segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A loucura da cruz






Fecisti nos ad Te et inquietum est cor nostrum, donec requiescat in Te.
[Fizeste-nos para Ti, e nosso coração permanece inquieto enquanto não repousa em Ti.]
(Santo Agostinho, Confissões, Livro I)






Considero a “teologia da cruz”, como elaborada por Paulo de Tarso, um duplo exercício intelectual de subversão e poesia.



Mas também não posso deixar de dizer que o Cristianismo parece ter desprezado o sentido político da crucificação de Jesus. Para Rudolf Bultmann foi justamente Paulo o primeiro a “espiritualizar” a crucificação, tornando-a de um evento político num evento religioso. Eu discordo totalmente dessa interpretação. Prefiro pensar com Pablo Richard, para quem a despolitização do evento da crucificação de Jesus de Nazaré foi levada a cabo mais tardiamente, pelos quatro primeiros concílios ecumêmicos da Igreja Católica. Na verdade, já o Credo Apostólico parece testemunhar um claro desprezo tanto pela práxis de Jesus de Nazaré quanto pelas razões humanas da crucificação. No Credo, os únicos elementos mencionados da vida concreta de Jesus são seu nascimento e sua morte. Os três anos de sua subversiva atividade não são contemplados na produção desse documento dos primeiros séculos da Era Cristã. Portanto, Paulo de Tarso não deveria ser responsabilizado por tal esvaziamento dos significados políticos da cruz.



A Sexta-feira Santa talvez seja o melhor dia do ano para dizer que a crucificação de Jesus foi um evento político-religioso. Gosto da frase de Frei Betto, mencionada pelo meu amigo Ascânio Júnior, que diz que “Jesus não morreu atropelado por um jumento numa esquina de Jerusalém”. Nossa teologia cristã se aferrou por muito tempo à idéia de que o Império Romano interpretou de forma equivocada a práxis de Jesus. Instigados pelas perturbações religiosas da elite sacerdotal judaica, os romanos teriam se equivocado na acusação impetrada contra Jesus de Nazaré. Dessa forma, a sua crucificação permaneceria sendo um evento de dimensões meramente religiosas, ligada à “teologia do sacrifício vicário” oferecido por Deus aos seres humanos.



Richard A. Horsley e John Dominic Crossan talvez sejam dois dos melhores nomes que têm nos ajudado a compreender o significado político da crucificação de Jesus de Nazaré. Conforme eles, a acusação romana resumida na inscrição ao alto da cruz Iesu(a) Nazarenus Rex Iudaeorum foi legítima. Com isso não se está concordando com a sentença do aparelho judicial romano em sua condenação de Jesus de Nazaré. O que se está afirmando é que conforme a natureza da atividade de Jesus de Nazaré, outra acusação não seria possível. Também se está afirmando que somente hoje, a partir de nossa dicotomia moderna entre práticas estritamente políticas e práticas estritamente religiosas, é que podemos pensar que a práxis de Jesus era exclusivamente dirigida à correção das almas humanas. Ora, sua crucificação é a melhor prova de que as coisas não eram bem assim!



A crucificação, por parte dos romanos, constituía a pena capital do aparelho jurídico imperial a fim de preservar o controle, a dominação e a expropriação econômica das províncias subjugadas pela presença romana. O controle, a dominação e a expropriação das províncias subjugadas davam o suporte econômico para a Pax et Securitas Romana, que era pax et securitas somente para os próprios romanos. Profetas ambulantes movidos à base de meros sonhos religiosos, numerosos naqueles dias, nunca exigiram o gasto de um prego por parte de Roma. Pregos, madeiros, soldados e armas, eram exclusivamente utilizados contra aqueles que representavam uma ameaça concreta às campanhas imperiais de expropriação das colônias, sobretudo com a prática abusiva de impostos. Conforme Horsley, a cruz romana deveria ser dirigida exclusivamente aos “bandidos”, isto é, ela era uma forma de reprimir os insurretos que representassem uma ameaça à expropriação imperial feita em nome da pax romana.



