quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Por Que “Ópio Coisa Nenhuma”: Sobre o potencial ambivalente da experiência religiosa






Quando eu resolvi produzir meu blogue, há três anos, uma grande amiga achou o título Ópio Coisa Nenhuma horrível. Num papo confidencial, ela me dizia que o nome era estranho, foneticamente deselegante, e espiritualmente esquisito. O blogue de um pastor, dizia ela, deveria ter um nome mais espiritual, mais suave, mais bíblico. Quando submeti meu livro, com o mesmo título, ao conselho editorial da EDUFAL, o(a) parecerista me recomendou que o mudasse. O título havia sido considerado confuso, editorialmente não recomendado e mercadologicamente fraco. O livro foi aprovado para a publicação com o título Religião e compromisso social (no prelo).




Para mim, era óbvio que o título Ópio Coisa Nenhuma seria automaticamente compreendido pelas pessoas. Eu pensava que todo mundo veria nele uma explícita referência ao aforismo de Marx “a religião é o ópio do povo...”. Todo mundo vai notar que Ópio Coisa Nenhuma é uma negação e uma afronta a esse aforismo, assim eu pensava. E a história que se seguiu foi a de inúmeros esforços para ter que justificar o porquê desse título.



Eu vislumbrei desde muito cedo minha vocação como teólogo. Lembro-me de enfrentar meu examinador do concílio com a estranha vontade de ser pastor-teólogo. E uma de minhas ênfases enquanto teólogo tem sido a de reforçar o potencial positivo da experiência religiosa. Já há muita gente interessada no potencial negativo da religião, dentro e fora das igrejas. Mas eu tinha razões muito fortes e pessoais para assumir outra postura.



A primeira delas diz respeito à minha própria experiência com a religião. Eu também tive uma fase inicial de fundamentalismo e êxtase irracional. Já me entreguei aos devaneios carismáticos que vivem da negação do mundo e da demonização dos prazeres da vida. Mas essa fase não durou muito, embora tenha sido bastante necessária. No geral, foi com a experiência religiosa que tive a experiência de encantamento do mundo. Aprendi o valor das pessoas, descobri potencialidades latentes em mim mesmo, e venci uma série de dificuldades pessoais que por muito tempo eu havia experimentado como travas existenciais. Quando o efeito do ópio fundamentalista acabou, uma fé madura me encheu de paixão pela vida, e uma vontade de lutar por um mundo melhor tornou-se o mote principal de minha existência. Devo tudo isso à minha experiência religiosa.



Em segundo lugar, uma das razões para reforçar o potencial positivo da experiência religiosa havia sido a descoberta de algumas biografias magníficas. Eu havia descoberto um número significativo de pessoas para quem a experiência religiosa não poderia ser chamada de ópio. Nos livros, eu ia me dando conta de que a experiência religiosa estava na base da ação de grupos e de pessoas fantásticas, amplamente celebradas mundo afora.



A religião da comunidade primitiva de Atos 2,42-47 e 4,32-37, que partilhava todos os bens a fim de que ninguém tivesse necessidade, não podia ser chamada de ópio. O episcopado libertador de Basílio de Cesaréia (329-379) não podia ser chamado de ópio. As reivindicações sociais dos camponeses anabatistas do século XVI, liderados pelo espiritualismo de Thomas Müntzer (1490-1525), não podiam ser chamadas de ópio do povo. A abnegação dos irmãos moravianos, que se vendiam como escravos para evangelizar as colônias européias, não podia ser chamada de ópio do povo. Muito menos a sensibilidade de John Wesley (1703-1791) frente aos trabalhadores ingleses que começavam a ser vitimados pelos efeitos da Revolução Industrial, e o evangelho social de Walter Rauschenbusch (1861-1918) na virada para o século XX.



Eu ia descobrindo nos livros que a América Latina era um caldeirão fervilhando com um tipo de religião que não podia ser adjetivada de ópio do povo. Entre evangélicos e católicos, havia indivíduos e grupos que deveriam ser tratados diferentemente. Como chamar de ópio do povo a religião de Richard Shaull, de Paulo Wright, Rubem Alves e Paulo Evaristo Arns? Como chamar de ópio do povo a religião daqueles que escreveram o Manifesto da Ordem dos Pastores Batistas de 1963? Como chamar de ópio do povo à religião dos que organizaram a Conferência do Nordeste, em 1962, com o tema Cristo e o processo revolucionário brasileiro? Como chamar de ópio do povo às Comunidades Eclesiais de Base e à Teologia da Libertação de Gustavo Gutierrez, Jon Sobrino, José Comblin e Leonardo Boff? Nos livros, eu ia me dando conta de um tipo de experiência religiosa que não aparecia na crítica dos professores universitários.



