quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Sobre Maktub, Jonas e nosso papel na história

Ricardo Gondim

Fujo de entrar em controvérsias mínimas com quem só sabe dialogar com pedras na mão. Não tenho mais tempo para gastar com debates intermináveis com quem tem certezas prontas.

Entendo a delicadeza de alguns assuntos, e como suscitam reações emotivas. Devido ao nosso respeito a Deus e de nosso pavor de sermos sepultados na vala comum dos hereges, evitamos assuntos mais melindrosos e complexos como: o futuro, eternidade, acaso e , principalmente, o ser de Deus.

Contudo, pesam algumas inquietações em meu coração e por elas sofro uma perseguição implacável.

Insisto mais uma vez: não estou em crise, não ando depressivo, não venho tentando ajustar a Bíblia a alguma circunstância mal resolvida de minha alma. Acontece o contrário, estou super entusiasmado com Deus; os movimentos de meu espírito me impulsionam a reler a Bíblia para aprofundar-me na vida de Jesus. Tenho sede de amar o Senhor de minha vida. Quero ofertar meus poucos dias de vida para sua glória.

Sendo assim, ultimamente procuro ler as Escrituras numa perspectiva menos moderna, isto é, sem valer-me tanto dos métodos “científicos” do conhecimento da verdade. Tento lembrar a mim mesmo que a maior parte do Livro Sagrado foi escrito por semitas.

Almejo familiarizar-me com a mente de Jesus Cristo – que era judeu. Pergunto-me constantemente: "Como Jesus entendia a história e como ele encarava a interação de Deus com os homens?".

Um dos pontos que me chamam atenção é de como Deus se valeu de antropomorfismos para revelar-se – vejo que não há outro jeito de conhecê-lo. Cresceu, portanto, minha percepção do valor dos antropomorfismos no entendimento da Bíblia.

Obviamente, deve-se considerar um texto que fala sobre o “dedo de Deus”, como metáfora que comunica uma intervenção, não o fato concreto dele possuir mão e dedos. Moisés observou que havia o "dedo de Deus" nas pragas do Egito para mostrar que aqueles fenômenos não aconteciam por acaso. Deus é espírito, ele não tem corpo. Logicamente, essas metáforas bíblicas não passam de figuras de linguagem que nos auxiliam a compreender o Eterno.

Porém, seria desastroso tratar revelações sobre o caráter ou comportamentos relacionais de Deus como antropomorfismos sem muito valor. Deve-se levar a sério as expressões bíblicas de que Deus é Pai. Se diminuirmos as afirmações dessa natureza, toda a Bíblia fica sob suspeita. Assim, sentimentos, decisões, atitudes divinas não podem perder a força do que intentam transmitir, nem podem ser menosprezadas como simples figuras de linguagem.

Considero a revelação bíblica sobre o comportamento divino acima da interpretação teológica. O que alguns teólogos afirmaram sobre Deus não é absoluto (o que digo aqui também jamais conseguiria exaurir a verdade). Sendo assim, mesmo correndo o risco de expor-me mais uma vez, sinto que devo refletir sobre as recentes controvérsias que se espalharam a partir de algumas propostas teológicas minhas.

Tenho sugerido que Deus, Jeová, Pai de Jesus Cristo, muda de idéia, tem sentimentos, não determinou exaustivamente o futuro e o considera como ainda não existente como fato concreto. Venho propondo que a Bíblia trata o futuro como uma possibilidade – muitas vezes garantida pela predeterminação divina, mas sempre possibilidade; o futuro não é algo já acontecido.

Não quero provar esse conceito com uma centena de versículos; não é assim que tento fazer fazer teologia. Importa-me afirmar que a revelação judaica e, posteriormente, a cristã, tem sobejos argumentos para não tratar a história com as mesmas categorias da tragédia grega – que seguia trilhos inexoráveis. Convém lembrar que Édipo não conseguiu fugir de sua sina, por mais que tentasse, enquanto o Filho de Deus nos chama e envia para libertar as pessoas de um futuro de horror que possa vir se desenhar no futuro. E essa promessa de mudança de prognóstico não vale só para indivíduos, vale também para nações em diferentes gerações.

Mulheres e homens cooperam com Deus na realização da história. O imponderável, o mais intrigante, está contido numa premissa que produz outras perguntas: “Se Deus criou o mundo, Ele criou a humanidade. Por que, então, permite que a raça humana destrua o mundo? De onde vem a desordem social? Ela é tolerada por Deus por algum motivo por nós desconhecido?”.

O Rabino Jonathan Sacks, autor de “Uma Letra da Torá” (Editora Sêfer) afirma:

“Desde tempos imemoriais até o presente, sempre foram duas as maneiras de ver o mundo. A primeira prega que Deus não existe, e que tudo não passa de um conflito constante entre o acaso e a necessidade. O acaso produz as mutações, e a necessidade confere a vitória ao mais forte. Sob esta perspectiva, a evolução do universo se dá de forma cega e inexorável. Não há justiça ou juiz; não há questionamentos. Podemos saber o como, mas nunca o porquê das coisas...”.

A segunda, maneira afirma que Deus existe e que Ele é o Criador. Tudo acontece porque Ele assim o deseja. A injustiça é, portanto, uma ilusão. Talvez o próprio mundo seja uma ilusão. Quando o inocente sofre, é para que aprenda a buscar a fé no sofrimento, a obediência na punição, a serenidade na aceitação e a força do espírito no tormento físico. O mal é um disfarce que encobre o bem. A pergunta original procede e sempre tem uma resposta: Se nós pudéssemos entender os desígnios de Deus, saberíamos que o mundo é como é porque, se diferente, seria um lugar menos satisfatório”.

