Ninguém gosta de ficar doente, não é? Dia desses tive dengue. A gente fica indisposto, o apetite fica embotado, além de termos que nos afastar momentaneamente das coisas que gostamos e precisamos fazer: trabalho, lazer, escola, etc. Mas também é verdade que enfrentar momentos de enfermidade no aconchego do ambiente familiar e com amigos em volta torna tudo menos pesado. Enfrentar esses momentos rodeados de carinho torna mais leve o enfrentamento da doença.
Mas a mulher do nosso texto em foco, por conta do contexto social e cultural de seus dias, não pôde contar com nenhum desses atenuadores. No entanto, mesmo vivendo num contexto diferente do nosso, o texto nos dá pistas para pensar em como aquela mulher se parece com tantas mulheres que ainda hoje lutam por saúde e dignidade.
Padecendo de uma hemorragia durante doze anos, ela havia gasto todos os seus recursos na procura por saúde. É pouco provável que “todos os recursos” seja sinônimo de muitos bens. Tudo indica mesmo que ela era, junto com a maior parte de seus contemporâneos, alguém pobre e de recursos escassos. O texto sequer menciona seu nome, ao contrário das mulheres que patrocinavam o ministério de Jesus com seus bens, mencionadas nominalmente em Lucas 8,1-3. Esse apoio contínuo indica que estas certamente pertenciam a classes mais favorecidas economicamente. Quanto à mulher hemorrágica, parece tratar-se de uma mulher simples do povo, que viu na fé um recurso derradeiro para sua situação.
Se o simples fato de ser mulher já não bastasse como um peso e uma limitação na vida social, sua condição de mulher enferma piorava tudo. As leis religiosas vigentes ajudavam a aumentar o seu sofrimento. Afinal, não bastasse o flagelo no corpo, as leis de purificação e de isolamento social dirigidas às mulheres durante o fluxo menstrual lhes confinavam num espécie de apartheid religioso. Portanto, certamente nossa personagem vinha padecendo também por doze anos o estigma do isolamento social. Doze anos sem ir à feira. Sem desfrutar a comunhão nos ambientes religiosos. Sem as conversas de fim de tarde com as vizinhas. Sem o abraço dos familiares. Doze anos sem todas aquelas bênçãos que advém do convívio social e nos ajudam na construção de nossa felicidade.
A observação do cotidiano nos dá a impressão de que realmente as mulheres cuidam mais da saúde que os homens. Atualmente, temos no Brasil até políticas públicas voltadas para o fortalecimento da saúde masculina. Numa sociedade organizada para segregar as mulheres da plenitude das bênçãos da sociabilidade, parece que estas encontram no corpo um lugar de sua afirmação como seres humanos. Cuidam da saúde não somente porque ficar doente é ruim. Cuidam da saúde porque o corpo é um lugar de afirmação e celebração da vida! Como nossas mulheres de hoje, a mulher de nosso texto parece saber disso muito bem. Ter saúde numa sociedade organizada para os homens era o mínimo que ela poderia fazer como meio de afirmação da vida.
“Se eu apenas tocar suas vestes...”. Essa pequena intuição nos indica que não foram apenas seus recursos materiais que haviam se esgotado. Parece-nos que também seus recursos religiosos haviam acabado. Tocar as vestes de um líder religioso, como atitude terapêutica, não fazia parte de nenhum código sagrado. Nem mesmo constava na Lei de Moisés! Aquilo havia sido inventado pela esperança! Se os recursos materiais e religiosos haviam se esgotado, a esperança ainda não.
Nosso povo é assim. Sua fé e sua esperança são sempre maiores que os recursos oficiais para o enfrentamento das crises. A fé e a esperança do povo são sempre arredias, transgressoras, criativas, sobretudo nas situações de encruzilhada. Do ponto de vista da religião organizada, aquela pobre coitada ostentava a vil heresia de que tocar nas vestes de um camponês pudesse fazer aquilo que sacerdotes e médicos não puderam fazer por doze anos.
