quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Rm 8.28-30



Franz J. Leenhardt




8.28 – Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito.




A condição do cristão é, afinal, focalizada sob um último aspecto. O movimento que dirige toda a criação – e o homem, seu senhor, em particular – para com seus fins apropriados, realiza o pensamento de Deus. Isto é coisa já sabida; deve, porém, ser proclamada ainda mais claramente, para que se evidencie sem sombra de dúvida que nenhuma contradição oposta pela história poderá conter a trajetória da obra de recriação empreendida por Cristo. Nem a corruptibilidade do mundo e do “homem exterior”, nem a fraqueza do “homem interior” impedirão realize Deus Seu plano (Michel, p. 180).



Porque Deus tem um plano. “Sabemos” que esse plano existe, declara Paulo, expressando a fé alimentada pela comunidade, como no verso 22. E esse plano, sabemos que será levado a termo para o bem daqueles que amam a Deus. Essa expressão traz à mente as tradições judaicas; “amar a Deus” é fórmula herdada do Velho Testamento, marcadamente rara em Paulo, porém (1Co 2.9; 8.3), que insiste sempre no amor de que Deus é o sujeito, não o objeto.[1] É Deus quem dirige as coisas, não as coisas que acabam por ajustar-se.[2] Dirige-as Ele, não com vistas a uma acanhada felicidade burguesa, mas para a salvação, a glorificação, em que se Lhe consumará a obra. Os termos do apóstolo não sugerem nem a ideia de uma seleção restrita a alguns, nem a ideia de uma rejeição, como o queria Agostinho. O ponto em foco é a certeza da salvação fundamentada na fidelidade de Deus a Seu desígnio (Gaugler, p. 331).



8.29 – Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos.



Os que amam a Deus são aqueles a quem Ele tem conhecido (hoús [os que] recapitula toís agapôsin [aos que amam]), porque, se alguém ama a Deus, é que é dEle conhecido (1Co 8.3: égnostai hyp’autoû [é conhecido por ele]). Explicação é ao verso 29 porque Deus outorga àqueles que O amam uma assistência que lhes visa ao bem supremo, à sua salvação. A razão é que (hóti [porquanto] tem o sentido causal) os destina a serem conformes a Jesus Cristo. Tal é o desígnio de Deus: a frase seguinte dirá como se realiza este desígnio.



Os que amam a Deus são, portanto, aqueles a quem Deus tem “conhecido”. Este conhecimento não é o conhecimento objetivo, intelectual; é um conhecimento como o implica a ideia hebraica de yada, (conhecer): neste tipo de conhecimento, o sujeito se dirige para com o objeto, encontra-o, e não apenas se postam um diante do outro, um objeto e um sujeito; estabelece-se uma relação, uma espécie de comunhão; este conhecimento é já uma experiência: como tal, pressupõe uma ingerência do sujeito, implica frequentemente um juízo eletivo; conhecer é escolher, é deixar-se envolver, é, então, amar e escolher por amor.[3] O “conhecimento” que Deus tem do homem precede ao amor do homem para com Deus e lhe constitui o fundamento (daí, proégno [conhecer de antemão]: o pro [antes, de antemão] marca essa anterioridade; cf. 1Co 8.3.).



O processo de “conhecimento” de Deus busca um alvo. Como o pai da parábola reintegra o filho à dignidade filial, persegue Deus a reintegração dos pecadores à comunhão com Ele pela adoção, graças à qual faz dos crentes co-herdeiros e co-glorificados de Deus. Paulo expressa esse fato aqui mediantes as ideias de morphé = forma e eikón = imagem.



