A pós-modernidade é caracterizada, dentre outras coisas, pela retomada do sagrado. Nunca na história pós-iluminista a religião foi tão valorizada — em suas mais diversas formas. A cada dia surgem novas seitas e grupos das mais diversas matizes que, dignos de crédito ou não, revelam o interesse do homem pós-moderno pelo transcendente.
Em certo sentido, a retomada do sagrado foi uma resposta à rejeição que a modernidade desenvolveu em relação à religiosidade. Um dos pressupostos modernos é a supremacia da razão. Tendo como Kant um de seus grandes precursores, a modernidade procurou colocar a religião nos limites da razão (1). Impossível de ser vista dessa forma, devido ao aspecto transcendente característico de praticamente toda manifestação desta natureza, a religião passou a ser vista com descrédito pelo homem moderno.
Diante de tais constatações, portanto, se impõe uma questão que — ainda que aparentemente filosófica — revela-se extremamente prática ao refletir o dia a dia da espiritualidade de homens e mulheres da presente geração: estamos nós banalizando o sagrado ou sacralizando o ordinário?
Restringindo a questão ao universo do cristianismo, por exemplo, há quem pense que a atual geração de cristãos esteja rebaixando elementos, objetos e ritos outrora tidos como elevadamente sacros. Por outro lado, há os que veem todo este movimento de espiritualização como uma desnecessária sacralização do que sempre existiu para ser ordinário.
Cada um responderá à referida pergunta à luz dos pressupostos de seus tempos. É digno de nota destacar que a presente geração vive uma realidade não muito comum. Devido à recente — ou ainda presente — transição de eras, convivem, nas ruas de nossas cidades, homens modernos e pós-modernos (2). Há quem tenha nascido na modernidade e com seus pressupostos permanecido; há os que nasceram na modernidade, mas carregam consigo, devido às mudanças, conceitos pós-modernos; e há ainda os que nasceram na pós-modernidade e que, desde sempre, pensam com as categorias de seus dias.
Geralmente, as respostas à pergunta em questão são baseadas nas tradições e seus pressupostos. Mesmo no âmbito do protestantismo, movimento que tem como um de seus grandes corolários a supremacia das Escrituras, os argumentos mais comuns remontam a questões históricas. É importante destacar que, ainda que tenham seu lugar, argumentos históricos e experiências de qualquer natureza não devem ser tomados como base para se fazer doutrina. Doutrinas são, no protestantismo, fruto das Escrituras; e, neste assunto específico, fruto do que elas falam sobre o homem e sua criação.
As Escrituras apresentam o ser humano como alguém que se encontra em um dos três seguintes estágios: criação, queda e restauração (3). Estas são as três únicas possíveis condições humanas, sendo que a primeira delas foi experimentada apenas por nossos primeiros pais, quando criados por Deus. Ao formar o homem, Deus o fez à sua imagem, soprando em suas narinas seu espírito. Dentre todas as coisas criadas, Deus sacralizou o homem como coroa da criação e reflexo, na terra, de sua santa imagem.
A rebeldia do homem trouxe à existência uma nova condição. Representada por Adão, toda a raça humana passou a se encontrar, por natureza, em estado de queda. Ainda que o propósito inicial de sua existência tenha permanecido — o de refletir a imagem de Deus — esta tarefa se tornou cada vez mais difícil de ser cumprida, tal como é difícil para um espelho partido em cacos refletir a imagem de quem quer que esteja na sua frente.
É nesta condição que estão todos os filhos de Adão e filhas de Eva, por natureza. Rompidos em sua relação com o criador, homens e mulheres deixaram de se ver como seres sagrados e, consequentemente, deixaram de ver e compreender o mundo como um palco da atuação e revelação da santa imagem de Deus.
O terceiro e último estágio no qual o homem se encontra é o de restauração. Nele, não está toda a raça humana, mas aqueles que vivem em aliança com Cristo. Identifico-os como estando em estágio de restauração, pois estão em processo de redenção, iniciada com sua justificação, a ser concretizada com sua glorificação. Deus, em Cristo, restaura sua imagem na vida de seus filhos, fazendo com que estes se percebam, novamente, como seres santos, agindo em um mundo por eles santificado.
Nos três estágios pelos quais passa a humanidade, a percepção bíblica é a de que o elemento sacralizado permanece sendo o homem. Não há, nas Escrituras, objetos santos. Existem, é verdade, objetos santificados na antiga aliança, mas tão somente com o objetivo de apontar para algo maior, revelado na nova. O Novo Testamento dessacraliza objetos e sacraliza gente. Esta é, desde o Gênesis, a dinâmica divina no estabelecimento do sagrado.
É digno de nota que, ainda que Deus sempre tenha sacralizado a raça humana, a tendência do homem tem sido a de ver, erroneamente, o mundo como algo mais sagrado do que ele. A sacralização do ordinário ou a banalização do sagrado são, na verdade, movimentos opostos que revelam esta tendência. A verdade a respeito deste assunto não está na postura moderna, nem na pós-moderna. Está em ambas; ou em nenhuma. Depende da forma como se relaciona com o mundo ao seu redor.
Com pressupostos modernos ou pós-modernos — ambos com suas virtudes e falhas —, homens e mulheres são chamados a refletir a santidade de Deus no mundo. Banalizar o sagrado ou sacralizar o ordinário são formas de se conferir maior valor às coisas do que às pessoas. Por terem sido criados à imagem de Deus, todos os seres humanos são sagrados. Uns, pela restauração de tal imagem promovida por Cristo, se dão conta disso e vivem a partir desta verdade; outros, por permanecerem no estágio de queda, não a percebem, vivendo dessacralizadamente. Todos, contudo, existem para fazer ecoar na história a verdade de que há um Deus que, amando mais a homens do que a qualquer outra coisa, escolheu sacralizar uma raça rebelde, dando a ela a honra e responsabilidade de portar sua imagem e revelar sua santidade.
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Notas
(1) KANT, Immanuel. A Religião nos Limites da Simples Razão. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2006.
(2) As discussões sobre a transição entre a modernidade e a pós-modernidade ocupam espaço considerável no cenário acadêmico desde meados da década de 1970. Dentre as inúmeras obras relacionadas ao assunto, vale conferir GRENZ, Stanley. Pós-Modernismo: Entendendo a Filosofia do Nosso Tempo. Vida Nova: São Paulo, 1997.
(3) Não mencionei o quarto estágio, glória, por estar trabalhando neste artigo apenas os estágios nos quais os homens se encontram antes de experimentarem a morte.
(1) KANT, Immanuel. A Religião nos Limites da Simples Razão. Trad. Ciro Mioranza. São Paulo: Editora Escala, 2006.
(2) As discussões sobre a transição entre a modernidade e a pós-modernidade ocupam espaço considerável no cenário acadêmico desde meados da década de 1970. Dentre as inúmeras obras relacionadas ao assunto, vale conferir GRENZ, Stanley. Pós-Modernismo: Entendendo a Filosofia do Nosso Tempo. Vida Nova: São Paulo, 1997.
(3) Não mencionei o quarto estágio, glória, por estar trabalhando neste artigo apenas os estágios nos quais os homens se encontram antes de experimentarem a morte.
Por Daniel Guanaes é pastor presbiteriano e doutorando em Teologia pela Universidade de Aberdeen, Escócia.
Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=90
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