quarta-feira, 30 de abril de 2008

Espiritualidade e liberdade.

Ricardo Gondim.

Uma autêntica relação com Deus só é possível no caso dele ter criado os seres humanos com liberdade. Isto implica que as respostas humanas à revelação e ao amor de Deus carregam a possibilidade de aceitação ou rejeição. Deus ama, portanto, não se força – “eis que estou à porta e bato”.

Quando interpela, homens e mulheres podem cooperar ou frustrar a sua vontade. Indivíduos possuem liberdade de dar as costas ao conselho (boulê) de Deus como está escrito em Lucas 7.30: “Mas os fariseus e os peritos da lei rejeitaram o propósito (boulê) de Deus para eles, não sendo batizados por João”. A vontade (thelô) de Deus pode ser frustrada como Jesus lamentou em Lucas 13.34: “Jerusalém, Jerusalém, você, que mata os profetas e apedreja os que lhe são enviados! Quantas vezes eu quis reunir os seus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo das suas asas, mas vocês não quiseram!”.

Para que o seu relacionamento seja verdadeiro Deus concede liberdade real. Portanto, não seria possível concebê-lo guardando alguma agenda secreta na manga ou induzindo os seus filhos a se sentirem livres sem que realmente fossem. Neste caso, homens e mulheres imaginariam estar fazendo a diferença quando na verdade, só cumpririam um roteiro escrito minuciosamente com todos os desígnios. Aceitar tal conceito, porém, contrai a revelação de que Deus é luz e que nele não há nenhuma sombra ou suspeita. C.S. Lewis argumentou sobre a onipotência divina em “O problema do sofrimento” e concluiu que:

A sua onipotência significa poder fazer tudo o que é intrinsecamente possível, e não para fazer o que é intrinsecamente impossível É possível atribuir-lhe milagres, mas não tolices. Isto não é um limite ao seu poder. Se disser: “Deus não pode dar a uma criatura o livre-arbítrio e, ao mesmo tempo, negar-lhe o livre arbítrio não conseguiu dizer nada sobre Deus[1]

O Deus bíblico cativa amorosamente os seres humanos e os interpela para que se comprometam com a construção da história – que ainda não está pronta. O teólogo uruguaio, Juan Luis Segundo afirmou:

Com infinita liberdade, Deus se dá a si próprio os limites que supõe (para não ser contraditório) todo amor no trato interpessoal. E isso nos recorda outra limitação, a suprema, realizada por Deus: a da Encarnação (cf. Fl, 2.7)[2]

Portanto, Deus corre o risco de frustrar-se com a liberdade que ele, soberanamente, decidiu necessária em seu amor. Com isso, não afirmo que Deus não consiga em sua infinita sabedoria desencalacrar o universo das conseqüências do mal. Sim, ele é poderoso para redesenhar a história a partir das tragédias.

Mas as Escrituras deixam claro que Deus decidiu, em sua liberdade, não controlar tudo. Como não precisa obedecer a nenhuma necessidade, nada o força a fazer qualquer coisa. Pelo contrário, Deus pede a contribuição (input) humana para o processo de re-escrever o futuro. Este gesto é boa vontade ou graça. Em diálogo amoroso, Deus convoca seus filhos para serem parceiros seus na gestação do futuro.

Uma espiritualidade responsável deve buscar a aproximação das aparentes contradições da vida com os pressupostos da teologia; de alguma forma, procuremos enlaçar as nossas mãos às dele e mudaremos a vida de muitos – que não está determinada.

A religiosidade grega negava o valor e a consistência de qualquer parceria entre Deus e os homens porque, na metafísica aristotélica tudo se desenrolava como um destino inexorável. Lamentavelmente, esse fatalismo ganhou força com a teologia da “providência” que se imagina capaz de por tudo em ordem. Os teólogos passaram a explicar a existência ao afirmarem, com absoluta certeza, que Deus, desde sempre, decretou os mínimos detalhes do universo e da história - tanto coisas boas como ruins só aconteceriam por sua vontade.

Concordo com Juan Luis Segundo quando afirma que esta divindade não tem nada a ver com o Deus bíblico:

“O fato é que o Deus de Aristóteles e o Deus que, segundo João, é Amor não são a mesma coisa. Se Deus é amor, é mister refazer o conceito da realidade divina[3]

Portanto, liberdade é um conceito de maior importância para que a espiritualidade não seja alienante (Marx), infantilizante (Freud) ou desumanizante (Nietzsche).

Atentemos, por último, para José Comblin:

As formas da antiga cristandade estão se apagando. Com o desaparecimento da cultura rural, o cristianismo dos avós já pertence ao passado. Não adianta querer ressuscitar o passado nem querer contar com os movimentos de “entusiasmo” religioso para fundar nova cristandade... O evangelho é este: ‘Cristo nos libertou para que vivêssemos em liberdade’ (Gl 5.1).’Foi para a liberdade que vocês foram chamados (Gl 5.3). Deus é liberdade e nos criou para a liberdade. Esta é a nossa vocação humana. O sentido da nossa vida é construir e conquistar a liberdade[4]

Soli Deo Gloria.



[1] Lewis, C. S. – O Problema do Sofrimento, Editora Mundo Cristão, 1983, p.20.

[2] Segundo, Juan Luis – Que mundo? Que Homem? Que Deus? – Editora Paulinas, 1995, p.446.

[3] Segundo, Juan Luis – Que Mundo? Que Homem? Que Deus? Editora Paulinas, 1995, 441.

[4] Comblin, José – Vocação para a liberdade – Editora Paulus, 1998, p.11.

0 comentários: