terça-feira, 31 de março de 2009

As Institutas de Calvino

Laurence M. Vance - O Outro Lado do Calvinismo
As Institutas de Calvino
A maior obra literária a surgir da caneta de Calvino é indubitavelmente sua Christianae Religionis Institutio (Institutas da Religião Cristã), geralmente referida apenas como suas Institutas. Foi iniciada durante o exílio de Calvino da França e terminada em 1535 enquanto em Basel.[1] Foi publicada em Basel em 1536 sob o ostentoso título de:

O Ensino Básico da Religião Cristã, compreendendo quase a soma total da piedade e do que é necessário conhecer sobre a doutrina da salvação. Um trabalho recém-publicado que muito merece ser lido por todos os que estudam a piedade. Um prefácio ao mais cristão rei da França, oferecendo a ele este livro como uma confissão de fé do autor, Jean Calvin de Noyon. Basel, MDXXXVI.[2]

As Institutas de Calvino passou por muita revisão e ampliação até a edição final de 1559.

Calvino fez o prefácio de suas Institutas com um discurso extenso a Francis I (1497-1547), o Rei da França. Somente o prefácio tem sido chamado “uma das poucas obras-primas da literatura apologética.”[3] Schaff a considera “entre os três prefácios imortais na literatura.”[4] Neste prefácio Calvino diz ao rei:

Quando inicialmente lancei mão da pena para escrever esta obra, meu principal objetivo, ó Mui Preclaro rei, era o de escrever algo que, depois, pudesse ser apresentado diante de tua majestade. Meu objetivo era o de apenas ensinar certos rudimentos em função dos quais fossem instruídos, na verdadeira piedade, todos quantos são tocados por algum zelo de religião.[5]

Todavia Calvino tinha um outro objetivo em mente, como ele diz: “Me pareceu que eu devesse fazer algo que fosse conveniente se eu tanto desse instrução a eles e fizesse confissão diante de vós com a mesma obra.”[6] Calvino então fez um pedido em favor dos protestantes franceses que tinham sido impiedosamente perseguidos pelo rei desde o incidente dos Cartazes.[7] O apelo de Calvino ao rei não era baseado na liberdade de consciência mas em um desejo para dissociar os protestantes franceses dos anabatistas (que eram considerados sediosos e merecedores de perseguição) e para estabelecer os protestantes franceses como os legítimos sucessores do Cristianismo apostólico e não a Igreja Católica.[8] O próprio Calvino mais tarde disse:

Foi por isso que publiquei as Institutas – para defender contra a injusta calúnia contra meus irmãos cujas mortes eram preciosas aos olhos do Senhor. Uma segunda razão era meu desejo de despertar a compaixão e preocupação dos povos de fora, visto que a mesma punição ameaçou muitas outras pobres pessoas. E este volume não foi uma obra espessa e laboriosa como a presente edição; mostrou-se como um breve Enchiridion. Não tive outro propósito senão carregar o testemunho à fé daqueles que vi criminalmente difamados pelos pérfidos e falsos bajuladores.[9]

A primeira edição das Institutas de Calvino foi escrita em latim e continha seis capítulos. Os primeiros quatro, moldados ao estilo do Catecismo de Lutero, consistiam de exposições sobre os Dez Mandamentos, o Credo dos Apóstolos, o Pai-Nosso, e os Sacramentos, enquanto o quinto e o sexto capítulos lidavam com os falsos sacramentos e a Liberdade Cristã.[10] A primeira edição esgotou-se rapidamente e uma segunda, também em latim, foi publicada em 1539.[11] Desta vez, ainda que o livro tenha ficado mais volumoso, o título ficou mais curto, as palavras foram alternadas para ser lidas Institutio Christianae Religionis, e a frase “em toda a extensão verdadeiramente correspondendo ao seu título” foi incluída.[12] Calvino afirmou que seu objetivo nesta edição era “preparar e treinar estudantes para o estudo da Palavra divina, a fim de que possam ter fácil acesso a ela e manter-se nela sem tropeçar.”[13] Esta segunda edição tinha dezessete capítulos e era três vezes o tamanho da primeira.[14] A primeira edição francesa, Institution de la religion chrestienne, publicada em 1541, foi traduzida pelo próprio Calvino.[15] Tem sido chamada “uma das maiores influências na evolução da linguagem do francês medieval ao moderno.”[16] Após várias outras edições em latim e francês, Calvino publicou sua edição final em latim em 1559:

Instituta da Religião Cristã, agora pela primeira vez organizada em quatro livros e dividida por títulos definidos de um modo bem conveniente: também ampliada por muita matéria acrescentada de modo que pode quase ser considerada como uma nova obra.[17]

Esta edição final continha oitenta capítulos e foi vista por Calvino como sua obra definitiva.[18]

A importância das Institutas de Calvino para o desenvolvimento da fé reformada não pode ser enfatizada o suficiente. As Institutas foram logo traduzidas para outras línguas da Europa e fez do nome Calvino uma palavra familiar entre os protestantes.[19] A primeira tradução inglesa apareceu em Londres em 1561.[20] Do valor das Institutas tem sido dito:

A obra-prima da teologia protestante.[21]

Um dos dez ou vintes livros no mundo do qual podemos dizer sem exagero que tem determinado o curso da história e mudado a cara da Europa.[22]

Este livro é a obra-prima de um gênio precoce de intelecto imponente e profundeza espiritual e força. É uma das poucas produções verdadeiramente clássicas na história da teologia.[23]

Até o historiador católico romano, Wilhem Kampschulte (1831-1872), comentou: “Sem dúvida a mais saliente e mais influente produção na esfera da dogmática que a literatura da Reforma do século dezesseis apresenta.”[24] Mas apesar deste relato entusiasmado, a maioria dos católicos romanos não apreciam a obra de Calvino, e foi suprimida pela Igreja Católica e queimada em Notre Dame em 1544.[25] Considerando a época em que ela apareceu na história, as Institutas de Calvino é certamente uma obra notável. Mas deve ser lembrado que as Institutas é primeiramente uma teologia reformada, e como um calvinista a chama: “A expressão autorizada da teologia reformada.”[26] Naturalmente, os batistas calvinistas que recorrem às Institutas de Calvino fazem assim somente quando tentam estabelecer a verdade de sua doutrina da predestinação.

Embora Calvino tenha sido certamente um pensador original e professou fazer da Bíblia seu estudo mais íntimo, as fontes do pensamento de Calvino nas Institutas são variadas e bem abrangente. Como Walker observa: “A mente de Calvino era formulativa antes que criativa.”[27] Como um da segunda geração de reformadores (Calvino foi uma geração mais jovem que Lutero, Zwínglio, Melanchthon, e Bucer), Calvino era bem versado nos escritos de seus precursores. Lutero e Bucer se sobressaem em particular. Calvino leu muitas das obras de Lutero (traduzidas para o latim), e os calvinistas têm há muito tempo reconhecido sua dívida com o reformador alemão.[28] Warfield chama Bucer de “o mestre de Calvino em teologia.”[29] A influência de Bucer sobre Calvino tem sido, da mesma forma, reconhecido pelos calvinistas, e especialmente com respeito à doutrina da predestinação.[30] O próprio Calvino até confessou: “Eu particularmente copiei Bucer, esse homem de sagrada memória, distinto doutor na igreja de Deus.”[31] Wendel também revela que há “analogias surpreendentes” entre várias passagens nas Institutas e as obras de Erasmo.[32] Calvino era familiarizado com os autores escolásticos também, especialmente Anselmo (1033-1109), Lombardo (1100-1160), Aquino (1225-1274), e Bernardo (1090-1153).[33] Ele também citou largamente os antigos autores gregos e latinos.[34] E embora Calvino conhecia os Pais da Igreja extremamente bem, “como ninguém no século,”[35] ele considerou uma em particular como “o melhor e mais confiável testemunho de toda a antiguidade.”[36]

Como vimos no capítulo anterior, este “melhor e mais confiável testemunho” é ninguém menos do que Agostinho. Lá vimos que o nome de Calvino está inseparavelmente unido com o de Agostinho. Talbot e Crampton insistem que porque “Agostinho foi tão vigorosamente calvinista, que João Calvino se referia a si mesmo como um teólogo agostiniano.”[37] Embora tem sido dito pelos calvinistas que “Calvino usa as opiniões de Agostinho somente como corroboração da Escritura,”[38] também tem sido admitido que em alguns pontos “ele parece confiar em Agostinho para a substância de um argumento.”[39] Mais uma vez deve ser enfatizado que são os próprios calvinistas que ligam Calvino com Agostinho:

Acima de tudo, Calvino considerava seu pensamento como uma exposição fiel das idéias principais de Agostinho de Hipona.[40]

Por toda as Institutas a dívida auto-confessada de Calvino a Agostinho é constantemente aparente.[41]

Ele na verdade incorpora em seu tratamento do homem e da salvação tantas passagens típicas de Agostinho que sua doutrina parece aqui inteiramente contínua com a de seu grande predecessor africano.[42]

