VV. AA. Homossexualidade: perspectivas cristãs. Tradução de Jaci Maraschin, São Paulo: Fonte Editorial, 2008.
Homossexualidade: perspectivas cristãs é sem dúvida uma publicação corajosa e desafiadora. Seu aparecimento poderia ser considerado à luz dos novíssimos debates sobre a homossexualidade e suas reivindicações civis, quando os evangélicos brasileiros mostram que seu dissenso chega até esses campos, onde aparentemente habitava algum consenso. Entretanto, o livro é de 2008, quando essas discussões ainda não estavam na crista da onda. E é exatamente isso, a meu ver, que o torna atraente e especial. Não obstante, é impossível que uma resenha desse livro não seja afetada pelo debate que está em alta agora na comunidade evangélica brasileira, justamente porque é feita visando contribuir para ele.
O livro foi publicado pela Fonte Editorial, tem 184 páginas e está dividido em 12 capítulos. Os textos, embora estejam todos relacionados à mesma temática, são independentes, de tal maneira que a leitora e o leitor podem iniciar a leitura do ponto que quiser, sem prejuízo para a compreensão. Há uma breve apresentação de Sandra Duarte de Souza, doutora em Ciências da Religião pela UMESP (1999), e a tradução dos capítulos é de Jaci Maraschin.
Antes de entrar nos pormenores da discussão do livro, compete chamar a atenção para alguns elementos prévios que necessitam ser levados em consideração. É preciso levar em consideração a data do aparecimento dos textos. A maioria dos capítulos do livro foi escrita no fim da década de 1970. Alguns outros em meados da década de 1990 e outros na década de 2000, todos nos Estados Unidos. Esses três períodos onde os textos foram escritos devem sinalizar para o leitor acerca do pano de fundo que fomentou tais discussões. E não se pode perder de vista que, primariamente, são a estes contextos específicos que as reflexões presentes em Homossexualidade: perspectivas cristãs estão tentando responder. Também o fato de todos os textos terem sido escritos nos Estados Unidos deve ser levado em conta. As diferenças culturais, a terminologia, e os tópicos específicos que aparecem nos capítulos não são os mesmos que envolvem o atual debate sobre a homossexualidade e as igrejas no Brasil.
Algumas diferenças em relação ao nosso atual contexto brasileiro dizem respeito, em primeiro lugar, ao fato de que o livro debate além da aceitação dos homossexuais como membros legítimos da comunidade cristã, a legitimidade de sua ordenação ao ministério eclesiástico. No Brasil, este segundo tópico parece ainda não ser o centro das discussões, visto que aqui as questões acerca dos direitos civis ganharam predileção, em função da eminência de certas políticas públicas com objetivos anti-homofóbicos (Programa Brasil sem homofobia e PL 122/2006).
Outra diferença diz respeito a certos modos de se tratar a problemática que foram profundamente modificadas desde então. Entre essas modificações, está o fato de que não se trata mais de focar o debate num suposto “estilo de vida homossexual”, naquela época compreendido como um “grupo de risco”. Todas as políticas de saúde pública da atualidade tratam com a categoria “comportamento de risco”, que se estende a homossexuais, bissexuais, travestis, e também aos heterossexuais.
Não obstante essas considerações, acreditamos que a publicação de Homossexualidade: perspectivas cristãs pode contribuir em muito para a qualificação do debate atual acerca da legitimidade da homossexualidade enquanto orientação sexual. A contextualidade das reflexões que o livro apresenta não nos desautoriza a recomendá-lo como ótima fonte de consulta na discussão deste tema. Além das contribuições de conteúdo, o livro também oferece uma metodologia a seguir quando se trata de pensar a homossexualidade com categorias bíblicas e cristãs. Tal metodologia pode ser resumida como um diálogo constante entre a tradição das fontes bíblicas e os resultados das ciências humanas e sociais.
Os autores, em sua maioria professores em instituições de ensino teológico protestantes, assumem uma postura de inclusão e de aceitação da legitimidade da experiência homossexual. As fontes bíblicas, constantemente reviradas em diversos capítulos, são consultadas com a mediação de recursos da exegese, que nos ajudam a compreender o pano de fundo de cada declaração bíblica acerca do tema. Uma linha comum de argumentação do livro reside na constatação de que a Bíblia não oferece categorias objetivas para se tratar do tema da homossexualidade, visto ser esta uma categoria muito tardia, ausente nas culturas que geraram o texto bíblico.
Os autores do livro tratam de separar aquilo que seria um comportamento homossexual praticado por pessoas heterossexuais num contexto de opressão, idolatria e autoalienação, das atuais relações homoafetivas marcadas pela cumplicidade, pela reciprocidade e como decisão deliberada entre duas pessoas adultas do mesmo sexo. Os autores da Bíblia não conheceriam esta novíssima categoria, sendo que a negação dos comportamentos homossexuais, presente na Bíblia, se dirigiria a pessoas heterossexuais nos contextos rapidamente descritos logo acima.
Os três textos usados tradicionalmente pelas igrejas cristãs como fundamentos bíblico-teológicos para a negação da homossexualidade – Gênesis 19, Levítico 18/22 e Romanos 1 – recebem atenção especial em Homossexualidade: perspectivas cristãs. Os autores do livro revisitam a narrativa de Gênesis 19 em diálogo com recursos da exegese bíblica, para concluírem que, no lugar da negação de um determinado comportamento sexual, o texto apontaria para a denúncia da falta de hospitalidade, e para a prática da opressão e da injustiça social. Para reforçar esse ponto de vista, os autores apontam para o modo como a própria tradição bíblica, mormente o profetismo, releu o problema da “sodomia” não como uma transgressão da sexualidade, mas como um problema ético/social (cf. Ezequiel 16.49).
A tradição levítica é situada à luz do contexto social do Israel bíblico. No entanto, o ponto áureo desse tópico é a denúncia da seletividade ideológica que caracteriza a maioria dos intérpretes atuais do livro de Levítico, ao relegarem a perenidade e a obrigatoriedade da observação de tantos outros preceitos morais para além daqueles ligados aos comportamentos homossexuais. Romanos 1, referência majoritária no Novo Testamento neste debate, é meditado à luz daquilo para o qual já apontamos, acerca da diferença não concebida por Paulo entre comportamento homossexual por pessoas heterossexuais num contexto de idolatria e autoalienação, e as atuais relações homoafetivas que buscam se afirmar sobre outras bases.
Além desse diálogo com as tradições bíblicas, outra interessante marca desta publicação é sua consulta constante ao material oriundo das ciências sociais e humanas, pelo menos no que se dispunha disso no período de produção desses textos. E é justamente a aproximação da produção científica que traz para essa discussão a categoria de “orientação sexual”, em lugar de “opção sexual”. O livro apresenta algumas discussões acerca da natureza e da gênese da homossexualidade, e reflete bem as inconclusões da época (que permanecem) quanto a este tópico. Um dos pontos mais controversos desse tópico em especial, é uma resenha de The construction of homossexuality (David Greenberg) presente no livro, de autoria de Don Browning. O autor do livro resenhado se utiliza de categorias do construcionismo social para pulverizar as concepções essencialistas que tentam explicar a gênese da sexualidade humana.
Se Homossexualidade: perspectivas cristãs já era um livro corajoso e interessante em 2008, quando silenciávamos acerca desse tema, agora muito mais quando certos discursos e ações tentam vender a impressão de um falso consenso na comunidade evangélica brasileira em relação aos homossexuais. É interessante saber que esse consenso nunca existiu, nem no Brasil nem em outros contextos. É interessante saber que, se por um lado o tema é tratado apressada e preconceituosamente por uma grande parcela de líderes e igrejas, por outro lado ele é tratado com preocupação séria, esforço disciplinado e mente aberta por líderes e igrejas pertencentes à mesmíssima comunidade evangélica.
É interessante saber que no lugar de uma perspectiva cristã, caracterizada pelo trato sisudo e rancoroso com que enfrenta a temática, há outras perspectivas cristãs para pensar as reivindicações civis e religiosas da homossexualidade, marcadas pela inclusão e pelo acolhimento de uma comunidade de pessoas historicamente consideradas de segunda categoria.
Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.
Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=618
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