Nesse contexto, a atividade de Jesus de Nazaré não pode ser circunscrita a uma atividade meramente religiosa. Ela se inscreve numa tradição de resistência anti-imperial presente em Israel, representada sobretudo pelos profetas. Mais do que a correção das almas humanas, a práxis de Jesus de Nazaré deve ser vista como a luta por revitalizar as formas tradicionais de vida na Palestina, que vinham sendo paulatinamente esmagadas pela opressão imperial. Tais formas tradicionais de vida deveriam ser marcadas pelo comunitarismo, pela fraternidade e por uma sociedade sem os flagelos da pobreza, da miséria e da exclusão (por exemplo, cf. Dt 15,7-11). Não estou equiparando o “movimento de Jesus” aos demais movimentos revolucionários e aos banditismos sociais contemporâneos a Jesus de Nazaré na Palestina. Mas a cruz, como repressão máxima do aparelho jurídico romano, foi o fim comum entre Jesus de Nazaré e os demais líderes de movimentos anti-imperiais de que temos notícia naqueles dias.



A “teologia da cruz” como subversão dos crucificados



Paulo de Tarso, mais do que todos nós hoje, sabia de todos esses pormenores. E ainda que ele quisesse esvaziar o conteúdo político da cruz, isso não lhe seria possível, a menos que sua atividade apostólica fosse desempenhada fora do alcance geográfico do Império Romano. Sua “teologia da cruz”, pelo contrário, se dá justamente no miolo do Império. E eu concordo com Neil Elliott quando afirma que, mais do que isso, a “teologia da cruz” em Paulo se dá em oposição deliberada ao Império. Utilizar a cruz como símbolo teológico tal como Paulo o fez seria insano, a menos que ele quisesse fazê-lo como oposição deliberada ao Império, como diz Elliott.



Num raciocínio simples, perguntemo-nos o seguinte: como o Império reagiria ao saber que alguém propalava em algumas de suas principais cidades (Corinto, Roma, Éfeso, Tessalônica etc) que um dos muitos “bandidos” e “insurretos judeus” abatidos pela crucificação agora havia ascendido à condição de Sotér kai Kýrios (Salvador e Senhor)? Não seria subversivo atribuir a um crucificado os títulos cabíveis somente ao Divino César – justamente os títulos de Senhor e Salvador (1Co 12,3)? Mais ainda subversivo do que atribuir os títulos pontifícios a um crucificado galileu, é afirmar que os “príncipes deste mundo” (archontes em grego, uma explícita alusão aos dirigentes do Império [1Co 2,6-8]) estão julgados por terem crucificado aquele insurreto.



Portanto, fazer do crucificado Sotér kai Kýrios não pode ser tomado como um esvaziamento do caráter político da cruz. Num contexto de dominação imperial, essa teologização só pode ser vista como um grande ato subversivo, de afronta deliberada às autoridades romanas, sobretudo ao Imperador. Não devemos esquecer que a política de expansão romana se dava justamente à base das prerrogativas messiânicas da pax, securitas et soteriapaz, segurança e salvação –, agora tributadas ao crucificado Jesus de Nazaré.



No plano das possibilidades e desdobramentos dessa “teologia da cruz”, temos então a potencialização e o empoderamento de todos crucificados e crucificadas do mundo. O próprio Paulo chegou a explorar esses desdobramentos, ao dizer que “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são” (1Co 1,27-28). É por isso que a palavra da cruz só pode ser “loucura” para uns e “poder de Deus” para outros (1Co 1,18).



Isso quer dizer que uma “teologia cruz”, enquanto potencialização e empoderamento dos humilhados e humilhadas da terra, é mais do que necessária entre nós que hoje vivemos entre milhares de crucificados e crucificadas [Não é Alagoas, por exemplo, um estado majoritariamente feito de crucificados e crucificadas?]. Nesse sentido, a “teologia da cruz” consiste em falar do potencial que os humilhados e humilhadas têm de retomar a força e de serem autores de sua própria história. Significa tratar-lhes de forma não infantilizada. Mas, como dizia o grande psicólogo social Ignácio Martin-Baró, significa explorar o potencial de libertação latente no coração dos próprios oprimidos. Significa ainda viver à luz da convicção de que, se a história hoje é escrita em função dos crucificadores, amanhã é possível uma reversão disso, de modo que ela seja escrita pelos crucificados.



Assim como o crucificado de ontem foi feito Senhor e Salvador, uma “teologia da cruz” consiste em que os crucificados e crucificadas de hoje também possam ser feitos “senhores” e “salvadores”, pelo menos de suas próprias histórias.



A “teologia da cruz” como poesia e reconciliação



A Adélia Prado dizia no programa Sempre um Papo que a criação poética consiste num exercício de transcendência. A pedra que Carlos Drummond de Andrade viu não é a mesma que eu vi hoje no meio do caminho. O corpo feminino que instigou Vinicius de Moraes a escrever o poema Receita de Mulher não é o mesmo corpo feminino que o anatomista vê. Os seres humanos se tornam poetas e poetisas assim que esta capacidade de ver as coisas “transcendidas” os alcança. E é assim mesmo: é essa capacidade que os alcança, e não as coisas!



