At 13.48[1]
John William McGarvey
A próxima afirmação de nosso historiador tem sido objeto de não pouca controvérsia. (48) “E os gentios, ouvindo isto, alegraram-se, e glorificavam a palavra do Senhor; e creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna.” A controvérsia gira em torno do significado da palavra traduzida “estavam ordenados” (ησαν τεταγμενοι). Escritores calvinistas são unânimes em relacioná-la à eleição eterna e à preordenação ensinada em seus credos. Se esta fosse a correta interpretação, ela implicaria algumas dificuldades que eles parecem não ter percebido. Se “todos quantos estavam ordenados para a vida eterna” creram nesse dia, então todos os demais eram reprovados, e por estarem condenados à punição eterna, outra pregação de Paulo a eles seria inútil. Agora, é difícil explicar que tão completa separação em duas classes aconteceu por toda uma ampla comunidade em um único dia, e ainda mais difícil explicar que isto foi revelado a Lucas a fim de que ele pudesse registrá-la. Nossa surpresa é ainda maior quando lembramos que, segundo essa teoria, nem mesmo os próprios eleitos podem ter certeza de sua eleição. Certamente não devemos adotar uma conclusão tão anômala, a menos que sejamos obrigados a fazê-lo pela força óbvia das palavras empregadas. O Dr. Hackett, após traduzir a passagem, “creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna”, diz: “Esta é a única tradução que a filologia da passagem permite.” Grimm, em seu léxico, expressa a ideia calvinista mais plenamente dando como significado, “tantos quantos foram apontados (por Deus) para a vida eterna, ou a quem Deus tinha decretado a vida eterna.”
A palavra assim traduzida é da raiz τάσσω, sendo o seu sentido primário colocar em ordem, ou, como Grimm expressa, colocar em uma certa ordem. Em combinação com δια ela é assim traduzida em 1Co 11.34: “Quanto às demais coisas, ordená-las-ei quando for.” Em somente um outra de suas oito ocorrências no Novo Testamento ela é traduzida ordenado, e nesta ela pode também ter sido traduzida pelo seu significado primário: “As potestades que há foram ordenadas [colocadas em ordem] por Deus” (Rm 13.1). É usualmente traduzida designar, como designar um lugar (Mt 28.16), designar algo a ser feito (At 22.10), designar um dia (28.23). Mas ao se fazer designações, a ordem é produzida da confusão ou falta de ordem precedente, e o significado primário da palavra não é perdido de vista neste seu uso. O mesmo é verdadeiro quando ela é aplicada a um ato mental. Quando a mente está confusa sobre um assunto, não sabendo o que pensar, e finalmente chega a uma conclusão ou propósito definido, os pensamentos são levados da confusão para a ordem, e este termo adequadamente expressa a mudança. Um exemplo notável é encontrado em 15.2, onde é dito dos irmãos em Antioquia que eles ouviram “não pequena discussão e contenda” entre Paulo e Barnabé de um lado e certos homens da Judeia de outro, com referência a uma questão vital. Enquanto esta divergência estava acontecendo, as pessoas comuns entre os irmãos e irmãs devem ter ficado na maior confusão, mas eles finalmente chegaram a uma conclusão quanto ao que devia ser feito, e esta mudança é expressa pela palavra em questão, “resolveu-se (τάσσω) que Paulo e Barnabé, e alguns dentre eles, subissem a Jerusalém, aos apóstolos e aos anciãos, sobre aquela questão.” Assim verte a Versão Autorizada, e ela corretamente descreve a mudança mental que aconteceu. O Dr. Hackett afirma que o termo “não era utilizado para designar um ato da mente,” mas a tradução a qual esta ideia o forçou é uma evidência conclusiva ao contrário. Ele verte a frase em questão, “eles designaram que eles subissem,” etc., e nisto ele é seguido pelos autores da Versão Revisada. Isto não é um bom inglês. É um uso antigramatical da palavra designar. Quando uma missão é determinada, nós designamos os indivíduos que serão enviados, mas não designamos que eles devam ir. Evidentemente a questão era a seguinte: os irmãos estavam inicialmente incertos quanto ao que fazer, e eles finalmente decidiram fazer o que fizeram. Nossa palavra inglesa disposto tem um uso similar. Ela significa arranjar em uma certa ordem, e se aplica primariamente a objetos externos, mas quando a mente de alguém está de acordo com uma certa norma, dizemos que ele está disposto a segui-la.
Mal precisamos observar, após estas observações, que o significado específico deste verbo em uma determinada passagem deve ser decidido pelo contexto. Na passagem diante de nós o contexto não apresenta nenhuma alusão a algo feito por Deus para uma parte da audiência, e não feito para a outra, ou a algum propósito firmado a respeito de uma e não de outra, mas fala de dois estados de mente contrastados entre o povo, e dois consequentes cursos de conduta. Dos judeus presentes é dito, em primeiro lugar, que eles estavam cheios de inveja; em segundo lugar, que eles estavam contradizendo o que Paulo falava, e blasfemavam; em terceiro lugar, que eles julgaram a si mesmos indignos da vida eterna. Em contraste com estes, os gentios, em primeiro lugar, estavam alegres; em segundo lugar, eles glorificavam a palavra de Deus; em terceiro lugar, eles estavam τεταγμενοι para a vida eterna. Agora, qual dos significados específicos da palavra grega iremos aqui inserir? Ela se encontra contrastada com o ato mental dos judeus ao julgarem-se indignos da vida eterna, e a lei da antítese exige que a entendemos de algum ato mental de natureza oposta. A versão, estavam determinados, ou estavam dispostos para a vida eterna, é a única admitida pelo caso. O verbo está na voz passiva e no tempo passado, e, portanto, descreve um estado mental produzido antes do momento do qual o escritor está falando. Em outras palavras, a afirmação que “creram todos quantos estavam ordenados para a vida eterna” implica que eles foram levados a esta determinação antes que creram. Em algum momento anterior em sua história, estes gentios, que nasceram e foram educados no paganismo, ficaram sabendo da vida eterna como ela era ensinada pelos judeus. Sob o ensino dos judeus ou sob o ensino de Paulo desde sua chegada em Antioquia, ou sob ambos, eles foram levados de um estado de confusão mental sobre este assunto transcendentalmente importante a uma determinação para obter a vida eterna se possível.[2]
Observe que o estar determinado para a vida eterna, e o crer, encontram-se aqui como causa e efeito, ou pelo menos como antecedente e consequente. Isto não é anormal ou incomum. Um homem que aprendeu que a vida eterna deve ser obtida, e decidiu-se obtê-la se ela estiver dentro de sua capacidade, é o mesmo homem a prontamente aceitar o verdadeiro modo de obtê-la quando esse modo é claramente mostrado a ele, enquanto o homem que está demasiado absorto em questões terrenas de modo a estar indiferente à vida eterna é o mesmo homem a deixar o testemunho a respeito do modo de obtê-la entrar por um ouvido e sair pelo outro. Notamos o mesmo em todas as nossas congregações nos dias atuais. Dois homens sentam lado a lado sob o som do mesmo sermão evangélico; um está desperto para a importância da vida futura, enquanto o outro está absorto na vida presente. O último irá fazer-se de surdo para a pregação, incorrendo na reprovação de Paulo de julgar-se indigno da vida eterna, enquanto o primeiro crerá na boa mensagem, e se lançará ao trono de misericórdia. É precisamente esta diferença em relação à vida eterna que Lucas aqui indica, e ele a indica porque ela explica o fato que uma classe na audiência de Paulo creu, e a outra não. Ela deixa a responsabilidade para a crença e incredulidade, com suas eternas consequências, sobre o homem, e não sobre Deus.
Fonte: New Commentary on Acts of Apostles, Vol. 2, pp. 29-33
Tradução: Cloves Rocha dos Santos
[1] Nota do tradutor: J. W. McGarvey, em sua Introdução a este comentário, nota que escreveu a obra com o leitor em mente. Ele a projetou para ser lida mais como uma narrativa do que simplesmente como um livro de referência e encoraja os leitores a usá-la assim. Escrito no final do século 19, O Comentário sobre os Atos dos Apóstolos é um olhar versículo por versículo em Atos, que McGarvey acreditava que muitos teólogos não o havia compreendido antes. Ele cita um verbete de enciclopédia que ele acredita que melhor representa o livro: “O objetivo de Lucas, ao escrever Atos, era suprir, através de exemplos selecionados e adequados, uma ilustração do poder e da obra daquela religião que Jesus tinha morrido para estabelecer.” McGarvey foi professor boa parte de sua vida, assim seu comentário é preciso e fácil de entender. O livro de Atos, de fato, é um testemunho poderoso para a vida de Jesus e os crentes serão iluminados através das notas de McGarvey, únicas e intuitivas, sobre o texto.
[2] “Melhor, ‘tantos quantos estavam dispostos para.’” (Plumptre). “Todos que, pela graça de Deus, desejavam agruparem-se nas fileiras daqueles que desejavam a vida eterna aceitaram a fé.” (Farrar, Life of Paul, 211). “Preferivelmente, estavam colocados em ordem para, isto é, dispostos para a vida eterna.” (Jacobson em Speaker’s Com.). “Tantos quantos estavam dispostos para a vida eterna. O significado da palavra disposto deve ser determinado pelo contexto. Os judeus se julgaram indignos da vida eterna; os gentios, tantos quantos estavam dispostos para a vida eterna, creram.” (Alford).
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