sábado, 3 de setembro de 2011

Quando a Bíblia é a palavra do Diabo Humano






Com certeza, o problema da forma com que a maioria dos evangélicos brasileiros interpreta a Bíblia não é o fato de a interpretarem literalmente. Mas é o fato de que interpretam “alguns” textos de forma literal, em detrimento de outros. Em outras palavras, o problema não está na literalidade, mas na seletividade.



Infelizmente, a seletividade de textos que devem ser lidos de forma literal, sempre produz exigências a serem feitas aos outros. Ao mesmo tempo, os textos que são interpretados com mais leveza, com mais flexibilidade, à luz de recursos de contextualização, são aqueles que os intérpretes avaliam a si mesmos. Seria esse um comportamento honesto?



Um exemplo



Os novos embates entre líderes da comunidade evangélica brasileira e os homossexuais dão testemunho inequívoco disso. Contra essa comunidade de pessoas, os fundamentos bíblicos são buscados em seis passagens consideradas como palavras absolutas de Deus: Genesis 19.1-29; Levítico 18.22 e 20.13; Romanos 1.18-25; 1ª Coríntios 6.9; e 1ª Timóteo 1.10. Com tais passagens bíblicas, lidas literalmente, os outros são confrontados no seu modo de ser, sem a mínima possibilidade de que tais passagens sejam flexibilizadas por recursos hermenêuticos de contextualização.



Sendo palavras absolutas de Deus, tais passagens conseguem mobilizar pessoas para campanhas, marchas, passeatas contra os ímpios e imorais que vivem um estilo de vida contrário a estas palavras sagradas. Em Alagoas, por exemplo, muitos líderes cristãos e pessoas de igreja sentiram-se mobilizadas a participar do evento evangélico que, no dia 1 de Julho de 2011em Brasília, se opôs à aprovação da PL-122.



De minha parte, decidi não mais me opor a isto. Isso porque me reconheço entre aqueles que leem a Bíblia seletivamente. Eu também interpreto algumas passagens bíblicas de forma literal, em detrimento de outras. Na verdade, se isso for um problema hermenêutico, é um problema comum a toda comunidade cristã. Não há quem leia a Bíblia sem operar certa seletividade na hora de considerar literalmente este ou aquele texto. Quase sempre é a própria conveniência da pessoa que está em jogo, misturada à herança que cada um recebeu de sua tradição religiosa. E eu, como parte desse universo, também me reconheço como intérprete da Bíblia que não consegue escapar à ideia de que alguns textos devem ser lidos literalmente, enquanto outros não.



Então, a questão mais importante, a meu ver, seria a seguinte:



Por que não aplicar a interpretação literal de algumas passagens bíblicas também a nós mesmos? Por que somos tão implacáveis e inflexíveis no momento de ler certos textos de modo literal contra os outros, ao mesmo tempo em que aliviamos, metaforizamos ou contextualizamos certos textos bíblicos que diriam respeito a nós mesmos? Isso quando não nos esquecemos completamente de alguns deles!



Dois rápidos exemplos.



1. Pensando no caso alagoano em especial, me pergunto o seguinte: se nós reconhecêssemos como palavra absoluta de Deus o texto de Mateus 25.31-40, teríamos ido protestar em Brasília contra a PL-122, ou teríamos ido protestar na Praça dos Martírios em Maceió, em frente ao gabinete do governador, pela situação das famílias alagoanas que há quatorze meses vivem desumanamente nas barracas de lona desde as enchentes do ano passado? Digo isto porque Mateus 25.31-40 afirma que Jesus é os pobres, e que os pobres são o próprio Jesus. Isto não é palavra absoluta de Deus? Se é, por que não mobiliza ninguém? Seria por que, neste caso, ela não deve ser lida também de forma literal? Por quê?



2. Penso no estilo de vida de muitos pastores. Muitos dos que condenam com a Bíblia na mão os homossexuais têm um estilo de vida caracterizado pelo conforto pessoal, pelo acúmulo de dinheiro e de poder, pelos títulos acadêmicos e políticos de destaque na sociedade, pelo exibicionismo dos bens e das realizações. Por que não interpretarmos com a mesma intensidade literal usada nos textos usados contra os homossexuais uma profusão de textos das Escrituras que condenam estes mesmos pecados?



Eu me envolverei nos embates contra a PL-122 no mesmo dia em que vir tais pastores interpretarem literalmente as advertências de Jesus contra o perigo das riquezas (Mateus 19.23-30; Marcos 10.23-31; Lucas 18.24-30), aplicando-as a si mesmos.



Quem sabe, no dia em que o modo de ler Romanos 1.18-25 – texto que serve de suporte no Novo Testamento para reprovar o estilo de vida homossexual – for o mesmo modo de ler Mateus 19.16-22, em que Jesus põe como condição para o seu seguimento o esvaziamento de todas as riquezas pessoais.



Ou quem sabe no dia em que todas as passagens dirigidas contra os pastores, denunciando-lhes a forma leviana, desumana, desleixada, com que tratam suas “ovelhas” (Jeremias 23.1-4; Ezequiel 34.1-10), forem lidas com os mesmos caprichos literais a que estamos nos referindo.



Quem sabe, no dia em que as inúmeras passagens bíblicas que condenam as injustiças como a corrupção, a opressão aos pobres, o materialismo humano, tiverem o mesmo efeito de mobilização missionária que passagens como Romanos 1.18-25 têm para produzir marchas, paradas e protestos contra a PL-122. Em Alagoas, no dia em que eu vir essas passagens mobilizarem igrejas e pastores para passeatas contra a situação vergonhosa e calamitosa do povo dessa terra, eu me junto a qualquer outra manifestação baseada em leituras literais da Bíblia.



Minha conclusão disso tudo, portanto, é a seguinte:



A Bíblia nunca foi de fato palavra de Deus para tais pessoas. Se fosse, os textos que aqui apresentamos receberiam o mesmo tratamento daqueles usados contra os homossexuais, e as mobilizações contra as injustiças sociais seriam capítulos frequentes de nossa história. Se a Bíblia fosse a palavra absoluta de Deus, os pastores ostentariam modos de vida diferentes, assemelhando-se minimamente àquele pobre e simples camponês a quem chamam de “Senhor”.



A Bíblia, nestes casos, é somente um "livro-instrumento" usado por tais pessoas para dar fundamento aos preconceitos, às maquinações, à sede de poder, à ganância e à soberba que habitam seus corações. Assim, em lugar de ser a palavra absoluta de Deus, ela acaba por se tornar a palavra maldita do Diabo Humano, sendo o que há de mais eficaz quando se trata de espalhar rancores, aprofundar preconceitos e dividir as pessoas.



Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.



Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=658

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