sexta-feira, 25 de maio de 2012

Oração, eficácia e anarquia





A oração é um daqueles temas sobre os quais todo mundo tem algo a dizer, talvez mais pela experiência que qualquer coisa (como uma definição conceitual, por exemplo). É o tipo de ato mais comum para quem acredita em (um) Deus ou pertence à (uma) religião. Mas, por ser, dos atos humanos, talvez o mais democrático (ou egocrático), qualquer pessoa pode fazer a qualquer momento sem impedimento algum. As razões são sempre variáveis, e o que se espera, via de regra, é uma intervenção divina (pressupondo, pela fé, que Deus intervém).


Poucas vezes, porém, associamos a oração a práticas de cunho não (ou nada) religioso, como por exemplo, aquelas que, no cotidiano, tocam o campo da ação e da eficácia. Nesse ínterim, mais que saber sobre “o poder da oração” (dimensão sobrenatural), cabe a pergunta: o que faz a pessoa que ora (dimensão vivencial)? Em tese, ela não precisaria fazer nada (em relação a sua pauta de oração) – uma vez que, ao orar, aguarda uma resposta, milagre, revelação e intervenção da parte de Deus.


Então, quer dizer que quem ora não age, não luta, não reivindica participar da construção de sua própria história? Quero entender que não é bem por aí. Pensando na oração a partir de um princípio de mutualidade na fé em uma comunidade de fraternos, Tiago escreveu: “Muito pode, por sua eficácia, a súplica do justo” (Tiago 5.19). Na tradução The Message, de Eugene Peterson, diz-se: “A oração de uma pessoa que vive corretamente com Deus é algo poderoso a ser levado em consideração”. Para entender melhor o lugar desta citação aqui, é preciso definir o que entendo tanto por “eficácia” como por “oração do justo”.


A eficácia tem a ver com a qualidade da ação que promove alguma transformação objetiva na realidade. Têm-se alguns objetivos que antecedem a ação e estes objetivos são cumpridos. Nesse sentido, sua relação com a oração envolve a transformação promovida no viver concreto de pessoas e em seu mundo — é preciso, portanto, não reduzir a “eficácia” da oração ao alcance/favorecimento de bênçãos e milagres em particular, o que parece ser a tendência geral. Mais importante que as fórmulas pragmáticas de eficácia — a oração eficaz como aquela “que funciona” — é saber o efeito da oração em seu modo de vida, isto é, se a oração representa uma revolução de mentalidade e de estilo de vida ou se tem sido mais um instrumento ideológico de alienação e amansamento de consciências a serviço dos sistemas de dominação e adestramento vigentes.


Vale lembrar aqui da advertência feita pelo diretor de cinema norte-americano Godfrey Reggio: “Penso que é ingênuo orar pela paz mundial se não vamos mudar a forma pela qual vivemos”. De nada adianta orar pelo governo e seus governantes, como muitos acreditam ser a orientação principal das Escrituras neste quesito (o que é questionável), sem que isto nos conduza ao patamar de indignação, protesto e denúncia quando, por exemplo, no governo há (e quase sempre há) corrupção, improbidade e injustiça. É inócuo o compromisso de oração de pastores de uma cidade, que oram, ungem e abençoam o prefeito em seu gabinete, sem a eficácia de uma conversa franca, construtiva e inteligente sobre a maneira como este e seus correligionários têm administrado a cidade. É triste quando circunscrevemos a oração apenas aos terrenos do “religioso” ou do “espiritual”, pois, assim fazendo, arrancamos seu potencial de transformação integral, desde o instante em que oramos “venha o teu reino, seja feita a sua vontade”, como nos ensina Jesus, e nos comprometemos, como corolário, a discernir o que isto significa em nossos múltiplos contextos e a agir segundo esta orientação e opção, lutando para que o reino continue a vir, e não somente esperando que ele “caia do céu” um dia, quem sabe...