O desígnio de Deus é tornar con-forme ao Filho (o syn [con] recorda os do verso 17), isto é, fazer compartilhar da “forma” do Filho. A forma, neste contexto, não corresponde ao exterior (em oposição ao interior), nem ao superficial (em contraste com o essencial). A “forma” dá a conhecer a realidade, é o conteúdo até onde se evidencia e se torna comunicável.[4] A grande proximidade de sentido entre “glória” e “forma” torna tanto mais razoável a passagem da ideia de “con-formar” à ideia de “co-glorificar” (verso 17). Tornar conforme é dar participação na glória, levando a participar da imagem do Filho. É justamente o que rezam 2Co 3.18 e Fp 3.21, onde, de igual maneira, se exibem em íntima aproximação: morphé (forma) e dóxa (glória).[5] Esta conformação ao Filho por excelência confere o estatuto de filho aos que se beneficiam dela. Co-herdeiros, dizia o verso 17; irmãos, diz o verso 29. As duas coisas vão juntas; os filhos são, a um tempo, isto e aquilo. Naturalmente, o Filho de Deus precedeu os demais; é por Ele que estes receberam a adoação filial. Ele é-lhes o irmão mais velho.[6] A pré-destinação de que fala Paulo diz respeito, então, ao conteúdo do desígnio de amor divino realizado no Filho, aos meios de realizá-lo; não concerne à inclusão ou exclusão de quem quer que seja em relação a esse desígnio.



8.30 – E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou.



O prefixo pro (antes, de antemão), que ocorreu três vezes no verso 29, indica a anterioridade do desígnio de Deus em relação à história. Agora, trata Paulo de indicar o que vem esse desígnio a tornar-se em sua realização, a trajetória histórica a ser traçada no tempo por esse desígnio eterno. Vocação, justificação e glorificação são-lhe os três momentos essenciais; Deus chama; Deus justifica; Deus glorifica. O chamado ressoa hoje mediante a pregação do Evangelho, que leva aos homens a promessa de Deus em Jesus Cristo e suscita a resposta da fé. A justificação é a condição nova do crente que aceita a promessa; engloba o termo todos os bens, todos os dons e todas as exigências da condição cristã aqui nesta vida, como acabam de evidenciá-lo as próprias considerações feitas aos leitores de Roma no curso das páginas que Paulo acaba de escrever. A glorificação é o estatuto definitivo que receberão aqueles a quem Cristo associa à Sua própria glória. Paulo fala aqui, usando o tempo pretérito, deste ato último, que, entretanto, não verá sua realização senão mais tarde (cf., por ex., verso 17). Pode-se perceber na escolha deste tempo verbal uma expressão da certeza da fé; a vontade divina já está firmada na eternidade de Deus, nada contra ela podendo as peripécias da história. De igual modo, pode o crente dizer, com Paulo: “fomos salvos”, porquanto atenta para a obra objetiva de Cristo; e pode dizer também: “seremos salvos”, quando tem em mira suas consequências históricas. Em um sentido, a glorificação já está conferida na vocação e na justificação.[7]



Fonte: Epístola aos Romanos, pp. 227-230



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[1] Dizia o rabino Aquiba: “Que o homem esteja sempre habituado a dizer: tudo o que o misericordioso faz, ele o faz para o bem” (Ber. 60b). Nos escritos herméticos (9.4b) aparece: pánta gàr tô (i) tooúto (i) (theosebei), kàn tois állois kaká, agathón esti (Pois para este (o piedoso para com Deus) todas as coisas são um bem, ainda que mal aos demais): Plot. 4.3, 16, 21; cf. W. Bauer – WÖRTERBUCH (DICIONÁRIO), s. v. synergéo (agir juntamente, cooperar).

[2] P46 B A Orig têm ho theós (Deus), no texto, que se faz necessário acrescentar para torná-lo mais explícito. Sem ho theós (Deus), pánta (todas as coisas) poderia ser o sujeito gramatical. A frase tomada no contexto da perícope como um todo pode subentender Deus como o sujeito ad sensum (pelo sentido). No caso em que se toma ho theós (Deus) como sujeito de synergeî (coopera, age juntamente), terá o verbo o sentido de: ajudar, prestar socorro, e pánta (todas as coisas) será considerado como um advérbio: com aqueles que O amam, Deus colabora em tudo para seu bem (S. Lyonnet), ou, ainda: em todas as coisas Deus colabora para o bem daqueles que O amam... (Bible du Centenaire [Bíblia do Centenário]).