Ele empresta de Agostinho pontos de doutrina com ambas as mãos.[43]

Ele fez de Santo Agostinho sua leitura constante, e se sente em iguais condições com ele, cita-o em toda oportunidade, apropria de suas expressões e considera-o como um dos mais valorosos dos aliados em suas controvérsias.[44]

Seja como for, para provar conclusivamente que Calvino era um discípulo de Agostinho, não precisamos olhar além do próprio Calvino. Ninguém consegue ler cinco páginas nas Institutas de Calvino sem ver o nome de Agostinho. Calvino cita Agostinho mais de quatrocentas vezes nas Institutas apenas.[45] Ele chamou Agostinho por títulos como “homem santo” e “pai santo.”[46] O próprio Calvino até declarou: “Agostinho está tão inteiramente comigo, que se eu quisesse escrever uma confissão de minha fé, eu poderia fazer com toda integridade e satisfação a mim mesmo de seus escritos.”[47] De fato, Calvino encerra sua introdução para a última edição de suas Institutas com uma citação de Agostinho.[48]

Além de suas Institutas, Calvino escreveu comentários sobre o Novo Testamento (exceto 2 João, 3 João, e Apocalipse – um livro que ele reconhecia que não podia penetrar[49]) e a maioria do Velho Testamento (todos menos onze livros), assim como numerosos estudos, sermões, e cartas. Já no ano de 1556 uma completa série dos comentários de Calvino foi publicado por Stephanus.[50] A maior parte do volumoso material de Calvino é ainda publicado hoje em dia. E embora seus escritos tenham mais de quatrocentos anos, eles ainda são considerados em alta estima. Estudantes do Calvin Theological Seminary podem realizar cursos sobre as Institutas e os comentários de Calvino.[51] Mas ainda que Calvino tenha produzido uma vasta variedade de obras, a primeira expressão do pensamento de Calvino em algum dado assunto deve ser encontrado nas Institutas, pois o próprio Calvino considerou seus comentários como subordinados às Institutas.[52] E é para as Institutas que nos voltamos para ver a teologia de João Calvino.

[1] Parker, p. 39.
[2] Introdução a Calvino, Institutes of the Christian Religion, p. xxxiii.
[3] Walker, p. 132.
[4] Schaff, History, vol. 8, p. 332.
[5] João Calvino, “Prefatory Address to King Francis I of France,” em Calvino Institutes of the Christian Religion, p. 9.
[6] Ibid.
[7] Ibid.
[8] Parker, p. 41.
[9] Calvino, citado em Estep, p. 228.
[10] McGrath, Calvin, p. 137.
[11] McNeil, p. 125.
[12] Introdução a Calvino, Institutes, p. xxxiv.
[13] Calvino, citado em McGrath, Calvin, p. 137.
[14] Parker, p. 88.
[15] McNeil, p. 126.
[16] McGrath, Calvin, p. 135.
[17] Introdução a Calvino, Institutes, p. xxxviii.
[18] Ibid., p. xxxvii.
[19] Bratt, Teachings of Calvin, p. 20.
[20] McGrath, Calvin, p. 141.
[21] Warfield, Calvin, p. v.
[22] Zweig, p. 35.
[23] Schaff, History, vol. 8, p. 329.
[24] Warfield, Calvin, p. 7.
[25] McNeil, p. 127.
[26] Cairns, p. 312.
[27] Walker, p. 146.
[28] Wendel, p. 131.
[29] Warfield, Calvin, p. 22.
[30] Wendel, p. 141.
[31] Bouwsma, p. 22.
[32] Wendel, p. 130.
[33] Ibid., pp. 126-127.
[34] Ibid., pp. 123-124.
[35] Lindsay, vol. 2, p. 104.
[36] Calvino, Institutes, p. 1303 (IV.xiv.26).
[37] Talbot e Crampton, p. 79.
[38] Introdução a Calvino, Institutes, p. lviii.
[39] Ibid.
[40] McGrath, Calvin, p. 151.
[41] Introdução a Calvino, Institutes, p. lvii.
[42] Ibid.
[43] Wendel, p. 124.
[44] Ibid.
[45] Crampton, Calvin, p. 28.
[46] Calvino, Eternal Predestination, pp. 39, 146, 148, 149.
[47] Ibid., p. 38.
[48] João Calvino, “John Calvin to the Reader,” em Calvino, Institutes of the Christian Religion, p. 5.
[49] McNeil, p. 153.
[50] Parker, p. 127.
[51] Calvin Theological Seminary, 1996-1998 Catalog, p. 111.
[52] McGrath, pp. 138, 147; Wendel, p. 111.

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