Em Londrina temos vivenciado nos últimos tempos uma situação política das mais vergonhosas e tristes de nossa história, na qual prefeito, primeira-dama, funcionários de alto e de baixo escalão, além de alguns vereadores, estão sendo acusados e investigados pela (suposta em alguns casos, comprovada em outros) participação em um esquema de corrupção, lavagem de dinheiro, improbidade administrativa, formação de quadrilha, suborno e extorsão, dentre outros. Enquanto não aparecem evidências claras de seu envolvimento direto no esquema (seja lá o que isso for: vídeos, documentos, fotos, gravações, que desbanquem o “crime perfeito”?), o prefeito Barbosa Neto, do PDT, tem adotado o discurso manjado do político “João sem braço”, tal qual o presidente Lula no famigerado esquema “Mensalão”, de dizer que é inocente, não sabia de nada e, como “prova” disso, faz questão de que tudo seja devidamente apurado e investigado em seu governo. A impressão que fica é que o mito do “caçador de marajás”, desde Fernando Collor de Melo, se perpetua com certo grau de sucesso na política brasileira, na qual continuam reinando a supremacia burra da evidência, das vistas grossas e da cara de pau. Só oro para que o GAECO — grupo de atuação especial de combate ao crime — e a comissão de vereadores da cidade, que estão no caso, provem o contrário.


É um contrassenso que continuemos a orar pela apuração divina dos fatos, tratando-os como se nada nos afetassem. É lamentável que nós (cidadãos, cristãos ou não — mas falo mais aos cristãos) não tenhamos opinião alguma a emitir, nos resignando a tão somente papagaiar o repetido jargão de que “na política é assim mesmo”, ou a fazer a conformada oração “para que Deus abençoe nossa cidade e nossos governantes”. Isso só comprova o que Jacques Ellul disse no fim da década de 1980, em seu livro Anarquia e cristianismo:


Todas as igrejas sempre respeitaram escrupulosamente e, por vezes, até apoiaram as autoridades do estado, tornaram o conformismo uma grande virtude, toleraram as injustiças sociais e a exploração do homem pelo homem (1).


É um devaneio dos mais perversos reivindicar prosperidade, bênçãos e a conquista do território da cidade para Jesus quando nela grassam sinais do antirreino bem diante dos nossos lustrosos narizes!


Quando isso acontece precisamos lutar para que, do subterrâneo da luta humana por poder, no qual devemos nos encontrar como discípulos de Jesus, vozes e ações de protesto e repúdio emerjam contra essas formas deturpadas de exercício do poder e de lidar com a coisa pública. E mais: precisamos (falo de novo especialmente aos cristãos) dizer que o cristianismo não-constantiniano, que ainda subsiste pela graça dentro de nós, não está identificado ou mancomunado com qualquer sistema ideológico ou político, mas tem seu compromisso primeiro com o Reino de Deus e seus valores. Isto implica, talvez, na identificação com um modo não-integrado, não-sistêmico ou institucional, anárquico e pacifista de ser, no qual a oração deixa de ser um instrumento a serviço da “ordem” e do “progresso”, passando a ser um instrumento desestabilizador da ordem humana decaída. Esta oração é o combustível dos espíritos livres e subversivos, identificados com o Deus louco revelado em Cristo, que não dobraram seus joelhos como os adoradores de Baal, não se vendem nem negociam sua integridade e seu compromisso com as coisas do Reino em troca de “apoio político”, proteção ou benefícios escusos.


A oração do justo — como diz Tiago, do que procura andar, mesmo que tortamente às vezes, conforme a vontade de Deus — é a oração por justiça; que se conjuga com a luta corajosa contra a injustiça onde quer que ela, e a despeito de que forma, apareça; e em favor da paz do reino, que é uma “paz com voz”.


Entenda-se o elemento de anarquia aqui não como apologia infantil da desordem, ausência de qualquer governo ou mesmo da violência gratuita, mas — como defende Ellul — como um voto de protesto e contestação em prol do direito à vida e do ser humano, e como rejeição dos caminhos associados ao poder como dominação vigente nas instituições, religiosas ou políticas. Não é preciso dizer que este tipo de espírito incomoda, gera desconforto e produz perseguição. É o tipo de espírito que conduziu Jesus à morte de cruz, lugar dos malditos. Mas é o tipo de espírito que, na indispensável escuta ao Espírito, pode nos livrar da associação perversa e hipócrita, seja com a agenda de oração dos sacrílegos ou com a agenda de poder dos corrompidos. Como diz Gabriel, O Pensador, “não adianta olhar pro céu com muita fé e pouca luta”. Até quando a gente vai ficar levando porrada (risada e cusparada na face) nessa vida aburguesada que levamos, fazendo de conta que não estamos sendo atingidos ou que não é da nossa conta?


Notas
(1) ELLUL, Jacques. Anarquia e cristianismo. São Paulo: Garimpo, 2010, p. 11.



Por Jonathan Menezes



Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=852

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