Ele era um homem simples. Não teve muita escolaridade. Era um apaixonado pela política e foi vereador em sua cidade por cinco mandatos consecutivos. Chegou também a ser prefeito interino em três ocasiões. Homem de grande popularidade e de intensa atividade política. Foram essas características que marcaram o seu nome na história de sua pequena cidade.
O que pouca gente sabe por lá é que ele também era poeta prolixo. Melhor dizendo, ninguém além de seus próprios filhos sabe disso. Escreveu muito e com uma caligrafia de colocar inveja em qualquer escrivão. Livros publicados? Até que poderia ser, se um dos seus “filhos geniais” não tivesse dado um fim desconhecido para os seus manuscritos. Nada, absolutamente nada ficou para a memória após sua morte. Só ficou uma sensação de algo entalado na garganta. A vontade de saber como seriam aquelas poesias que ninguém conhecia.
De quem estou falando? Do meu avô! Político-poeta, cujo legado literário foi privado da família por um tio meu, que cometeu a insensatez de destruir (não se sabe por que) os manuscritos do meu avô.
Coisa semelhante pode ter acontecido com Paulo de Tarso, no que diz respeito a uma certa carta que teria sido endereçada aos cristãos de Laodicéia (Cl 4,16). Que carta era aquela que teria sido lida entre os cristãos de Laodicéia, e que deveria ter sido lida entre os colossenses também? Li comentários que dizem ser a mesma carta aos Efésios. De onde vem essa certeza? Será que suposições como essa refletem o medo de admitir que existem (se é que ainda existem) textos inspirados fora do nosso Novo Testamento canônico? Se essa carta fosse achada pelas pesquisas arqueológicas, entre os escritos do Mar Morto em 1947, suponhamos, ela seria incluída entre os escritos sagrados da Bíblia cristã? São tantas as dúvidas. Mas a principal delas é idêntica ao caso do meu avô: qual o conteúdo dos manuscritos? Quais as recomendações do apóstolo nesse outro escrito?
Entre Paulo e meu avô, o apóstolo deu mais sorte. Alguns dos seus escritos estão ainda entre nós. No caso do meu avô, seus escritos transformaram-se na pior classe de enigmas: os indecifráveis. Nunca saberemos por quais céus voou a imaginação do meu avô; se ele privilegiou os pássaros ou os montes; ou se ele preferiu os sentimentos humanos. Dor sem consolo, dor de morte.
Eu ia falando de imaginação, que é coisa fantástica. Foi com ela que Martin Luther King Jr., aquele notável pastor batista norte-americano pensou em como seria uma carta paulina aos cristãos da América. Ele foi na contramão da carta de Paulo aos laodicenses e dos poemas do meu avô. Esses escritos existiram, mas nenhum de nós os conheceu. Já a Carta de São Paulo aos cristãos da América nunca existiu, mas alguns de nós a conhecemos. A epístola “paulina” é de conteúdo tão interessante e contextualizado que eu resolvi, ao invés de comentá-la, transcrever ipsis verbis (ao pé da letra) alguns dos seus tópicos principais. Veja o que para Martin Luther King Jr. teria sido uma carta do apóstolo Paulo aos cristãos dos Estados Unidos, em meados dos anos 60:
Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado ao apostolado pela vontade de Deus, a todos os que estais na América, convosco a graça e a paz da parte de Deus Nosso Senhor e de Jesus Cristo. [...] Contaram-me das maravilhosas e extraordinárias descobertas que haveis feito no campo científico e nas vossas espantosas realizações tanto na terra como no ar. O vosso gênio científico conseguiu encurtar distâncias e pôr o tempo a ferros. Tornastes possível ir almoçar em Paris, na França, e vir jantar em Nova Iorque, na América. Também me falaram dos vossos imponentes ‘arranha-céus’, cujas alturas prodigiosas se projetam no espaço; nos avanços da medicina e nos remédios que curam tantas doenças gravíssimas, prolongando assim as vossas vidas e proporcionando-vos uma maior segurança e um maior bem-estar físico. Tudo isso é maravilhoso. [...] Mas, América, parece-me que o vosso progresso moral e espiritual não terá acompanhado o científico. [...] Conseguistes, através do vosso progresso científico, tornar o mundo próximo, mas falhastes no aproveitamento do vosso gênio moral e espiritual para dele fazerdes uma fraternidade. [...] Rogo-vos, pois, que coloqueis o vosso progresso moral à frente do científico. [...] Vejo que muitos cristãos na América dão primordial importância aos sistemas e costumes criados pelo homem. Temem ser considerados diferentes; a sua maior preocupação é serem socialmente aceitos. [...] Numa época em que homens procuram destruir os altos valores da fé, vós deveis agarrar-vos a esses mesmos valores e, a despeito da pressão contrária exercida pela geração presente, preservá-los para as gerações futuras. Deveis desafiar com energia os erros dos costumes, defender as causas desfavorecidas e lutar contra o status quo. [...] Sei que adotastes na América um sistema chamado capitalismo, que vos têm permitido realizar maravilhas; tornaste-vos na mais rica nação do mundo e edificastes o maior organismo de produção de toda história. [...] Dizem que mais de 40% da riqueza nacional está nas mãos dum décimo de 1% da população. [...] Se quereis ser uma autêntica nação cristã, tendes de solucionar este problema! [...] Utilizai os vossos vastos recursos econômicos na abolição da miséria no mundo. Não é vontade de Deus que alguns vivam na riqueza supérflua e ostensiva, enquanto outros apenas conhecem a mais negra miséria. [...] Disseram-me que existem dentro do Protestantismo americano mais de duzentas e cinquenta denominações diferentes. Não é positivamente nessa multiplicidade que reside o drama, mas no fato de muitos dos grupos se proclamarem detentores da verdade absoluta. Um tão limitado sectarismo destrói a unidade do Corpo de Cristo. Deus não é batista, metodista, presbiteriano ou episcopal; Deus transcende as nossas discriminações. Se vós, América, quereis ser testemunha autêntica de Cristo, fazei por compreender aquilo que vos digo. Sinto-me feliz por saber que há na América um interesse cada vez maior pela unidade da Igreja e pelo Ecumenismo. [...] Também tive animadoras notícias sobre diálogos recentes entre Católicos Romanos e os Protestantes. [...] Espero que [isso] represente o início dum movimento para uma união cada vez maior entre todos os cristãos. [...] Outra coisa que me perturba na igreja americana é nela poder existir a divisão entre brancos e pretos. Como é possível a segregação no autêntico corpo de Cristo? Parece até, segundo me dizem, que é maior a integração na sociedade mundana e noutras atividades seculares, do que na Igreja cristã. Como isto é horrível! Julgo que há entre vós cristãos que tentam descobrir fundamentos bíblicos para justificar a segregação e provar que o negro é, por natureza, inferior ao branco. Ora, tal idéia é blasfema e contrária a tudo o que a religião cristã afirma. Repito o que já disse antes a muitos outros cristãos: em Cristo “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher pois todos vós sois um em Jesus Cristo”. [...] Exorto-vos, pois, a libertar-vos de qualquer espécie de segregação. [...] Nunca vos deixeis rebaixar tanto por alguém, que sejais obrigados a odiá-lo. [...] A finalidade da vida não é ser feliz nem procurar o prazer e fugir ao sofrimento mas, venha o que vier, cumprir sempre a vontade de Deus. [...] Podeis ter o dom da predição científica ou o profundo conhecimento do comportamento das moléculas; podeis penetrar o interior da natureza e lá adquirir novos e enormes conhecimentos; podeis ascender aos mais altos cargos acadêmicos; possuir toda a ciência, vangloriar-vos dos vossos grandes estabelecimentos de ensino e da vastidão ilimitada dos vossos cursos; quando, porém, vos falte o amor, nada disso vos aproveitará. [...] Digo-vos adeus. Saudai calorosamente a todos os santos ao serviço de Cristo. Confortai os outros; conservai um mesmo espírito; vivei em paz. [...] A Deus seja dada honra e glória por todos os séculos dos séculos. Amém.
Como você deve ter notado, eu retalhei a epístola no esforço de transcrever apenas os tópicos básicos que a compõe. Ela é bem maior que isso, e bem mais detalhada. Todavia, lhe dou minha palavra de que evitei todo tendencionismo no momento de separar os trechos. Se você preferir conferir por si mesmo(a), leia daquele autor Strength to love – em português Força para amar (Editora Tapir) –, já que é nesse livro que se encontra a versão na íntegra da Carta de São Paulo aos cristãos da América. Infelizmente, Martin Luther King Jr. foi tirado desse mundo pelos poderes que desejam perpetuar o status quo. Meu desejo sincero é que ele ainda estivesse vivo e viesse passar uma temporada aqui no Brasil. Quem sabe ele usaria mais uma vez da sua admirável imaginação e escreveria uma Carta de São Paulo aos cristãos do Brasil?!
Não obstante, voltaram-me à cabeça as poesias do meu avô e a carta de Paulo à igreja de Laodicéia. Elas existiram um dia, mas nós nunca as conheceremos. Já a Carta de São Paulo aos cristãos da América nunca foi escrita por Paulo, mas nós agora a conhecemos pela imaginação de um pastor preocupado com um cristianismo mais relevante. A Carta de São Paulo aos cristãos do Brasil também nunca existiu, mas a nossa imaginação, aliada à nossa sensibilidade e vontade de um cristianismo mais original, isto é, mais “apegado às origens”, pode imaginar como seria essa epístola. Então, agora é hora de fazer silêncio e começar a pensar...
Por Paulo Nascimento Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.
Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=260
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