luta pela liberdade, e as duas deixam de ser parceiras, geradas e geradoras uma da outra, um possível resultado é o que a história já tem nos mostrado há milhares de anos: violência, intolerância, guerras, inquisições, fogueiras santas. A vivência radical do amor de Deus no mundo deve ser um grande “basta”! Bastam guerras santas, cruzadas ou inquisições (com ou sem fogueiras). O recado de Gilberto Gil, na música “Guerra Santa”, ainda é válido neste contexto: “O bom barraqueiro que quer vender seu peixe em paz deixa o outro vender limões”.



Não podemos mais sacrificar o relacionamento (e matar a caridade) no altar da verdade. Talvez tenha chegado a hora de conjugar o “carregar a nossa cruz” no contexto urbano pós-moderno com a coragem de fazer morrer (junto com nossos egos “espirituais” inflados) nossas paixões, crenças e verdades dogmáticas em favor dos relacionamentos de vida. Como ouvimos aqui, a vida está acima da lei. E o amor é a lei que está acima da própria Lei, parafraseando Peter Rollins.



Finalizo com algumas questões para provocar mais o debate (que não se encerra):


- Como estimular pessoas a serem discípulos relacionais da verdade (do amor) e não meros reprodutores de uma verdade dogmática?


- Como equipar pessoas para o diálogo crítico e respeitoso, a busca pela paz, justiça, liberdade, igualdade e tolerância em uma sociedade plural, mas ainda bélica?


- Se ainda somos impelidos a “falar” da verdade, como tratar nosso discurso?


- E uma última mais retórica: se a verdade-pessoa (relacional) é comunicada por meio de proposições, uma via não seria a de reconhecer o status limitado e “fraco” de nosso pensamento e de nossas ações?



Notas
* Texto de palestra proferida na Consulta da FTL Sudeste-SUL – São Paulo, Seminário Servo de Cristo – 25.06.2011.
(1) Rubem Alves. Citado por José Miguez Bonino em sua “Carta aos jovens historiadores do protestantismo latino-americano”, escrita por ocasião da formação da comissão de história da FTL durante o CLADE III, em Quito, Equador, 1992.
(2) O Compromisso da Cidade do Cabo, p. 21.
(3) ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras. São Paulo: Loyola, 2002, p. 150.
(4) Veja mais sobre este assunto em dois de meus artigos nesta revista: “Arruinado, ferido e ainda assim íntegro” e “Frente a frente com o paradoxo”.
(5) VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004, p. 123.


Por Jonathan Menezes - Professor de história e teologia na Faculdade Teológica Sul Americana e no ISBL – Centro Educacional Evangélico, em Londrina. É mestre em História Social pela Universidade Estadual de Londrina.


Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=607

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