Essa semana nos presenteou com mais um exemplo do poder demoníaco da interpretação literal da Bíblia. Estou usando a palavra “demoníaco” pensando na acepção dada a ela por Paul Tillich. Em Tillich, o demoníaco é a força destrutiva que advém das relações idolátricas. É o poder de destruição que está em jogo quando um elemento relativo, histórico, condicionado, é elevado ao status de absoluto, ou – numa palavra religiosa – de divindade. É exatamente isso que ocorre com a interpretação literal e fundamentalista da Bíblia. Os textos bíblicos, historicamente produzidos, polissêmicos, relativos em sua interpretação, são tomados literalmente como formas discursivas absolutas, válidas em todo tempo e espaço. Nesse instante faz-se uma idolatria. E toda idolatria, conforme Tillich, é demoníaca, pois hospeda em si um poder de destruição da vida, que é sempre fluida, e resistente aos esquemas rígidos de interpretação.
O demoníaco aí, nessa acepção, equivale ao que Pierre Bourdieu chama de violência simbólica. Mas não se devem minimizar os efeitos dessa violência por ser simbólica, pois é o plano do simbólico, conforme aquele sociólogo, que sustenta as relações sociais. Portanto, violência simbólica é violência muito concreta, que deve ser tão confrontada quanto as formas mais encarnadas de violência em nossas sociedades.
Há poucos dias, uma das grandes personagens do mundo evangélico brasileiro não poderia ter sido mais infeliz em sua hermenêutica literal da Bíblia. Usando a passagem do livro de Gênesis 9,20-29, essa personagem defenderia a tese de que o continente africano convive com uma maldição histórica impetrada por Deus, desde os primórdios da História. O referido texto diz o seguinte:
E Noé tornou-se lavrador da terra, e plantou uma vinha. E bebeu do vinho, e embebedou-se; e despiu-se, no meio de sua tenda. E viu Cam, o pai de Canaã, a nudez do seu pai, e ofez saber a ambos seus irmãos fora. Então tomaram Sem e Jafé uma capa, e puseram-na sobre ambos os seus ombros, e indo, virados para trás, cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos eram virados, de maneira que não viram a nudez do seu pai. E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos. E disse: Bendito seja o Senhor Deus de Sem; e seja-lhe Canaã por servo. Alargue Deus a Jafé, e habite nas tendas de Sem; e seja-lhe Canaã por servo. E viveu Noé, depois do dilúvio, trezentos e cinquenta anos. E foram todos os dias de Noé novecentos e cinquenta anos, e morreu.
Os povos africanos, conforme esse intérprete, estariam ligados diretamente à descendência de Cam, que, como se pode ver no texto bíblico mencionado, fora punido por Noé por conta de sua transgressão, ao vislumbrar a nudez de seu pai. Embora o próprio texto tribute a má sorte de Cam e de sua descendência caananita à palavra de Noé, o nosso intérprete deduz que haveria sido o próprio Deus a amaldiçoar aqueles povos, e que a má sorte das nações africanas, ligadas histórica e genealogicamente aos caananitas, também tem sido produto de uma ação deliberada de Deus. Obviamente, o único remédio para as mazelas históricas (políticas, econômicas, sociais, culturais) dos povos africanos é a conversão em massa destes ao Cristianismo Evangélico e Pentecostal, tal como aquele que o nosso intérprete confessa. Isso por que, conforme nosso desatento hermenêuta, “a unção quebra o jugo” (uma referência ao verso isolado de Isaías 10,27).
Primeiro, uma palavra sobre o texto em questão.
Nosso intérprete, em sua hermenêutica literalista e fundamentalista, não poderia aceitar a hipótese exegética de que o texto em questão pertence a um bloco de escritos bíblicos eminentemente míticos (Gn 1-11). Certamente o teor da palavra “mítico” lhe soaria como uma ofensa. Também suponho que nosso intérprete sequer cogite que o texto em questão talvez pertença a uma tradição religiosa cuja finalidade havia sido legitimar a conquista de Canaã. Para legitimar a conquista de um território habitado, o recurso da deslegitimação de seus habitantes era um recurso muito em voga na Antiguidade. Também a colonização européia dos povos americanos, africanos e asiáticos, a partir do século dezesseis, usou amplamente esse recurso de deslegitimação dos “nativos”. Ainda em nossos dias é possível assistirmos a eventos semelhantes, de países que se arrogam como baluartes mundiais da democracia, e que necessitam produzir discursos de deslegitimação de suas nações-alvos.
Essa construção discursiva atribui aos outros povos uma história de maldição e de inferioridade. Ela reforça o senso de superioridade dos invasores, e capitaliza as forças necessárias aos procedimentos bélicos e invasivos. Em outras palavras, não se pode mobilizar uma invasão sem que haja motivos claros, ou razões ideológicas “óbvias”, relacionadas à inferioridade do Outro, que confere aos invasores o direito de usurpar-lhe o território e tudo mais. A pesquisa exegética tem mostrado que Israel não se furtou a esses recursos. A Bíblia, sobretudo o Antigo Testamento, é em grande parte um conjunto de narrativas marcadas por esse estilo de teologia, tão em voga na Antiguidade. A conquista de Canaã necessitou de uma legitimação religiosa e teológica a priori, e o texto bíblico em questão pode ser expressão desse modo de fazer teologia.
Mas nosso intérprete talvez não se dê conta de que sua fala se endereça à questões políticas, econômicas, e históricas de um modo geral, relacionadas aos povos africanos.
Com sua hermenêutica literalista e fundamentalista, nosso hermeneuta acaba por inocentar aqueles que, de fato, são responsáveis pela “maldição africana”. Ao espiritualizar a tragédia civilizatória do continente africano, atribuindo-a à ação de Deus, nosso intérprete despreza toda uma vasta história de relações coloniais, toda uma história de relações de exploração, de racismo e de expropriação a que o continente africano vem sendo submetido desde os ciclos colonizadores da Modernidade. Teria nosso intérprete, em algum momento da vida, lido um pouco da História do continente africano? Agora que a História da África passa a ser disciplina obrigatória nos currículos do ensino médio das escolas públicas brasileiras, seria ótimo que nosso intérprete pudesse voltar à sala de aula para reler a história das relações intercontinentais dadas na Modernidade. Além do mais, se as imagens da desolação da fome e as estatísticas relacionadas à epidemia da AIDS, formam as representações mais comuns acerca do continente africano, nosso intérprete deveria saber que a África é muito maior que elas. Ele deveria saber das novíssimas oportunidades macro-econômicas possibilitadas pelo intercâmbio com a China. Deveria saber da diversidade política, econômica, cultural e social do continente africano, que não se reduz à região subsaariana.
Como nosso intérprete reagiria à confrontação de suas teses? Por exemplo, como reagiria se lhe fosse dito que o que ele crê ser a “libertação da maldição da África” – isto é, a conversão em massa das nações africanas ao seu Cristianismo Evangélico e Pentecostal – é correlata à ânsia de poder e de dominação dos antigos colonizadores daqueles povos? Como nosso intérprete reagiria se lhe fosse dito que sua proposta não passa de uma espécie de neocolonialismo travestido de religião? Isso porque o transplante de uma religião para um novo contexto nunca se faz sem o transplante da cultura dos missionários. E em muitas oportunidades, o que parecia ser “a libertação do jugo”, tornou-se a ampliação do jugo.
Por fim, quem creria num deus assim? Como é possível assistir às imagens de desolação pela fome, conhecer as terríveis estatísticas relacionadas à AIDS presentes em alguns países africanos, e reputá-las à ação deliberada de Deus? Não seria esse deus o próprio Diabo? Quem poderia crer num deus que tem mantido o continente africano na condição histórica de um subcontinente, por causa da bunda de um velho embriagado? Em relação a um deus para quem a honra da bunda de um velho embriagado vale mais que a vida e a história de todo um continente, eu me declaro completamente ateu.
Por Paulo Nascimento é baiano de Muritiba, terra de Castro Alves. É casado com Patrícia Nascimento e sem filhos. Também é Bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico Batista do Nordeste (Feira de Santana-BA) e graduando em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas. Além disso, é pastor batista em Maceió e professor de Teologia Sistemática no Seminário Teológico Batista de Alagoas. É autor de Ópio coisa nenhuma: Ensaio de Teologia Crítica a partir de Alagoas.
Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=495
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