sexta-feira, 16 de março de 2012

A casaca marrom




A casaca marrom do monge Bertoldo, morto há dois anos, seria vendida em leilão. Considerado um santo homem alguém arremataria sua veste como relíquia.


Mas Margô não a desejava como um talismã. Ela tinha outros planos para a roupa monástica. Passou o dia procurando e juntando o dinheiro que imaginava necessário para trazer a famosa casaca para casa. Daria de presente ao marido na esperança não de o agasalho bento atrair alguma virtude, mas servir de inspiração. Enquanto caminhava na direção do edifício onde seria o leilão, Margô imaginava Joabe se abotoando. Aquecido, ele guardaria, no inverno, as virtudes que lhe faltaram no verão.


O arremate não foi complicado. Ninguém havia juntado tanto dinheiro. Antes do martelo bater a terceira vez, a única herança do monge passou para as mãos de Margô.


Ao chegar em casa, Margô esparramou a blusa sobre uma mesa. Alisou as mangas com o cuidado dos padres quando esticaram o Sudário na lâmina de vidro que o preserva até hoje. No bolso do lado direito, achou uma folha de papel dobrada três vezes. Os vincos estavam apertados em cada dobra. Atônita, Margô leu a única escrita que Bertoldo deixou:


Sinto falta de algo que todos os compêndios ainda não conseguiram decifrar. Tenho sede de uma água que nem sei bem se existe ou como sacia minha alma. Meus sonhos, agora com idade, sei: eles nunca se cumprirão. Quero um país que só visitei em viagens para dentro do meu coração – um país tão próximo e, ao mesmo tempo, tão impossível. Escrevo. Medito. Tranco-me. Enfurnado em minha própria cela, oro. Minhas preces não passam na maioria das vezes de silêncios dirigidos aos confins do universo. Medito. As minhas meditações esfumaçam a linha que separa o meu presente do porvir. O que fazer? Sei, não há resposta. Resta-me o doloroso e fascinante dever de continuar. Amedrontado e poucas vezes afoito, sigo.


Margô escureceu a blusa marrom com suas lágrimas. Ela não chorava por Bertoldo. Chorava por si mesma. As palavras que acabara de ler eram na verdade o clamor de seu próprio coração.


Soli Deo Gloria


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/contos/a-casaca-marrom/

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