Já faz algum tempo que eu venho repetindo – seja em sermões, palestras, artigos, aulas ou em conversas entre amigos e amigas – a convicção heterodoxa de que o Espírito de Deus tem tido estreita relação com certos movimentos e indivíduos da esfera secular/profana da sociedade, engajados na promoção da vida e de seus valores fundamentais.
Em uma palestra na Igreja Batista do Pinheiro em 2009, eu cheguei a levantar as seguintes questões:
Em uma palestra na Igreja Batista do Pinheiro em 2009, eu cheguei a levantar as seguintes questões:
Em que medida os nossos movimentos sociais são “traduções secularizadas” de certos anseios bíblicos? Até que ponto a luta pela paridade nas relações de gênero, pela democratização fundiária, pela erradicação da pobreza, pela humanização das condições de trabalho, pela paridade étnica, por exemplo, atualizadas nos movimentos sociais, são a manifestação secular possibilitada pela declinação do Cristianismo a esses quefazeres? Em que medida tais movimentos são “animados pelo Espírito da Vida”?
Em que medida a prática desses movimentos pode informar e aperfeiçoar a prática eclesial cristã? Submetidos ao olhar crítico e ao discernimento evangélico, os movimentos sociais teriam algo a oferecer quando se trata de otimizar a eficácia missiológica das igrejas?
É bem verdade que a minha opinião e as minhas perguntas acima já estão atravessadas pela dicotomia ocidental entre secular e sagrado. O secular, para nós ocidentais, é o espaço do estritamente humano (profano/carnal/temporal), enquanto o sagrado é o terreno da performance do divino (religioso/espiritual/atemporal). E também é verdade que essa dicotomia é uma produção da Modernidade, e que pouco tem a ver com a tradição bíblica. Essa, por sua vez, desconhece as demarcações entre as performances sagradas e as seculares. Foi Mircea Eliade, talvez, quem melhor nos esclareceu nos últimos anos acerca dessas demarcações, que na dinâmica cultural ganham forma topográfica e temporal. Há lugares sagrados/religiosos e há lugares profanos/seculares. Há tempos sagrados/espirituais e há tempos profanos/carnais.
Produzimos também outras cisões. Há, entre nós, música que seja sagrada/espiritual e música que seja profana/secular. Há instituições sociais tipicamente religiosas/espirituais e há instituições sociais tipicamente profanas/seculares. Há ainda os símbolos/ícones do sagrado e os símbolos/ícones do secular.
E aqui interrompo para uma ligeira digressão.
É incrível como todas essas dicotomias conseguem produzir interessantes contradições.
O tempo sagrado (o tempo do culto, do ritual, da vida litúrgica, da reunião congregacional), por exemplo, consegue ser em alguns lugares o tempo mais segregador de certas sociedades. Pensemos nas igrejas protestantes norte-americanas ainda marcadas pela segregação racial. O pastor e ativista norte-americano Ken Sehested nos dizia que o momento do culto ainda é o tempo mais segregador da semana na América do Norte. Mas pensando um pouco também em nossa própria realidade local, o tempo do sagrado é o tempo de reforço a certos estereótipos sociais como, por exemplo, aqueles relacionados aos papéis de gênero.
Da mesma forma, a topografia do sagrado produz a esquisita contradição de fazer dos nossos templos os espaços mais ociosos de nossas cidades. O pastor Carlos Queiroz chegou a apelidar nossos templos de “elefantes sagrados”: estáticos, inoperantes, vazios na maior parte do tempo, assistindo de portas fechadas à dinâmica alucinada de nossas cidades. Irredutíveis às contradições sociais e redutíveis somente à dinâmica pré-estabelecida nos calendários eclesiásticos.
Fim da digressão.
