sexta-feira, 2 de maio de 2008

Espiritualidade do outro lado da cerca religiosa.

Ricardo Gondim.

Vinicius de Moraes é um dos poetas mais sensíveis da língua portuguesa. Seus textos pulsam com sentimentos; sua pena verte lágrimas; seu amor se derrama intenso, sofrido, infinito, eterno.

Em vários poemas o Poetinha deixa vazar a sede de sua alma por Deus e não esconde angústias existenciais irresolutas. O poeta carregava um buraco no coração e intuía, corretamente, ser impotente para preenchê-lo.

Em “O Desespero da Piedade”, Vinicius suplica a infinita piedade de Deus para gente de todo tipo: de vendedor de passarinho, a sapateiros; de dentista, às mulheres no primeiro coito; mas termina pedindo que O Senhor se apiede dele:

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humildes – sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

Vinicius sentia que Alguém o seguia; havia um olhar perseguidor que o acompanhava e que ele não conseguia distinguir ao certo quem era. Em “Imitação de Rilke”, poetizou:

Alguém que me espia do fundo da noite
Com olhos imóveis brilhando na noite
Me quer.

Alguém que me espia do fundo da noite
(Mulher que me ama, perdida na noite?)
Me chama.

Alguém que me espia do fundo da noite
(És tu, Poesia, velando na noite?)
Me quer.

Alguém que me espia do fundo da noite
(Também chega a Morte dos ermos da noite...)
Quem é?

Vinicius percebeu que nascemos para uma existência diferente(Cristo chamava de “vida abundante”) e sabia que não nos resumimos a um saco de moléculas que funciona direitinho. Em “Poema do Natal”, ele encarna o Eclesiastes:

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos –
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos –
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez, de amor
Uma prece por quem se vai –
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação na poesia
Para ver a face da morte –
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos imensamente.

Vinicius fez poesia até sobre a “Transfiguração da Montanha”. O poema é longo e, lá pelo meio, entre belíssimos versos, diz:

A alma do homem é como o amor morto
Onde todas as coisas bóiam à superfície
Ai! O tempo em que a alma do homem era oceano
O grande oceano que guarda pérolas e possui vegetações esquisitas
E onde a luz bóia à superfície!
Mas o mundo mudou
Ele foi esquecido
A transfiguração foi esquecida
Os homens só se lembraram Dele
Ou para ofendê-lo enquanto viviam
Ou para temê-lo covardemente na hora da morte.

Vinicius conclui o poema sobre o encontro do Filho com o Pai no cume do monte e afirma:

Tu estás lá
E tu estás em todos os lugares
E ouço a tua voz na música do mundo
E sinto a tua mão na plástica das coisas
Tu és o ponto de partida
Tu és o caminho
E és o fim do caminho
És o cardo que fere os pés
E a grama macia que os repousa
E a grande tempestade de vendo
E o ar parado que sereniza.
És o pranto dos olhos
E o riso da boca
És o sofrimento do mundo
Numa promessa de eterna felicidade
És Deus
Deus que vê todas as coisas e a todas dá remédio
E que é o único perdão:
Amém.

Eis um desafio interessante para os cristãos amantes da poesia: pesquisar na vasta obra de Vinicius de Moraes sinais da espiritualidade cristã.

Soli Deo Gloria.

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