A religião de Abraão parte da recusa em aceitar qualquer das duas visões. Ambas contêm uma verdade, mas entre elas constata-se uma contradição. A primeira aceita a realidade do mal e a segunda, a realidade de Deus. A primeira decreta que a existência do mal implica a inexistência de deus. A segunda afirma precisamente o oposto.“

... o judaísmo [idem, para o cristianismo] não começa com uma admiração irrestrita pelo mundo e por tudo o nele existe, mas sim com um protesto veemente – porque o mundo não é como deveria ser. Neste brado de sagrado descontentamento, começa a jornada de Abraão. No âmago da realidade vive a contradição entre a ordem e o caos – a ordem da Criação e o caos que nós criamos”.

Jonas, o clássico da literatura judaica, demonstra não existirem bitolas de aço guiando o futuro. Aliás, o porvir é considerado, na cosmovisão judaica, uma construção de parceiros - Deus e a humanidade.

“Jonas, porém, ficou profundamente descontente. Ele orou ao Senhor: ‘Senhor, não isso que eu disse quando ainda estava em casa? Foi por isso que me apressei para fugir para Tarsis. Eu sabia que tu és um Deus misericordioso e compassivo, muito paciente, cheio de amor e que prometes castigar, mas depois te arrependes. Agora, Senhor, tira a minha vida, eu imploro, porque para mim é melhor morrer do que viver’”. Jonas 4.1-3.

No texto acima, Deus mudou de idéia exatamente por valorizar as ações do profeta e por respeitar o arrependimento do povo. Sua mudança não significou fraqueza, Ele apenas agiu misericordiosamente – um antropomorfismo que deve ser respeitado. Acrescento: misericórdia é um atributo moral que só existe quando existe mudança no misericordioso e não na pessoa que foi alvo dela.

Não houve ambigüidade alguma no anúncio da iminente destruição de Nínive. Os conteúdos da mensagem do profeta não eram falsos. Deus ia mesmo destruir aquele povo, porém mudou sua decisão diante do arrependimento da cidade.

Não concordo com argumentos do tipo: “Deus sabia que o povo ia arrepender-se, entretanto, ordenou que o profeta anunciasse o aniquilamento da cidade dentro de poucos dias, porque só assim, conseguiria mudar o coração do povo”. Será que Deus agiria dessa forma? Proponho que não se pode aceitar essa incoerência. Deus jamais mandaria o seu profeta mentir, pregando que a cidade seria arrasada, quando na verdade o próprio Deus sabia, de antemão, que não faria aquilo. Deus é luz e jamais ludibria seus filhos, não existe ambivalência em seu ser.

Eu creio que Deus garante o cumprimento da história, mesmo abrindo mão de controlar todas as suas variáveis – pressupondo que a liberdade humana é real. O senso comum de vários teólogos nega essa afirmação, mas eu acredito que se levarmos suas premissas às últimas consqüências, desembocaremos em fatalismo – mesmo que piedosamente chamado de submissão a Deus.

Se a história já estiver pronta, os atos humanos não influenciam o curso previamente determinado pela divindade. Se tudo está escrito, nada do que se faz altera o que já é. Se Deus contempla o futuro como uma realidade já concretizada, não há como fugir dele.

Vale a pena ler um pouco do que a missionária Bráulia Ribeiro escreveu sobre o assunto:

“A teologia da predeterminação está no coração da cultura ocidental, desde Philo e Agostinho; também está no coração das sociedades islâmicas fundamentalistas, absolutas e totalitárias: “Maktub” — está escrito. Será Deus o mesmo Alá?

Mas, e se fosse diferente? Se, em vez de teologarmos e filosofarmos, acreditássemos puramente na Bíblia? Ela diz que Deus se arrependeu de ter feito o homem (Gn 6.6). Ao descobrir que o ser livre que havia criado escolheu negar-lhe amor e ainda afrontá-lo com uma impiedade além de todos os limites, Ele sofreu. Sofreu tanto quanto um homem que, tendo tirado uma mulher da mais suja lama moral, drogada, suja, prostituída, se casa com ela, tem filhos, constitui uma família. Um dia este homem chega em casa e não vê sua esposa. Ela voltou para as ruas. Preferiu a lama, as drogas, o sofrimento degradante. O marido sofre agora, não por si mesmo, mas pelo destino que sua amada escolheu e que a fará sofrer. Essa é a metáfora proposta por Deus para falar de seu amor pelo povo de Israel, no livro de Oséias. Alguns teólogos que me desculpem, mas esta não é a imagem de um Deus-Alá indiferente e soberano sobre a vontade humana.

Todas estas, além de inúmeras outras passagens literais e metafóricas da Bíblia, perdem o sentido se o futuro for causado, se o livre-arbítrio humano não for real, mas um artifício divino para nos dar apenas a impressão de liberdade. A Bíblia passa a ser um livro sobre a grande matrix ilusória de Deus, e não o livro destinado a nos descortinar a verdade sobre o amor de um Deus que espera para ser amado, que nos pede para escolher a bênção em vez da maldição”.

Portanto, não questiono a onisciência divina, mas o futuro. Para mim, o amanhã ainda não aconteceu e pode ser mudado. Eis o motivo porque oro, anuncio o Evangelho e tento semear atos de justiça. Isso é o que chamo de Esperança.

Soli Deo Gloria.

0 comentários: