sábado, 3 de setembro de 2011

Reinvenção da fé/vida: nova leitura da espiritualidade e da diversidade sexual







Uma leitura cuidadosa da Bíblia, sem os óculos viciados de nossas hermenêuticas tradicionais, vai revelar o fato de que um dos temas capitais das Escrituras Sagradas é a reinvenção constante da fé e da vida. Embora não aceitemos a ideia de uma unidade teológica dos escritos bíblicos, aceitamos a ideia de que a reinvenção da fé/vida seja um tema que perpasse todos os seus escritos. Também não queremos dizer que isso que estamos chamando de “reinvenção da fé/vida” seja algo conscientemente defendido como uma doutrina pelos autores bíblicos. A reinvenção da fé/vida aparece na Bíblia de forma muito espontânea, assistemática, não-linear, por vezes caótica, sem qualquer pretensão de tornar-se dogma, sobretudo no testemunho da experiência histórica da fé/vida de Israel e da igreja.



A matriz helênica, presente nas tradições cristãs do Ocidente – dentre as quais os Protestantismos –, não nos permite enxergar facilmente na Bíblia esse testemunho da reinvenção constante da fé/vida, porque nos viciou a ver na Bíblia um código legal, doutrinário, dogmático e tipicamente religioso. Não restam dúvidas de que para a maioria dos cristãos em todo o mundo, o Novo Testamento tornou-se uma lei que deve ser replicada em suas minúcias. A graça, um de seus conceitos centrais e mais profundos, fica cativa de uma observância irrestrita dos conteúdos morais do Novo Testamento. Também fica cativa à confissão da “reta doutrina”, no dizer de Rubem Alves (2010). Em outras palavras, sem o cumprimento cabal da lei moral e sem a confissão irrestrita da reta doutrina, a graça é incompleta e insuficiente para salvar.



Eu desejaria usar três conceitos do trabalho de Paul Tillich (1992, 2003) como mediadores desse debate. São os conceitos de heteronomia, autonomia e teonomia. Desde já, defenderemos a tese de que a natureza e a produção da Bíblia obedecem a movimentos teônomos. Em decorrência disso, tentarei defender a tese de que, como cristãos no século vinte e um, nos caberia, em primeiro lugar, redescobrir as forças teônomas presentes na formação da Bíblia, para, em segundo lugar, produzirmos uma espiritualidade e uma relação com o mundo atual conforme uma atitude teônoma. Tentarei oferecer um exemplo elucidativo dos debates acerca da heterogeneidade sexual de nossos dias.



1. Heteronomia, autonomia e teonomia em Paul Tillich



Tillich sempre usou esses três construtos teóricos em relação às culturas na história. Ele não nos oferece definições desses termos que estejam desvinculadas dessas descrições culturais. Assim, nosso teólogo falaria numa cultura heterônoma, numa cultura autônoma e numa cultura teônoma (1). Esta última, conforme Tillich, deveria ser o ideal sinalizado pela realidade sacramental das igrejas.



Uma cultura heterônoma é aquela cujos referenciais éticos e morais são todos postulados por poderes considerados como transcendentes e impostos verticalmente à iniciativa humana. Fundamenta-se na incapacidade humana de guiar-se conforme uma suposta razão universal. A palavra heteronomia procede da junção de dois termos gregos: héteros = outro, e nomos = lei. É uma lei que vem de um Outro transcendente e absoluto. Paul Tillich mencionaria as sociedades medievais como tipicamente heterônomas, por basearem todos os seus códigos de conduta em valores tidos como revelados por Deus. Numa cultura heterônoma o próprio poder temporal deve ser subjugado à regulação da lei transcendente. Em outras palavras, nesses arranjos culturais o trono deve se submeter ao altar. Não resta dúvida de que em nossos dias, quando representantes de instituições religiosas militam no sentido de conformar as leis civis à moral religiosa, são os poderes heterônomos que estão em jogo aí.



Uma cultura autônoma, por sua vez, é aquela que se radica em valores exclusivamente imanentes, e por isso civis, humanos e seculares. Autós, em grego, quer dizer “si mesmo”. A secularização das sociedades ocidentais, embora tenha ganhado grande avanço no século vinte, é um movimento cujos precedentes já podem ser vistos desde o Renascimento nos séculos quinze e dezesseis. É a negação da tutela heterônoma, que sempre se expressa pelo controle institucional da sociedade pelas igrejas. Ventos autônomos estão presentes no Renascimento, na revolução científica do século dezessete, no Iluminismo, no aparecimento das Ciências Humanas no século dezenove, e culminam com a tendência que se consolidou no Ocidente no século vinte, de sociedades conformadas à influência de valores humanos, principalmente na política. Não se afirma com isso o desaparecimento dos poderes heterônomos. Estes, contudo, transformam-se em micro-poderes, e confinam-se à dimensão privada da vida, deixando a esfera pública sob a tutela de valores seculares.



Não obstante essas distinções, é preciso dizer que empiricamente, nenhuma sociedade, ao menos no Ocidente, foi exclusivamente heterônoma ou autônoma. Nas sociedades heterônomas – como no exemplo dado da Idade Média – viu-se a constante irrupção das resistências autônomas, ainda que quase sempre tenham sido sufocadas pelos poderes heterônomos. Também não podemos dizer que a Modernidade tenha produzido sociedades completamente autônomas, pois, como dissemos acima, os poderes heterônomos passam a existir aí como micro-poderes que regulam a vida privada das pessoas, paralelamente às injunções da autonomia presentes na política, na educação, na ciência e nas artes. Outra importante ressalva diz respeito ao fato de que quando nomeia-se uma cultura como autônoma, não se quer dizer com isso que a mesma careça de fundamento último. Tillich (2003) adverte-nos para o fato de que mesmo nas formações autônomas deve-se encontrar um elemento último e incondicional como seu fundamento.



Embora tenha apontado para bosquejos teônomos em filósofos e teólogos desde a Antiguidade Clássica (2003), Tillich (1992) afirmava que ainda não haviam aparecido culturas tipicamente teônomas. Ele apostava que à luz do “princípio protestante” poderíamos rumar para tal cultura. A esta Tillich apelidou de “era protestante”, uma era em que todos os falsos absolutos humanos, em todos os campos, seriam relativizados. Isso pode ser, inclusive, considerado como uma dimensão utópica do trabalho desse teólogo alemão. Este é um dos momentos propositivos de seu trabalho que aguarda elaborações ulteriores. A relação conflituosa entre as igrejas e a sociedade na atualidade, em geral, se radica justamente nesse movimento de extremos: de um lado, as imposições heterônomas das igrejas que engessam a vida, castram a liberdade e obstruem o pensamento aberto e criativo; de outro lado, a autonomia de setores da sociedade que se fecham à espiritualidade, ao transcendente, e ao fazerem-se referências últimas para si mesmas, cegam-se para as consequências idolátricas de sua autonomia (2).



Tillich (1992, p. 84-85) apresenta o seguinte resumo dos três conceitos:



A autonomia afirma que o ser humano, portador da razão universal, é fonte e medida da cultura e da religião – ele é sua própria lei. A heteronomia acredita que o ser humano, incapaz de agir segundo a razão universal, deve se submeter a leis estranhas e superiores a si mesmo. A teonomia afirma que a lei superior é, ao mesmo tempo, a lei inerente ao ser humano, mas baseada no fundamento divino que é o próprio fundamento do homem: a lei da vida transcende o ser humano, embora seja, ao mesmo tempo, a sua própria lei.



Como se vê, uma cultura teônoma só é possível se aceitarmos a possibilidade de uma intersecção entre a experiência tipicamente humana e o transcendente, não como forma de dualismo, mas de dualidade. Sob a teonomia, o ser humano não se vê nem coagido a obedecer a uma lei que lhe é imposta por um Outro transcendente, nem se vê como um solitário artífice da vida e medida de todas as coisas. Sob a teonomia, a lei que o ser humano reconhece além de si é a mesma que reconhece em si. A teonomia representa uma fusão entre o transcendente e o imanente, assim como a suspensão de todo conflito que derivaria das formações culturais que tomam esses elementos como antagônicos. De fato, trata-se de um conceito de difícil apreensão, e Tillich não nos ofereceu exemplos concretos suficientes que ajudassem a aprofundar a compreensão do que seria uma sociedade teônoma. No entanto, suas rápidas considerações acerca desse conceito bastam para nos ajudar a sustentar a tese de que esse foi o movimento presente na produção dos escritos bíblicos. Consequentemente, isso também é suficiente para a proposta de uma espiritualidade teônoma em nossos dias.



2. Teonomia e Bíblia: uma nova hermenêutica



Afirmar que um espírito teônomo é o que subjaz à produção dos textos bíblicos, significa romper com o conceito tradicional de revelação, baseado na divisão de um sujeito emissor e um objeto receptor dos dados revelados. O conceito tradicional de revelação, tão arraigado no entendimento das igrejas cristãs, assenta-se nessa dicotomia radical: de um lado, Deus, enquanto sujeito da revelação, e do outro lado o ser humano como objeto e destinatário passivo dessa revelação. Uma teologia da revelação conforme uma compreensão teônoma não pode suportar tal dicotomia. Nesta nova compreensão, Deus e o ser humano fazem-se mutuamente sujeitos de revelação. Consequentemente, a revelação deverá abrigar em si a historicidade, a dinamicidade, e a contingencialidade, porque essas são marcas do humano. Também deverá abrigar a pluralidade, a contradição, o paradoxo e a não-linearidade, outras marcas do humano (3).



Um conceito de revelação assim pensado deverá reconhecer a presença da reconstrução constante da vida, à luz da fé, nas narrativas bíblicas, tanto vétero quanto neotestamentárias. Na Bíblia, a fé/vida é constantemente reinventada a cada nova jornada do povo de Deus. Os códigos legais, jurídicos e religiosos são repetidamente repensados. Até as imagens tradicionais de Deus são dinâmicas e mutáveis, seguindo a dinamicidade da vida. Por exemplo, a presença de diferentes tradições na base da formação do Pentateuco (Javista, Eloísta, Sacerdotal e Deuteronomista), como demonstrou a exegese moderna, e a convivência dessas diferentes tradições no cânon escriturístico, apontam para esse movimento incessante de reinvenção da fé/vida do povo de Deus. Outro exemplo de atitude de reinvenção da fé/vida testemunhadas na Bíblia vem da ética dos profetas e seu chamado insistente para a transformação dos rituais religiosos em posturas éticas frente aos oprimidos. Por fim, a própria presença de um Novo Testamento como desdobramento e clímax dos conteúdos do Antigo aponta para o caráter assumidamente cambiante da teologia bíblica.



Nossa hipótese é que esse processo não é resultado do que se costuma chamar de “revelação progressiva”. Na ideia de revelação progressiva, a compreensão heterônoma segue inalterada. O ser humano continua objeto passivo de conteúdos revelados e a ele impostos verticalmente na história. O que defendemos, diferentemente, é a tese de que a Bíblia testemunha em favor da fluidez, da transitoriedade, da historicidade e da incompletude de um ser que, à luz da fé e de sua relação com o transcendente, reinventa corajosamente a si mesmo numa atitude teônoma. O “logia” de Jesus de Nazaré “ouviste o que foi dito aos antigos, mas eu vos digo...”, seria emblemático nesse sentido. Esse logia representa e tipifica a atitude teônoma, que nem se contenta em ser objeto passivo de conteúdos revelados, nem sujeito solitário na construção desses mesmos conteúdos.



A história recente da hermenêutica bíblica pode ser resumida como a corrida em busca do “princípio hermenêutico” da Bíblia por excelência. Em certa medida, podemos dizer que os escritos do Novo Testamento foram produzidos tendo a Jesus Cristo como princípio de releitura do Antigo Testamento. Nos Evangelhos, o Antigo Testamento é relido à luz da fé messiânica em Jesus Cristo pelas primeiras comunidades. Em Paulo, mais do que a fé messiânica, o tema da graça aparece como princípio hermenêutico de releitura do Antigo Testamento em face de seu enfrentamento junto aos judeus-cristãos. Lutero reutilizaria o princípio hermenêutico paulino da graça para reler a Bíblia no novo contexto do enfrentamento do sacramentalismo católico no século dezesseis. Mais próximos a nós, no século vinte, os teólogos latino-americanos usariam a libertação dos pobres, sob o símbolo bíblico do Êxodo, como princípio hermenêutico de releitura da Bíblia e de revitalização da praxis das igrejas. Muito mais recentemente tem-se falado num “biocentrismo”, isto é, numa defesa irrestrita da vida, como princípio hermenêutico de releitura da Bíblia.



O que se quer mostrar com tudo isso? Primeiro, que não há acesso à Bíblia sem uma mediação hermenêutica, mesmo que ela não esteja muito consciente para seus intérpretes. Sempre que interpretamos a Bíblia, o fazemos pela mediação de elementos recebidos de nossa tradição particular, de tal modo que não existe interpretação da Bíblia isenta de condicionamentos históricos. Segundo, que cada princípio hermenêutico utilizado numa época pode ser legítimo se cumprir seu papel profético junto à sociedade. Não obstante, nossa proposta é a de uma redescoberta do espírito teônomo presente na formação da Bíblia, a fim de que isso irradie luz sobre a relação entre as igrejas e a sociedade. Ou, em outras palavras, para que isso funde uma nova espiritualidade.



Em suma, o que queremos propor é que a reinvenção da vida, à luz da fé, seja o princípio hermenêutico de leitura das Escrituras.



3. Igreja e sociedade: a teonomia e a diversidade da experiência sexual



Cada momento da história renova o leque de demandas sociais que se colocam no horizonte missiológico das igrejas cristãs. Tradicionalmente, nossas missiologias funcionam a partir de postulados a priori, deduzidos seletivamente da Bíblia, que devem ser aplicados e executados junto à sociedade. Isso corresponde a dizer que nas missiologias tradicionais, as igrejas é que decidem as agendas missionárias, dizendo à sociedade quais são seus males e problemas. Nesse esquema, não se dialoga com a sociedade. Diz-se a ela quais são suas deficiências, e oferece-se a ela a remediação de suas chagas. Nós entendemos a missiologia de outra maneira. Seguindo a intuição de Luis Longuini Neto (2009), entendemos que “a missão é das igrejas, mas a agenda deve ser posta pela sociedade” (4).



A própria sociedade possui seus clamores, suas agonias, suas dores, e são estas que devem produzir a agenda missiológica de nossas igrejas cristãs. Nós compreendemos que a missão por excelência das igrejas é a sinalização do Reino de Deus, por meio da defesa da vida, da justiça e fraternidade humana. E entendemos que conformar a agenda missiológica das igrejas aos clamores da própria sociedade não corrompe essa tarefa, mas a potencializa ainda mais.



Pensando no campo restrito da sexualidade, Michel Foucault (2010[1977]) dizia que este nosso tempo tem sido marcado pela heterogeneidade da experiência sexual. Não se quer dizer com isso que nosso tempo tenha produzido essa heterogeneidade. Ela sempre esteve aí. Nosso tempo aparece como sendo responsável por uma nova relação da heterogeneidade sexual consigo mesma e com a sociedade. Aos poucos, essa heterogeneidade vai se fortalecendo, organizando-se, ganhando voz e espaço frente aos comportamentos sexuais hegemônicos. A própria plataforma política tem sido um desses espaços de visibilidade e de audibilidade para os grupos que compõem essa heterogeneidade sexual. Por meio da organização política e da luta ideológica, tais grupos vão angariando aparatos de proteção legal, que se não funcionam como dissipadores do preconceito, ao menos visam proteger e assegurar a tais grupos direitos sociais já possuídos pela maioria da população (5).



Antes de pensar na possibilidade de uma espiritualidade teônoma que dê conta dessas questões, é necessário dizer que guiada por razões heterônomas, a relação entre as igrejas e a sociedade nesse tocante só pode ser de profundo conflito. Isso porque, sob pressupostos heterônomos, a questão da sexualidade já está resolvida pela simplificação presente na dicotomia comportamento normativo (= heterossexual) versus comportamentos desviantes. Dessa maneira, acirram-se os preconceitos, reforçam-se os rancores mútuos, e as igrejas, em lugar de contribuírem na proteção da vida desses grupos, acabam reforçando a violência simbólica já tão arraigada na sociedade frente à heterogeneidade da sexualidade.



Como uma espiritualidade teônoma se relacionaria com a heterogeneidade sexual em nossos dias? Que alternativas há a essa relação de mútua violência entre as igrejas e os grupos de afirmação da heterogeneidade sexual?



Em primeiro lugar, ao que tudo indica, uma espiritualidade guiada à luz de pressupostos teônomos elegeria a defesa da vida dos grupos caracterizados pela heterogeneidade sexual como sendo a questão mais importante desse debate. Porque antes da própria afirmação da legitimidade da diversidade sexual em nossos dias, a questão acerca da violência contra essa comunidade de pessoas é o que aparece como prioritário. A cada ano cresce o número de vítimas de crimes motivados por razões de orientação sexual. Portanto, reconhecer a legitimidade da diversidade sexual implica em inserir-se no combate aos crimes cometidos por razões homofóbicas que já fazem parte do cotidiano de nossas cidades. Uma espiritualidade teônoma, a exemplo do que propôs e vivenciou o próprio Jesus de Nazaré, faz a inversão da importância entre a lei e a vida. A vida passa a ter valor absoluto frente à obediência à lei. Se a transgressão à lei se dá em nome da defesa da vida, por mais subversiva que seja essa espiritualidade, ela ganha ares teônomos. Em lugar da militância contra a heterogeneidade sexual, seja no campo da ideologia religiosa, seja no campo da luta parlamentar, as igrejas optariam pelo diálogo aberto e apoiariam todo mecanismo político de proteção à vida dessas pessoas.



Em segundo lugar, uma espiritualidade teônoma nos ajudaria a reconhecer que o primado da heterossexualidade é análogo ao primado do androcentrismo, do eurocentrismo, e do antropocentrismo. Em outros termos, reconheceríamos que os privilégios requeridos pela heterossexualidade são equivalentes àqueles possuídos pelos homens frente às mulheres, pelos brancos frente aos negros, asiáticos e latinos, e pelos seres humanos frente ao resto da criação. Quem hoje seria capaz de sustentar que esses privilégios são “naturais” e “conferidos por Deus”? Com os nefastos resultados que esses privilégios têm produzido no Ocidente, quem já não se convenceu de que são todos historicamente construídos no âmbito das relações de poder? Desta forma, uma espiritualidade teônoma não apenas assumiria a legitimidade da diversidade sexual, mas também contribuiria nas resistências ao poder heterossexual que se investe sobre aquelas no intuito de domesticá-las, silenciá-las e subjugá-las.



Conclusão



Talvez nosso papel principal, como igrejas cristãs desse tempo, seja o de contribuir no enfrentamento da intolerância que se dissemina com força cada vez maior no tecido social. A pós-modernidade, como muitos têm se referido a este nosso momento histórico, traz em si o paradoxo da autoafirmação dos grupos outrora oprimidos, junto com o acirramento dos fundamentalismos e da intolerância.



Se por um lado os negros se organizam e conquistam direitos sociais que lhes faltaram por muito tempo, por outro lado o racismo se sutiliza e se fortalece em muitas partes do mundo. Se por um lado as políticas públicas de inclusão social e de combate à pobreza minimizam a miséria coletiva de um significativo setor de nossas sociedades, por outro lado os novos arranjos do mercado mundial globalizado ajudam a aumentar cada vez mais o fosso que separa ricos e pobres em toda parte. Se por um lado as mulheres prosseguem firmes em sua jornada de emancipação do poder masculino, por outro lado seguem crescentes as estatísticas de crimes motivados por razões de gênero. Se por um lado os grupos vinculados à heterogeneidade sexual assumem publicamente suas idiossincrasias e requerem reconhecimento social cada vez maior, ao mesmo tempo a homofobia torna-se um desafio difícil de se contornar, sob diversos aspectos.



