segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A fé na ressurreição de Jesus Cristo e suas implicações para a espiritualidade cristã







O aspecto libertador da Sexta-feira Santa e da Páscoa consiste em que os pensamentos são arrebatados para muito além do destino pessoal e dirigidos para o sentido último de toda vida, de todo sofrimento e de todo e qualquer acontecimento e que se sente uma grande esperança.
(Dietrich Bonhoeffer,
Resistência e submissão)



Somente onde há sepulturas há ressurreições.
(Friedrich Nietzsche, Assim falava Zaratustra)




Abrindo a conversa...



Tudo na espiritualidade cristã deve decorrer da fé na ressurreição de Jesus Cristo. À ressurreição de Jesus Cristo estão ligadas:



• A vinda do Espírito Santo (Jo 16,7);
• A habitação do Espírito de Deus no seu povo (Jo 14,23; 1Co 3,16);
• A vivência de uma espiritualidade comunitária e ecumênica (Jo 17,21-23);
• A vivência de uma espiritualidade ecológica (Sl 104; Rm 8,22-23);
• A vivência de uma espiritualidade não patriarcal (At 2,17-18);
• A vivência de uma espiritualidade que tem como pano-de-fundo a liberdade, e não a Lei (2Co 3,17; Gl 5,3/13);
• A vivência de uma espiritualidade inclusiva, sobretudo para os “impuros” contemporâneos (Lc 4,18-19);
• A hermenêutica das Escrituras Sagradas (Lc 24,25-27);
• A organização das comunidades cristãs fundadas nos diferentes dons e carismas ofertados aos seus membros (1Co 12-14);
• A dinâmica e a vitalidade das comunidades fé reunidas em torno da memória de Jesus Cristo e do poder do Espírito Santo (Jo 16,12-13; At 1,8);
• A tarefa de evangelização e humanização dos seres humanos por parte das comunidades denominadas “igrejas”, orientadas pela agenda do Reino de Deus (Mt 6,10);
• A consciência do estado de “alienação” no qual se encontram os indivíduos e as sociedades humanas, estado que em linguagem bíblica chamamos de “pecado” e “injustiça” (Jo 16,8-11);
• A esperança escatológica da
parousia (At 1,9-11);
• A esperança escatológica da vitória sobre a morte (1Co 15,55);
• A esperança escatológica da ressurreição universal dos mortos (1Co 15);
• A esperança escatológica da criação de novos céus e da nova terra (Ap 21-22).



Conforme o Segundo Testamento, tudo isto está organicamente atrelado à fé na ressurreição de Jesus Cristo.



1. Uma hipótese teológica provocadora



Eu nunca me senti muito interessado em discutir a historicidade da ressurreição. Para mim, ela é um objeto de fé que traz mais esperança que inquietação. Como os demais elementos da fé cristã (e de todo tipo de fé), ela é um a priori, indemonstrável. Caso não fosse, não seria objeto de fé. Isso não quer dizer que a ressurreição não seja discutível. Mas qualquer discussão a seu respeito deve levar em consideração que se trata de algo indemonstrável, isto é, ela não pode ser afirmada a partir de dados empíricos, mas também não pode ser negada desta forma. Por isso é indemonstrável. Aliás, haveria algo demonstrável em Teologia?



Outra questão que também nunca me interessou muito é aquela que especula acerca do que seria a fé cristã caso não houvesse a ressurreição. A fé cristã teria triunfado historicamente sem ela? E hoje, como seria um Cristianismo sem a fé na ressurreição?



Presumo que a primeira questão encontre consenso numa resposta afirmativa. Sim! Assim como outros movimentos religiosos milenares possuem uma caminhada histórica consistente sem uma fé na ressurreição de seus patriarcas fundadores, o mesmo poderia acontecer com o Cristianismo. Mas presumo que a segunda questão — aquela sobre um Cristianismo sem a fé na ressurreição — não seja respondida tão consensualmente. E, embora um Cristianismo assim fosse possível em termos de factibilidade histórica, sem a fé na ressurreição certamente ele seria muito diferente daquilo que temos hoje. Mas não posso negar que estas questões me forçam a pensar numa terceira: os Cristianismos que temos hoje correspondem àquele que deveria decorrer da fé na ressurreição em Jesus Cristo?