Faltava-me, entretanto, uma base bíblico-exegética mais convincente a fim de embasar aquela opinião do primeiro parágrafo, sobre a mundanidade do Espírito de Deus na História. Minha fé na presença do Espírito de Deus animando certos movimentos sociais era mais intuitiva do que qualquer outra coisa. Eu simplesmente queria que fosse assim. Se o Espírito de Deus fosse de fato o “Espírito da Vida” (Rm 8,2), deveria haver alguma relação entre ele e os movimentos engendrados nas culturas humanas genuinamente interessados na afirmação da vida e na luta contra os poderes da morte. Dito inversamente, toda vez que a “reverência pela vida” (Albert Schweitzer) fosse o espírito a empurrar as ações humanas coletivas e/ou individuais, deveria haver a presença do Espírito de Deus ali: Ubi caritas et amor, Deus ibi est [onde estão a caridade e o amor, Deus ali está]. No entanto, me faltava o que nós protestantes chamamos de “base bíblica neotestamentária”, além dessa intuição.
É verdade, não se precisa da ajuda dos exegetas para se perceber isso na Bíblia. Surpreendentemente, mais ainda no Primeiro Testamento. Basta ler os textos com atenção.
A tradição do Êxodo e o Movimento Profético do Primeiro Testamento são apenas dois exemplos do que quero dizer aqui. Essas são duas tradições com pouquíssimos ares “religiosos”. Os temas presentes nesses dois movimentos envolvem aspectos que hoje não reputamos como tarefas “espirituais/eclesiais”, mas como “seculares/mundanas”. No Êxodo, por exemplo, o clamor do povo se faz ouvir em meio a uma situação étnico-político-econômica degradante de exploração. Os profetas também estão pouco interessados nas dinâmicas religiosas do povo, até que a justiça, a ética, o fim da exploração econômica, a democracia fundiária – sobretudo para os camponeses – fossem amplamente reconhecidos. Em ambos os casos, as dinâmicas religiosas interessam somente como alvo de denúncia enquanto lugares de ideologização da vida e dos interesses das elites.
Vendo com as lentes de hoje, tais tradições (Êxodo e Profetismo) nos aparecem muito mais como formas seculares de protesto social, muito distantes das dinâmicas de nossas igrejas cristãs. Honestamente, tais tradições nos parecem mais aparentadas com esses movimentos do campo e da cidade que adjetivamos de subversivos, mas que buscam a restituição de direitos fundamentais da vida: um pedaço de terra para morar e trabalhar, um salário justo, etc.
Todavia, perceber as mesmas dinâmicas do Êxodo e do Profetismo no Segundo Testamento é muito mais difícil.
E como o Protestantismo – sobretudo os Batistas, onde me situo – alega uma ligação visceral com o Segundo Testamento, argumentar a favor da presença do Espírito de Deus nos âmbitos ditos seculares e mundanos é sempre mais difícil. Isso porque se pressupõe que o Segundo Testamento, sobretudo a atividade de Jesus Cristo, foi uma atividade estritamente religiosa, circunscrita ao espiritual, voltada para a cura e salvação dos indivíduos, sem relação direta com temas sociais, políticos, econômicos, ou outros dessa natureza.
Todavia, perceber as mesmas dinâmicas do Êxodo e do Profetismo no Segundo Testamento é muito mais difícil.
E como o Protestantismo – sobretudo os Batistas, onde me situo – alega uma ligação visceral com o Segundo Testamento, argumentar a favor da presença do Espírito de Deus nos âmbitos ditos seculares e mundanos é sempre mais difícil. Isso porque se pressupõe que o Segundo Testamento, sobretudo a atividade de Jesus Cristo, foi uma atividade estritamente religiosa, circunscrita ao espiritual, voltada para a cura e salvação dos indivíduos, sem relação direta com temas sociais, políticos, econômicos, ou outros dessa natureza.
Até hoje a ética do protestantismo, embora não confessada, é acentuadamente individualista: converta-se o indivíduo e a sociedade se transformará, como se a sociedade consistisse numa somatória de átomos humanos e nada mais. É verdade, há lugar para o social na atividade de boa parte de nossas igrejas. Mas ele é sempre um derivativo secundário da missão fundamental, que é religiosa e espiritual. Nesse sentido, o nosso adágio se transforma: Ubi Ecclesia est, Deus ibi est [Onde está a Igreja, é ali que Deus está].
Tenho a impressão de que nesses últimos anos Richard A. Horsley tem sido uma das pessoas que melhor têm nos ajudado a revisar esses pressupostos. Com efeito, sua pesquisa pode ajudar aqueles e aquelas que procuram a tal “base bíblica neotestamentária” para fundamentar a crença de que o Espírito de Deus sopra muito mais profana e secularmente do que pensamos. Conforme Horsley, a atividade de Jesus de Nazaré quase nada teve de religiosa, tendo sido eminentemente de ordem sócio-político-social. De outra forma, não lhe caberia a cruz como sentença perpetrada pelo aparelho jurídico do Império Romano. Citando Frei Betto, o meu amigo Ascânio Júnior já nos dizia que “de fato, Jesus não morreu atropelado por um jumento numa esquina de Jerusalém”. Sua condenação foi típica dos insurgentes políticos, muito comuns entre o farto leque do banditismo social daqueles tempos de dominação romana da Judéia e na Galiléia.
Resumindo muito grosseiramente as hipóteses de Horsley em Jesus e o Império – O reino de Deus a nova desordem mundial, Jesus de Nazaré, animado por uma ampla tradição de resistência na história de Israel frente a impérios estrangeiros, teria desempenhado o papel de revitalizador das formas tradicionais de vida entre os camponeses da Galiléia. Tais formas tradicionais de vida estavam sendo paulatinamente drenadas pela presença imperial romana, mormente nos aspectos econômicos relacionados às pesadas taxações tributárias. Portanto, conforme Horsley, a atividade de Jesus de Nazaré deveria estar situada entre aqueles demais movimentos sociais de resistência que consistiam em ir minimizando os efeitos da espoliação militar, econômica e cultural do Império Romano entre os camponeses nas províncias da Galiléia e Judéia. Em suma, partindo de uma leitura específica do Evangelho de Marcos e da Fonte Q, Horsley arrisca a hipótese de que Jesus de Nazaré teria sido líder de um dos muitos movimentos anti-imperiais daqueles dias. Os nossos Evangelhos canônicos seriam o registro da memória das comunidades que deram seguimento ao movimento de Jesus.
Mas por que uma leitura desse tipo nos parece tão estranha e distante de nossas percepções do que tenha sido a atividade de Jesus de Nazaré? Para Horsley, o problema está nas “projeções” que fazemos no instante de interpretação da Bíblia. São fundamentalmente duas essas projeções: projetamos nos textos evangélicos a nossa dicotomia moderna entre religião e política, de tal maneira que Jesus de Nazaré se torna um simples “mestre religioso”; também projetamos nos textos evangélicos o nosso individualismo moderno, de tal maneira que Jesus de Nazaré passa a ser visto ocupando-se tão somente com problemas individuais, e não de comunidades e seus macro-problemas. Assim, Jesus de Nazaré se torna um ser domesticado ao esquema tipicamente religioso e eclesial, restrito aos dilemas individuais das pessoas, tendo quase nenhuma implicação quanto aos grandes temas e decisões sócio-político-econômicas que moldam a vida de nossas comunidades.
Nesse nosso tempo de novos imperialismos – cuja face mais explícita é o Mercado Mundial Globalizado Neoliberal, mas cuja face implícita se encontra na única superpotência de nossos dias – as suspeitas de Richard A. Horsley são muito bem vindas. Se aderirmos a elas, teremos achado uma ótima base bíblico-exegética neotestamentária para fundamentar nossa crença de que o Espírito de Deus, em sua dinâmica de humanização das sociedades, se utiliza de instrumentos das mais diferentes cores. Teremos também uma ótima base de argumentação no Segundo Testamento para esfumaçar as con-sagradas dicotomias entre atividade secular e religiosa, mundana e espiritual, político-social e eclesial, que caracterizam nossas igrejas.
Se eu já andava de olhos e orelhas voltados para os movimentos sociais, agora mais do que nunca!
Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.
Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=38
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