Também nossa pós-modernidade, com sua “crise da razão”, abre espaço para a espiritualidade. Sem dúvida, trata-se aí da permanência da antiga espiritualidade heterônoma (intolerante, intransigente e fechada ao diálogo), mas também da irrupção de espiritualidades resistentes, fora do cristianismo e também a partir dele. Entre estas últimas, quisemos defender neste artigo a proposta de uma espiritualidade teônoma, que se abra ao diálogo e que não tema o encontro com a alteridade; que se paute pela celebração da diversidade e que tenha na defesa da vida sua motivação precípua. O conceito de teonomia, sinalizado no trabalho teológico de Paul Tillich, permanece à mercê de elaborações ulteriores. O campo da sexualidade e seus múltiplos desafios é apenas um dos possíveis desdobramentos a serem pensados em perspectiva teônoma. Há outros tantos igualmente à mercê de importantes debates. Todos eles oportunizam a possibilidade de reinvenção criativa da vida. Em nosso caso, como igrejas cristãs, eles nos oportunizam a possibilidade da reinvenção de nós mesmos à luz da fé.



Uma espiritualidade teônoma, a nosso ver, seria socialmente propositiva no sentido de denunciar os perigos e os impasses dos extremos da heteronomia e também da autonomia. Como dissemos, se por um lado não desejaríamos corroborar o engessamento da vida por meio de uma espiritualidade intolerante e pouco criativa, também gostaríamos de apontar para os prejuízos de uma total autonomia. Eles já estão aí em muitos seguimentos de nossa cultura. Muitos trabalhos teológicos já se têm debruçado sobre os mesmos. Compete-nos continuar trabalhando para que nossas sociedades encontrem o equilíbrio e a harmonia latentes tanto no coração humano quanto na transcendência.



Bibliografia
ALVES, Rubem.
Religião e repressão. São Paulo: Teológica, 2003.
CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO.
Brasil sem Homofobia: programa de combate à violência e à discriminação contra GLBT e de promoção da cidadania homossexual. Brasília: Ministério da Saúde, 2004.
FOUCAULT, Michel.
História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 2010 [1977], vol. 1.
LONGUINI NETO, Luis. A missão é da igreja, mas a agenda é do mundo. In: ALIANÇA DE BATISTAS (org.).
Religião, utopia e sociedade: diálogos com Martin Luther King Jr. e Richard Shaull. Lauro de Freitas: Livro.com, 2009.
QUEIRUGA, Andrés T.
Repensar a revelação: a revelação divina na realização humana. São Paulo: Paulinas, 2010.
ROSE, Nikolas.
Inventing our selves: psychology, power and personhood. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
TILLICH, Paul.
A era protestante. São Paulo: Ciências da Religião, 1992.
_________.
Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2003, 3 volumes em 1.


Notas
(1) Cf. TILLICH, 1992.
(2) Aqui seria oportuno oferecer o exemplo do mercado mundial globalizado, com sua produção de desigualdade social e miséria humana, como um dos produtos de uma cultura pretensamente autônoma. Geralmente as ciências ganham relevo nesses debates como contrapontos principais aos valores heterônomos. Mas em termos de consequências idolátricas, talvez o mercado capitalista se mostre atualmente como o exemplo mais convincente da potencialidade desumanizante da pretensão autônoma.
(3) Reconhecemos que essas intuições se aproximam bastante do trabalho de Andrés Torres Queiruga, embora não dependam organicamente do trabalho deste teólogo espanhol. Para mais aprofundamentos, veja QUEIRUGA, 2010.
(4) Veja LONGUINI NETO, 2009.
(5) Consideramos o programa
Brasil sem homofobia, do Governo Federal, um exemplo eloquente das conquistas políticas que estamos apontando aqui, relacionadas à heterogeneidade da sexualidade. Para mais detalhes, veja CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO, 2004.




Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.



Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=565

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