[3] Assim, no V. T. yadá (conhecer) significará conhecer por experiência, por haver encontrado ou provado (por ex., Êx. 1.8; Is 42.45); no hifil: fazer conhecer por experiência concreta (por ex., Jr 16.21), ocupar-se de (por ex., Gn 39.6, 8). Conhecer um homem ou uma mulher é ter relações sexuais, as mais íntimas (por ex., Gn 4.1; Nm 31.18). Conhecer a Deus é ter com Ele as relações que convêm à intimidade, é servi-Lo, reconhecê-Lo concretamente pela obediência (por ex., Jr 22.16). Quando Deus conhece alguém, entra com essa pessoa em especial relação, ocupa-se dela, escolhe-a, ama-a (Gn 18.19; Êx 33.12; Am 3.2; Os 13.5; Jr 1.5).

[4] O sentido de morphé (forma) é, então, bastante aproximado do sentido de dóxa (glória). Ambos esses termos traduzem temúâ (forma, aparência, imagem, figura): Jó 4.16 e Nm 12.8; Sl 16.5; Cf. Is 52.44, que se traduz na LXX por tó eîdós sou kai he dóxa sou (a tua forma e a tua glória) e que Aquila traduziu como: órasis autoù kaì morphé (sua aparência e forma). Cf. ThWbNT, I, p. 759, n. 53. Quanto a eikón (imagem), cf. Kittel, ThWbNT, II, p. 395.

[5] O participar da imagem do Filho se interpõe como peça mestra no desígnio de Deus, porque o Filho é, Ele mesmo, eikón Theou (imagem de Deus) (2Co 4.4; Cl 1.15). Aquele que se conforma a Cristo, de fato se conforma a Cristo como imagem de Deus. O resplendor da glória de Deus na face de Cristo, imagem de Deus (2Co 4.4, 6), opera a “metamorfose” gloriosa à Sua imagem (2Co 3.18). Não há esquecer-se de observar que isso é a obra do Espírito (2Co 3.18), e tal observação ressalta ainda mais a unidade destas considerações contidas na Epístola aos Coríntios com aquelas que encontramos em Romanos VIII.

[6] Em protótokos (primogênito) a ideia de geração está retraída. O termo exprime, sobretudo, a ideia de anterioridade, de prioridade. Aqui se trata da prioridade na ordem da filiação; em outras passagens, da prioridade na ordem da criação (Cl 1.15) ou na ordem da ressurreição (Cl 1.18; Ap 1.5). Cristo é em tudo o primeiro (proteúon [o que tem a primazia; o que ocupa o primeiro posto], Cl 1.18). A anterioridade também sugere a excelência; o primeiro nascido é o filho predileto, privilegiado; os judeus costumam salientar a importância qualitativa de qualquer coisa ressaltando-lhe a antiguidade (a propósito da Torá, do Templo) (cf. Strack-Billerbeck, II, p. 258). Estas ideias, embora não excluídas, não exercem aqui senão papel secundário.

[7] Pode-se também admitir que a glorificação, ainda que por vir em sua plena realidade, já teve início àqueles que têm o Espírito, primícias do mundo glorioso que o são (Zahn); 2Co 3.18; Cl 1.27 parecem oferecer base para este ponto de vista. Tem-se, ainda, interpretado assim: Cristo foi glorificado, os fieis são-no também na pessoa de seu cabeça (Godet).





Vi no http://www.arminianismo.com/index.php?option=com_content&view=article&id=1299:franz-j-leenhardt-rm-828-30&catid=238&Itemid=38

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