segunda-feira, 27 de junho de 2011

Nasci e vivi nas fronteiras







Venho das fronteiras. Filho de preso politico e de feminista, sei o preço do exílio. Canhoto, acostumei-me a não encontrar lugar nas salas de aula. Excomungado da Igreja Presbiteriana antes de completar 20 anos de idade, perdi o medo de cenho franzido. Pentecostal entre teólogos com bom currículo, experimentei o peso da suspeita. Migrante nordestino em São Paulo, senti na pele a sutileza do preconceito.

Na adolescência, enquanto esperava papai descascar laranja para todos os filhos, ouvia seu conselho: “Nunca negociem suas convicções”. Nos anos de chumbo da ditadura, ele vira seus colegas de farda simplesmente calarem. Amigos, para fugir da inclemência do regime, desciam a calçada para não cumprimentá-lo. Papai se sentiu só. “Silêncio”, dizia meu velho, “pode ser a mais covarde das covardias”. Nessas horas, sabemos quem é quem. Aprendi com ele: "chacais e colibris não bebem da mesma fonte; ratos e gatos não se escondem no mesmo lugar". 


Mas ele também me ensinou que o bem prevalecerá até quando custa a vida de mártires. Mesmo na indiferença histórica, quando a lua se recusa a amenizar a noite e vampiros se desentocam, um bom fermento não cessa de levedar a massa. Meu pai, agnóstico, repetiu diversas vezes a verdade do Salmo primeiro: “Os ímpios não subsistirão na congregação dos justos; uma breve aragem se transformará em vendaval e os ímpios se espalharão como a moinha no deserto".

Moramos de favor na casa da vovó. Éramos uma “Grande Família”; talvez demasiadamente expostos uns aos outros, mas foi ali que aprendi a detectar arengas mal ensaiadas. Vem desde aqueles dias o asco com o sorriso manso de quem procura disfarçar sua mazela. Lobos vestidos de ovelhas acham que ninguém nota como são patéticos. Esforçam-se para parecer ortodoxos quando, na verdade, só defendem suas conveniências.

Anos se passaram e eu continuo nas fronteiras. Fiscais da "reta doutrina" estão permanentemente de plantão na espreita de um til mal colocado que sirva de combustível para suas censuras. O bombardeio é renitente.

Mas, espicaçado, achincalhado, não me vitimizo quando noto que estou me estrangeirando ao gueto. Não me impressiono quando avisado que sou “emissário do diabo”, “inimigo de Deus” ou “apóstata”. Meu caminho é inexorável. Não atenderei quem “têm zelo por minha alma” e pede: “volte atrás antes de queimar eternamente no inferno”. Sinto-me constrangido, nunca fragilizado, com o silêncio obsequioso de quem (só agora) receia ter o nome, minimamente, associado ao meu.

Paulo avisa que a obra de cada um será testada no fogo. Disponho-me a submeter no tribunal de Deus os milhões de quilômetros que viajei para ajudar igrejas de outras denominações, as escolas que a Betesda fundou, os seminários, conferências, congressos onde falei, o meu caráter na tesouraria, os aconselhamentos pastorais, as noites de vigília que passei ao lado de famílias enlutadas, os livros que escrevi, os sermões que preguei.

Na renitente cruzada contra mim, resta-me suplicar como Davi: “Caia eu nas mãos de Deus e não dos homens”. Deixo apenas uma nota aos que tentam me condenar: julgar precipitadamente é pecado. Balança enganosa é abominação. Alguns preferem cegar ao mercadejamento da verdade, à banalização do sagrado e ao aviltamento da ética para me caçarem. Do exílio, minha única surpresa talvez seja a de constatar que milhões, indignados com o livre pensar, são condescendentes com os neocambistas quando convocam Marchas por coisa nenhuma.

Se o Batista foi porta voz do que clama no deserto, não posso temer o meu ostracismo. Rechaço o conselho dos apóstolos da cautela. Vou no meu ritmo, não dos pusilânimes. Continuarei a clamar “basta” antes que pedras o façam em meu lugar. Acantonar-se é abrir passagem para os aproveitadores da credulidade popular.

Ensurdeço aos ataques porque me lembro: a tarefa de separar joio e trigo pertence aos anjos. O Supremo pastor apartará a ovelhas do bodes, mas seus critérios se distinguem dos doutores da lei. Fortaleço a minha caminhada porque logo será alardeado de cima do telhado o que aconteceu na surdina.

Soli Deo Gloria



Vi no http://www.ricardogondim.com.br/Artigos/artigos.info.asp?tp=66&sg=0&id=2414




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