Pensando assim, eu reputo a “teologia da cruz” como uma poesia de tamanho maior. Porque ver a pedra no meio do caminho e um belo corpo feminino transcendidos talvez esteja entre a média da criação poética. Mas ver um espetáculo como a crucificação, marcado pelo horror e o terror, transcendido como a forma com que “Deus reconcilia consigo todo o mundo” (2Co 5,19), ou é o Maior Delírio Psicótico da História, ou é a criação poética maximizada à toda potência. É por meio da fé que fazemos a segunda opção!



A crucificação era um espetáculo de horrores. Como Michel Foucault mostrou muito depois em Vigiar e Punir, “o corpo” era o local de manifestação das penas judiciárias. Todos os pormenores do ritual de suplício no corpo dos condenados deveriam ser minimamente regulamentados pelos códigos penais vigentes. No caso das crucificações romanas, a quantidade de chibatadas, o quebrar dos braços e pernas, a posição e a quantidade dos pregos, a caracterização pública do tipo de crime cometido (no caso de Jesus, a ridicularização da sua “realeza” por meio da coroa de espinhos), deveriam estar detalhadamente explicitados nos códigos penais. Conforme Foucault, o horror dos suplícios se prestava a duas coisas: (1) à afirmação do poder soberano sobre os corpos dos supliciados; (2) e o caráter exemplar para as testemunhas. Não é possível afirmar se Mel Gibson, na Paixão de Cristo, reproduziu com fidelidade o horror da crucificação de Jesus de Nazaré. Mas é possível arriscar a opinião de que sua dramaturgia deva estar mais próxima da crueldade das crucificações que a maioria das representações iconográficas que temos delas.



A “teologia da cruz”, tal como a temos em Paulo, transcende esse aspecto de horror ao ver na cruz a reconciliação do mundo com Deus (Cl 2,14-15).



Mas que significa estar reconciliado com Deus? Num mundo cheio de crucificados e crucificadas, como ter a paz que advém da reconciliação com Deus? Nesse mundo de crucificados e crucificadas, paz e sossego não seriam sinônimos de cinismo? Gosto da resposta que Rubem Alves deu a essas perguntas em sua tese de doutorado. Ele dizia em 1969: “Estamos reconciliados com Deus na medida em que compartilhamos da sua irreconciliação com o mundo, irreconciliação que faz com que Deus e os homens sofram. Por isso a paz com Deus significa uma ‘espada’ para o mundo: o julgamento permanente e a rejeição da inverdade daquilo que é, em favor de um novo amanhã de reconciliação e libertação”.



Sim, uma vez que Deus não está em paz com o mundo, estar reconciliado com Ele significa estar “inquieto” junto a Ele, até que “a justiça corra com um rio perene” (Am 5,24). A “teologia da cruz”, portanto, consiste nessa inquietação que nos impele a uma prática transformadora no mundo, e que tem por fundamento o movimento poético de ver a reconciliação do mundo com Deus, num lugar onde aparentemente reina um espetáculo de horrores.




Bibliografia

ALVES, Rubem. Da Esperança. Campinas: Papirus, 1987

BULTMANN, Rudolf. "O significado do Jesus histórico para a teologia de Paulo". In: Crer e compreender: Ensaios selecionados. São Leopoldo: Sinodal, 2001.

CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: A vida de um camponês judeu no mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

ELLIOTT, Neil."A mensagem antiimperial da cruz". In: HORSLEY, Richard A. (Org). Paulo e o império: Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: História da violência nas prisões. 36ª edição, Petrópolis: Vozes, 2009.

HORSLEY, Richard A. Jesus e o império: O reino de Deus e a nova desordem mundial. São Paulo: Paulus, 2004.

________ (Org.). Paulo e o império: Religião e poder na sociedade imperial romana. São Paulo: Paulus, 2004.

MARTIN-BARÓ, Ignácio. "Para uma Psicologia da Libertação". In: GUZZO, Raquel & LACERDA JR., Fernando. Psicologia Social: O resgate da Psicologia da Libertação. São Paulo: Alínea, 2009.

RICHARD, Pablo. El Jesús histórico y los cuatro evangelios: Memoria, credo y canon para una reforma de la Iglesia. http://www.servicioskoinonia.org/relat/343.htm


Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.



Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=123

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