Nesse artigo, eu não desejo especular acerca de como seria esse Cristianismo sem a fé na ressurreição. Como disse, isso nunca me interessou. Interessa-me, todavia, pensar em como a fé na ressurreição pode se constituir num critério teológico para avaliar a caminhada histórica de nossas comunidades cristãs hoje. Dessa forma, eu arriscaria a seguinte hipótese teológica:



Embora a fé na ressurreição continue sendo um dos elementos dogmáticos presentes na ideologia religiosa das igrejas cristãs, a maioria destas nos dá a impressão de que vivem sem a fé na ressurreição de Jesus Cristo.



Penso que aqui também valha a exortação: “pelos seus frutos os conhecereis” (Mt 7,15-23).



Conforme minha hipótese, não é preciso especular sobre como seria um Cristianismo sem a fé na ressurreição em Jesus Cristo. Ao que tudo indica, podemos visualizá-lo aqui e acolá, como manifestações concretas nesse caleidoscópio que constitui o Cristianismo de nossos dias. Também não estou certo se teria sido diferente em algum momento da história.



2. A fé na ressurreição e a espiritualidade cristã



Toda a espiritualidade cristã deve decorrer da fé na ressurreição de Jesus Cristo. Embora o Espírito de Deus (Ruah Iahweh) seja uma realidade dinâmica amplamente presente na teologia do Primeiro Testamento, sua plenitude e a radicalidade de sua dinâmica estão atreladas à ressurreição de Jesus Cristo (Jo 16,1-24). A ela estão ligadas a habitação do Espírito de Deus no seu povo e tudo o que disso decorre. Conforme o Segundo Testamento, decorrem desta habitação do Espírito de Deus no seu povo:



• Uma espiritualidade comunitária (1Co 12,6-7);
• Uma espiritualidade ecumênica (Jo 17,23);
• Uma espiritualidade ecológica (Rm 8,22-23);
• Uma espiritualidade não patriarcal (At 2,17-18);
• E uma espiritualidade que tem por fundamento a liberdade no lugar da Lei (2Co 3,17).



Também os pormenores da missão das comunidades cristãs decorrem da fé na ressurreição de Jesus Cristo. Se a ela está atrelada, como veremos abaixo, a nova consciência da situação de “alienação” na qual se encontram os indivíduos e as sociedades humanas (Jo 16,7-11), decorre daí que a missão das igrejas está atrelada à fé na ressurreição de Jesus Cristo. A fé na ressurreição faz com que a agenda da missão seja determinada pelas demandas do mundo onde grassam o pecado e a injustiça. A fé na ressurreição também faz com que o “Reino de Deus” seja o critério de ação das comunidades cristãs (Mt 6,10). Seria ótimo se nossas igrejas submetessem sempre suas agendas denominacionais às demandas do mundo e do Reino de Deus. Como afirmava o pastor Luis Longuini Neto, a fé na ressurreição em Jesus Cristo nos faz perceber que “a missão é da igreja, mas a agenda é do mundo”.



3. A fé na ressurreição e a eclesiologia



A fé na ressurreição em Jesus Cristo também tem profundas implicações na forma com que nossas comunidades cristãs atuam no mundo, e como elas se organizam. Primeiro, porque essa fé empurra essas comunidades na direção dos pobres e excluídos de toda sorte (Lc 4,18-19). Depois, porque a fé na ressurreição de Jesus Cristo instaura uma concepção do ser humano que se opõe a toda diferenciação baseada em méritos. Conforme esta fé, por exemplo, homens e mulheres, em pé de igualdade, são convocados a serem partícipes na condução da dinâmica eclesial (At 2,17-18). Portanto, uma eclesiologia que exclui as mulheres da liderança e do pastorado está em profundo desacordo com a fé na ressurreição em Jesus Cristo.



