sábado, 21 de janeiro de 2012

Quando o pastor vira fetiche




Por Carlos Moreira


O único lugar que eu conheço em que o blefe é bem vindo é no jogo de pôquer. No mais, na vida cotidiana, blefar é plantar hoje a desgraça que será colhida amanhã. Creia-me: não há coisa pior do que transformar a existência num blefe, em disfarce, exibição performática, teatro do real, representação cênica constituída de caras e bocas, risos e falas, dramas encenados, mas que, ao final do ato, não podem ser esquecidos, apagados...


Tristemente, todavia, esta tem sido a vida de muitos pastores e pregadores do Evangelho. Uma vida de disfarce, baseada no blefe, um “jogo de cartas” onde o “jogador” sempre perde. Digo isto porque tenho, com certa freqüência, escutado as dores de muitos dos meus colegas... Eles se tornaram vítimas da “engrenagem” da “igreja”, foram engolidos pela “máquina” que a tudo devora, tornaram-se fim, e não meio, imaginaram ser, parafraseando Gilberto Gil, “o super-homem que viria nos restituir a “glória”, mudando como Deus o curso da história...”. Mas, felizmente, eles não são... Esqueceram, todavia, que Jesus, sendo Deus, quis ser homem e, sendo homem, agiu e sentiu como homem: teve sede, fome, medo, dor, tristeza, depressão, angústia. Ele chorou, sorriu, se emocionou, viveu todos os matizes que os humanos caídos vivem; só uma coisa não fez: nunca pecou.


Preocupa-me o estado em que as coisas chegaram. Pastor dissimulando, vivendo crises de toda a sorte e tendo de sorrir para a “platéia” que pede “bis!”. Pastor achando que é de aço, e não de osso, imaginando, equivocadamente, que tem de sempre ter a palavra correta, a mensagem perfeita, o tratamento irretocável. A família do pastor não pode ter crise – imagina? –. Sua mulher tem de ser o baluarte da santidade, da paciência, dos bons costumes e do amor sacrificial! Os filhos do pastor, na verdade, precisam ser anjos em miniatura, os quais, temporariamente, estão impossibilitados de voar por sobre o altar.


A verdade é que pastor, no meio “evangélico” tornou-se fetiche! E aqui uso a palavra do ponto de vista de sua concepção filosófica, baseado nos pressupostos de Comte. Nesta perspectiva, o homem de Deus é concebido como “entidade supranatural”, na qual se busca conceitos e respostas absolutos. Ora, isso atribuído a Deus está bem posto, mas, a questão é que a “igreja” desviou o foco do eterno para o temporal, e transferiu aquilo que é apenas ligado ao transcendente para o imanente, cujas características são antropomórficas.


Sabes, entretanto, o que sois?” – diria Chaplin – homem de carne e sangue, ainda que imagines poder seguir a rotina da máquina composta de fios e ferro! Quem te disse, pastor, que você não pode entristecer-se, ou deprimir-se, que não pode chorar, sentir desânimo, nem incorrer em equívocos? Quem te sentenciou a existencializar o casamento perfeito, a não ter filhos problemáticos, ou a nunca experimentar um revés financeiro? Quem, diga-me, ousou supor que tu não sofres de crise de fé, não tens medo, ou que todo domingo estais atormentado tamanha é a tua vontade de celebrar 2, 3 cultos? Quem te disse, “pequeno ser de barro”, que és quase perfeito, que vives no vácuo abissal entre o homem caído e o Deus santo como se fosses um híbrido?!


Deixo-te, então, para teu consolo – quem sabe? – a poesia de Djavan. Não, não é um dos Heróis da Fé de Hebreus 11, nem teólogo de sucesso, nem mesmo evangelista de multidões, mas apenas alguém que, com sensibilidade para discernir as ambigüidades do ser, suas idiossincrasias, conseguiu extrair lições por causa de todos os dilemas pelos quais a vida lhe fez passar...


Só eu sei, as esquinas por que passei...”. Pastor, tu és homem, tu és pó, tu és falho, e só tu sabes as profundas contradições que co-existem em ti. Acorda homem! Deixa este trono fictício no qual tu, equivocadamente, te assentastes, e vem novamente habitar entre os mortais. Lembra-te de Oscar Wilde “onde há sofrimento há terreno sagrado”.


Só eu sei, os desertos que atravessei...” Pastor, tu és beduíno, és hebreu errante, homem de tendas! Não te deixes aprisionar pela fixidez da vida, pelos “confortos” da contemporaneidade, não plante nada que crie raízes profundas, pois deves sempre estar preparado para levantar teu “acampamento” e partir, ao sabor do vento, para onde quer que fores enviado... Sim, quando as “fontes” secarem, deves ir em busca de outros mananciais... Não esqueças o que nos ensina Thiago Paes Piva: “no deserto da vida, eu me sinto afogado em uma miragem”.


Sabe lá, o que é morrer de sede em frente ao mar...”. Não te iludas, pastor, tu és homem, tu és pó, tu és carne! Teus desejos são naturais, tuas necessidades são reais, tuas vontades são legítimas. Nem tudo te será possível, mas não é pecado desejar, apenas materializar aquilo que faz mal ao ser. Fazes o que puderes, “anda pelos caminhos que satisfazem teu coração...”. Assim, aconselho-te o que nos ensinou Freud: “é escusado sonhar que se bebe; quando a sede aperta, é preciso acordar para beber”.


Sabe lá, o que é não ter e ter que ter pra dar...”. Atenta, homem, que este é teu maior desafio... Ninguém pode dar o que não tem! Admites, então, que tu te esvazias, que tua alma seca quando exposta ao “calor” da vida, que teu coração pedra pela experimentação das dores que brotam do simples fato de existir. Por isso, torna-te gente! Abandona esta enfadonha rotina de seres apenas existente... E lembra-te de Publílio Siro, escrito latino da Roma antiga, “a necessidade não obedece à lei; ela faz a lei”.


No mais, segue a “cartilha” na qual fostes ensinado: ama a Deus, obedece às Escrituras e serve ao teu semelhante. Vista-se com vestes de louvor e unjas a tua cabeça com óleo! Jamais te falte o “vinho da alegria”, a gratidão e o contentamento, a paz celebrada como oração. Sejas, então, homem, como os demais! Desistas de ser Deus! Isto, para ti, seria penoso e infrutífero trabalho...

Carlos Moreira (Via A Nova Cristandade)
 
 

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