Naquela época, os estrangeiros significavam algo detestável no pensamento dominante em Israel. Apesar de as tradições ancestrais mostrarem a necessidade de oferecer proteção aos estrangeiros, o judaísmo hegemônico no pós-exílio os considerava impuros, bem como uma ameaça por serem desconhecedores da lei e perturbadores da tranquilidade de Israel. Reprovava seus costumes, suas tradições e seus ritos. Em Mateus 15.21-28, Jesus rompe fronteiras e se aproxima do território de Tiro. A situação era muito tensa, pois Jesus se encontra junto a terras estranhas e, ali, o seu primeiro encontro é com uma cananeia, considerada duplamente impura por ser mulher e por ser estrangeira.
O texto põe em evidência duas posições discordantes nas comunidades cristãs daqueles anos. Uma delas provém do mundo judeu e olha para as mulheres e os estrangeiros com atitude suspeita. A outra conduta é de quem procedia do mundo greco-romano e que tem uma visão mais aberta, com influência de mulheres e de estrangeiros, sendo-lhes mais favorável.
É interessante que, na narrativa, Jesus aparece como homem judeu, representante do discurso e da mentalidade dominante de seu povo, dirigindo-se à terra da mulher siro-fenícia, terra de impuros para o pensamento preponderante no judaísmo. Segundo Marcos 7.24, Jesus quer ocultar-se, manter-se fora do alcance das pessoas daquele lugar, talvez para manter sua pureza ritual. Mas ele não consegue permanecer oculto, pois logo vem ao seu encontro uma mulher estrangeira, duplamente condenada pela mentalidade que ele representa.
A primeira atitude de Jesus é a conduta e a mentalidade excludente de judeus que não atendem e não se sensibilizam diante da necessidade de uma mãe com sua filha doente. O interesse de manter a pureza ritual impedia que ele se sensibilizasse e se solidarizasse com a mulher cananeia. Jesus silencia, não diz uma palavra sequer à mulher, apesar dos seus gritos de aflição. Diante de seu silêncio, os discípulos propõem uma saída ainda mais drástica, sugerindo a expulsão dela. Por fim, as palavras de Jesus representam o mesmo discurso que seguramente brotava da boca do setor judeu daquela comunidade: “Não fui enviado a não ser para as ovelhas perdidas de Israel. Não é conveniente tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorros.” (vv. 24.26). Para muitos judeus, estrangeiros/as não eram outra coisa que “cães” ou “porcos” (cf. Mateus 7.6), provocadores de grandes calamidades para os filhos de Israel.
Chama a atenção a resposta da mulher siro-fenícia. Ela podia responder com diversas argumentações ou ficar simplesmente calada como sinal de reprovação diante da discriminação que sofre. Contudo, ela utiliza os mesmos termos de Jesus para fazê-lo repensar sua posição discriminatória: “É verdade, Senhor, mas também os cachorros comem das migalhas que caem da mesa de seus donos!” (v. 27). Pela boca da siro-fenícia falam as mulheres e os representantes gentios marginalizados naquelas comunidades cristãs. A ação da mulher é um símbolo do esforço dos cristãos de origem gentílica para expulsar o “demônio da exclusão” ainda reinante naquela ocasião. Através do personagem da mulher estrangeira, os gentios reclamam aceitação na nova comunidade de fé.
E a mudança de Jesus, ao passar a escutar os gritos de aflição da mulher estrangeira, tal como o Deus do êxodo (Êxodo 3.7, 8), representa a nova atitude que as comunidades são chamadas a assumir. Quando Jesus se deixa interpelar pela excluída siro-fenícia e se abre para o diálogo com ela, sensibiliza-se com sua realidade e reconhece que o “pão” é direito de todos os filhos e filhas para além de Israel. Paradoxalmente, a enfermidade da filha da mulher estrangeira, considerada um mal e uma impureza na mentalidade predominante do judaísmo, torna-se um fator que humaniza e rompe com os opostos. Torna-se um símbolo de recuperação e de cura comunitária.
Esse relato do Evangelho representava um convite à comunidade cristã para assumir uma atitude nova de reciprocidade e receptividade para além do povo judeu. A luta por uma experiência social e religiosa de integração e respeito parece ser um dos objetivos desse texto. Da mesma forma, o Evangelho nos convida hoje a uma atitude nova de diálogo, de abertura e de fraternidade humana.
Imagem: Germain-Jean Drouais, Cristo e a Mulher Cananeia, Louvre, Paris, 1784.
Por Odja Barros é pastora batista, professora de Novo Testamento e assessora do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI). É formada em Educação Religiosa pelo Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil e em Pedagogia pela UFAL. Tem especialização em assessoria bíblica e está cursando o mestrado em Teologia pela Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo. Atualmente é vice-presidente da Fraternidade Teológica Latino-americana - Brasil e editora da Revista Flor de Manacá.
Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=667
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