Conforme esta fé, também a estruturação dessas comunidades se dá de maneira profundamente nova e inusitada. A estruturação comunitária fundada na fé na ressurreição de Jesus Cristo não se dá a partir de relações de poder verticalmente estabelecidas, seja por mérito intelectual, de gênero, ou por qualquer outro critério meritocrático. Essa estruturação se dá a partir dos dons e dos carismas concedidos pelo Espírito Santo aos homens e mulheres aí implicados (1Co 12,4-31). O Espírito de Deus, em sua criatividade, infunde uma diversidade de dons e carismas a fim de que a comunidade seja dinâmica, criativa, promotora da diversidade, do equilíbrio, do amor e da humanização do mundo.



4. A fé na ressurreição como contraponto à alienação humana



A fé na ressurreição de Jesus Cristo também está atrelada à forma cristã de leitura da realidade humana. É a partir dela que podemos dizer que a presente situação humana, incluindo as relações com a própria criação, se encontra na condição de alienação. É o próprio Espírito de Deus, proveniente da ressurreição de Jesus Cristo, que convence a comunidade humana de tal situação (Jo 16,7-11). Estamos usando aqui a expressão “alienação” como sinônimo de “pecado” e de “injustiça”, instigados pela forma com que Paul Tillich trabalha com aquele termo em sua Teologia Sistemática.



Tudo isso corresponde a dizer que a ressurreição de Jesus Cristo e a infusão do Espírito de Deus sobre toda carne nos ajudam a convencermo-nos de que a presente situação humana carece de seu “ideal poder de ser”. Paulo Freire, do ponto de vista da pedagogia, dizia que os seres humanos possuem uma vocação ontológica para “ser mais”. Eu diria que Freire aí está fazendo teologia em profundo acordo com a fé na ressurreição de Jesus Cristo. A partir dessa fé, somos provocados a pensar que os seres podem “ser mais humanos, compassivos, justos, fraternos, solidários etc.”. Estar alienado e em pecado corresponde justamente a “ser menos humano”. É o Espírito de Deus infundido pela ressurreição de Jesus Cristo que nos convence do nosso “ser menos”, e é ele mesmo que nos auxilia no caminho para “ser mais”.



5. A fé na ressurreição e as demandas mais profundas do ser humano



No domingo de Páscoa em 25 de abril de 1943, no interior de uma cela da prisão em Tegel (Alemanha), Bonhoeffer escreveu as seguintes palavras numa carta para seus pais, Karl e Paula Bonhoeffer: “O aspecto libertador da Sexta-feira Santa e da Páscoa consiste em que os pensamentos são arrebatados para muito além do destino pessoal e dirigidos para o sentido último de toda vida, de todo sofrimento e de todo e qualquer acontecimento e que se sente uma grande esperança”.



Essas palavras de Bonhoeffer confirmam o fato de que a fé na ressurreição também responde às mais profundas demandas do espírito humano. Primeiro ele, e depois também P. Tillich, chamaram a essas demandas de “preocupações últimas” (ultimate concerning). Elas caminham juntas com as “preocupações preliminares” (Bonhoeffer), ou “penúltimas” (Tillich). As preocupações preliminares ou penúltimas para os seres humanos são aquelas do cotidiano: a economia, o lazer, o trabalho, a política, e tudo o que deriva delas. Elas são preliminares e penúltimas porque não decidem o destino e nem dão o “sentido total” da existência da maioria das pessoas. Embora sejam questões de suma importância para a vida, elas não respondem às chamadas “questões existenciais” dos seres humanos, das quais a mais importante é: qual o sentido da existência?



[Embora eu goste dessa separação entre preocupações últimas e penúltimas, tenho a convicção de que, para uma parcela majoritária dos seres humanos, aquilo que consideramos como penúltimo (comida, trabalho, lazer etc.), seja encarado como de valor último. Sem dúvida, para mais dos dois terços da humanidade mergulhados na carência cotidiana dos meios básicos à sobrevivência, um prato de comida é, sem dúvida, uma “preocupação última”.]