E o texto nos deixa com a impressão de que médicos e sacerdotes precisam ainda hoje desenvolver a capacidade de se voltar para o ser humano em sua singularidade, em sua pessoalidade, com sua história de vida peculiar. Talvez o problema de nossa mulher em foco tenha sido somente esse: não ter encontrado naqueles doze anos alguém com a sensibilidade de, em meio à multidão, dizer-lhe: “alguém me tocou!”. Isso porque existem momentos em que somos “Povo de Deus”, “Nação Brasileira”, “Classe Social”, etc. Mas há situações na vida em que somos “José dos Santos”, “Maria da Silva”, “Paulo Nascimento”. Como dizia Ortega y Gasset, há momentos em que somos apenas “nós e nossas circunstâncias”.
E o texto nos deixa com a impressão de que médicos e sacerdotes precisam ainda hoje desenvolver a capacidade de se voltar para o ser humano em sua singularidade, em sua pessoalidade, com sua história de vida peculiar. Talvez o problema de nossa mulher em foco tenha sido somente esse: não ter encontrado naqueles doze anos alguém com a sensibilidade de, em meio à multidão, dizer-lhe: “alguém me tocou!”. Isso porque existem momentos em que somos “Povo de Deus”, “Nação Brasileira”, “Classe Social”, etc. Mas há situações na vida em que somos “José dos Santos”, “Maria da Silva”, “Paulo Nascimento”. Como dizia Ortega y Gasset, há momentos em que somos apenas “nós e nossas circunstâncias”.
Médicos e sacerdotes não estão sempre tentados a negligenciar histórias de seres humanos singulares em função das multidões? Mais do que a bênção da cura física, Jesus demonstra a bênção de ser sensível ao ser humano em sua dor que é intransferível.
“Tem bom ânimo, pois tua fé te salvou!” Tua fé na vida te salvou! Tua fé e tua teimosia em ser feliz te salvaram! Tua força criativa e tua obstinação te salvaram! Volta a gozar a saúde em teu corpo! Volta a fazer as coisas que gostas! Goza a bênção do convívio com os outros! Volta a frequentar os espaços dos quais a religião te arrancou! Goza a bênção da vida, do corpo, da dança, do abraço, dos encontros, dos olhares sem condenação, da vida em abundância! Tua fé te salvou de toda condenação: daquelas impostas pelos limites estabelecidos pela doença e daquelas impostas pelos limites de uma sociedade machista e desumana!
Nós, teólogos e teólogas, temos nossas explicações e definições para a fé. Quase sempre nosso jeito sofisticado de pensar define a fé como concordância com as definições dogmáticas, sistemáticas, doutrinárias e confessionais. No máximo, fé é a concordância cega com o conteúdo literal das escrituras e sua interpretação oficial. O povo quase não reclama disso. O povo diz muito amém, e consome, às vezes com entusiasmo, o capital simbólico que as oficialidades produzem. Mas, por vezes, a vida reclama por um pouco mais. Aí o povo se torna protagonista. Homens e mulheres, em situações de encruzilhada, vêem-se com a oportunidade de serem criativos. A vida lhes exige que assim o seja. Ser criativo, nessas circunstâncias, é explorar o potencial de vida que resiste como chama de vela dentro de nós.
Eu chamo isso de fé. Fé é uma chama de vela que quer ser fogueira. É a potência humana que incendeia o corpo e a alma. Que resiste contra as imposições e limitações da vida, seja em sua dimensão natural, seja em sua dimensão cultural. É por isso que a fé é salvífica! Porque somente por meio dela os seres humanos podem escapar da perdição de “serem menos”, quando foram criados por Deus para “serem mais”!
Imagem: Paolo Veronese - 1565-70 [Museu de História da Arte de Viena]Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.
Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=202
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