Em terceiro lugar, minha ênfase enquanto teólogo no potencial positivo da experiência religiosa se reafirmava na medida em que eu ia conhecendo gente de carne e osso, cuja experiência religiosa não poderia ser adjetivada como ópio. Com o tempo, fui me acercando de pastores e pastoras, missionários e missionárias, teólogos e teólogas diferentes. Eu não poderia chamar a religião de Marcos Monteiro de ópio do povo, com sua opção pelos pobres e sua renúncia às pompas da atividade pastoral. Eu não podia chamar a religião de Wellington Santos e Odja Barros de ópio do povo, por conta de sua coragem na denúncia de realidades de opressão fundiária, política e de gênero. Eu não poderia chamar a religião de Adriano Trajano de ópio do povo, com sua abnegação por humanizar um torrão de Alagoas que pouca gente que saber, e por seu enfrentamento de certas oligarquias históricas que por lá se perpetuam. Enfim, eu estava totalmente convencido de que a religião de Waldir Martins, Raimundo César, Paulo César, Jardson Gregório, Reginaldo Silva, Claudio Márcio, Joel Zeferino, e tantos outros e outras que fui conhecendo durante a caminhada, não poderia ser chamada de ópio do povo.



Mas não se engane: pessoas religiosamente virtuosas não são apenas aquelas capazes de grandes realizações no campo social. Há um número enorme de pessoas anônimas, sem diplomas, sem vínculos com movimentos e iniciativas sociais, membros de comunidades religiosas, que fui conhecendo em minha trajetória pastoral, cuja vida é encantadora. Ou, como diria Foucault, gente que [a partir da religião] “foi fazendo de suas vidas uma obra de arte”. Pessoas simples, algumas delas sem estudos formais, mas profundamente inspiradoras.



Citar nomes é um ofício que comporta uma única certeza: a de que cometeremos a injustiça de esquecer alguém. Mas ainda assim eu mencionaria o irmão Altino (Acupe-BA), pregador do Evangelho completamente iletrado, do alto dos seus 85 anos (quando o conheci há nove anos), e com uma vitalidade de dar inveja em gente de 18 anos. Gente como Dró (Eduvirgens – Barra do Rocha-BA), cuja alegria contagia a quem estiver perto, qualquer que seja a situação. Gente como o irmão Zeca (Utinga-AL), cuja simplicidade apaixonante nocauteia qualquer presunção. Gente como Alda Galdino (Forene – Rio Largo-AL), cuja sensibilidade e humanidade constrangem a muitos humanistas. Gente como Pêu (Forene – Rio Largo-AL), cuja bondade, inteligência e sede espiritual são fascinantes.



Isso não minimiza as coisas vergonhosas que certos religiosos praticaram e praticam mundo afora. Mas tais coisas devem nos fazer pensar que nenhuma religião é intrinsecamente má. Bom ou mau é o uso que as pessoas fazem de sua experiência religiosa.



Com a religião as pessoas podem aprender a discriminar os outros, mas foi com ela que eu mesmo aprendi a respeitar as diferenças humanas. As pessoas podem ser motivadas a matar em nome de sua fé, mas foi pela fé que eu mesmo aprendi que a vida é o nosso bem maior. Com a religião as pessoas podem aprender que esse mundo não tem jeito e a cruzarem os braços esperando o céu, mas foi com a religião que eu me convenci de que o mundo pode ser transformado agora mesmo. As pessoas podem aprender com a religião que a cultura humana e as coisas alegres que nela há são entes contra os quais temos que resistir, mas foi com a religião que eu aprendi que “tudo na criação de Deus é bom”, e que a vida deve ser protegida e aproveitada da melhor maneira possível.



Ópio do povo? Pode até ser aqui e ali.



Para mim? Coisa nenhuma!



Por Paulo Nascimento - é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.
 
 
 
Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=694

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