Há um famoso aforismo existencialista de Martin Heidegger onde se diz que “o ser humano [Dasein] é um ser para a morte”. De um ponto de vista da lógica, de fato, não haveria uma dedução mais óbvia a se extrair da observação do devir da história e do cotidiano. Mas a fé na ressurreição de Jesus Cristo é o contraponto a essa visão realista e fatalista das coisas. Com ela podemos dizer: “O ser humano é um ser para a vida”. Em minha opinião, essa fé é o mais belo paradoxo aceito entre os seres humanos. Isso por duas razões: (1) ela não arranca dos fatos da existência, que, como diz Heidegger, aponta para o encontro inevitável da morte; (2) mas ao mesmo tempo ela inscreve seu fundamento na própria existência humana, ao afirmar metaforicamente que “o que é corruptível é semente do incorruptível” (1Co 15,42-49).



6. A fé na ressurreição e as primícias da Nova Humanidade



É a fé na ressurreição de Jesus Cristo que nos permite apostar no triunfo final da vida sobre a morte, da justiça sobre a injustiça, da alegria sobre a dor e o sofrimento (Ap 21,4). No entanto, mais do que nos permitir fazer essa aposta e relaxar de braços cruzados, ela nos põe já em marcha, enquanto comunidades cristãs, como as primícias da Nova Humanidade (2Co 5,14-17). A fé na ressurreição de Jesus Cristo nos transforma em sinal escatológico para o mundo. Ela nos transforma nos primeiros brotos daquilo que se fará na plenitude da História. Portanto, a fé na ressurreição não é uma mera adesão a uma crença, mas é a força dinâmica que nos transforma no adiantamento da glória de Deus sobre a face da terra (Hc 2,14).



Fechando com mais provocação...



Em 2002, ano da conclusão da minha graduação em Teologia, eu mal podia suspeitar que enveredaria pelos caminhos da Psicologia, quando me pus a trabalhar com Freud na pesquisa monográfica. Em O Futuro de uma Ilusão, entre muitas outras coisas, Freud tenta refutar o clássico aforismo de Tertuliano: Credo quia absurdum [Creio porque é absurdo]. Freud pergunta ali: “Se a fé se assenta no caráter absurdo de uma afirmação, somos obrigados a crer em todos os absurdos?” Um grave Não! seria nossa resposta ao pai da psicanálise!



A natureza da fé não se assenta no caráter absurdo de suas afirmações. Antes, se assenta na possibilidade de abertura que os seres humanos possuem de não se prenderem aos determinismos do real. A fé — sobretudo a fé na ressurreição de Jesus Cristo — é a confirmação do caráter rebelde do espírito humano perante os dados mudos e frios da realidade. Rubem Alves conclui o seu O que é Religião? dizendo que “é mais belo o risco [da fé] ao lado da esperança, que a certeza [da ciência] ao lado de um universo frio e sem sentido”. Portanto, mais do que a adesão a uma proposição absurda, a fé na ressurreição de Jesus Cristo (e tudo o que a ela está relacionado) é a mais bela de todas as apostas e o mais arriscado dos riscos (com o perdão da redundância) que o espírito humano pode se permitir em sua revolta frente aos determinismos da realidade.



 Mas, e as nossas comunidades cristãs concretas, tais como são hoje, refletem as consequências bíblicas que decorrem da fé na ressurreição de Jesus Cristo? Se elas vivessem à luz dessa fé, seriam assim como aparecem aos nossos olhos hoje?

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Bibliografia
ALVES, Rubem.
O que é religião? 10ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1986.
BONHOEFFER, Dietrich.
Resistência e submissão: Cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003.
FREIRE, Paulo.
Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
FREUD, Sigmund.
O futuro de uma ilusão. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1969, vol. XXIII.
LONGUINI NETO, Luis. “A missão é da igreja e a agenda é do mundo: teologia da missão em Martin Luther King Jr. e Richard Shaull”. In: ALIANÇA DE BATISTAS DO BRASIL (Org.).
Religião, utopia e sociedade: Diálogos com Martin Luther King Jr. e Richard Shaull. Salvador: Livro.com, 2009.
HEIDEGGER, Martin.
Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2006.
TILLICH, Paul.
Teologia Sistemática. São Leopoldo: Sinodal, 2003.




Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.



Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=126

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