terça-feira, 31 de março de 2009

A Época de Agostinho

Laurence M. Vance - O Outro Lado do Calvinismo
A Época de Agostinho
A fim de melhor entender Agostinho e sua teologia, uma breve análise da época em que ele viveu é pertinente, pois Agostinho viveu durante um período único na história do Cristianismo. Começando com a perseguição dos apóstolos após a ascenção de Cristo (At 4.1-3, 5.17-18) e os subseqüentes martírios de Estevão (At 7.58-59) e Tiago (At 12.1-2), os primeiros cristãos sofreram perseguição quase contínua. Mas como o pai da igreja Tertuliano (c. 150-c. 220) mencionou, a perseguição somente fez crescer o número de cristãos: “Nem sua crueldade, no entanto intensa, beneficia você; é uma grande tentação para nós. Quanto mais você nos ceifa, mais crescemos; o sangue dos cristãos é uma semente.”[1] Mas depois de quase trezentos anos de severa perseguição, o Cristianismo foi empurrado para uma posição duvidosa de ascendência.

Constantino (c. 272-337) tornou-se o único governante da parte ocidental do império romano depois de derrotar Maxêncio (c. 283-312) na famosa Batalha da Ponte Mílvian, perto de Roma, em 312. Foi aqui que Constantino alegou ter visto uma visão de uma cruz brilhante que levou à sua vitória. O historiador Eusébio (c. 265-339), o maior admirador de Constantino, registrou da boca de Constantino:

Ele disse que por volta do meio-dia, quando o sol já estava começando a declinar, ele viu com seus próprios olhos o troféu da cruz nos céus, sobre o sol e com uma inscrição contendo as palavras “COM ISTO CONQUISTO.” À vista disso ficaram pasmos tanto ele como todas as suas forças militares, as quais lhe seguiram em sua marcha e foram testemunhas do milagre.[2]

Mais tarde naquela noite em seu sono, Constantino alega ter sido visitado pelo próprio Cristo e foi mandado fazer um modelo semelhante a cruz que ele tinha visto.[3] Depois de supostamente atribuir sua vitória ao “Deus cristão,” Constantino se uniu a Licinius (c. 265-325), um dos imperadores do leste, para editar em 313, em Milão, um decreto de tolerância ao Cristianismo. Licinius logo derrotou um rival no leste e Constantino por sua vez derrotou Licinius em 324, assim tornando o último único governador do império romano.

O Edito de Milão, como o decreto de tolerância ficou conhecido, não somente prescrevia a perseguição aos cristãos, como também permitia a restauração de propriedades confiscadas, reconhecia o Cristianismo, e declarava a absoluta liberdade de consciência em assuntos religiosos. Constantino e Licinius disseram em parte:

Portanto, decretamos a seguinte ordenança, como nossa vontade, com a intenção mais saudável e correta, que nenhuma liberdade seja recusada aos cristãos para seguirem ou manterem suas observâncias ao culto. Mas que a cada um seja concedido o poder de dedicar a mente à adoração que lhe julga adaptada... cada cristão possa buscar e seguir, com liberdade e sem ser importunado, o curso e adoração que propôs para si... concedemos liiberdade e liberdade plena para observarem seu modo peculiar de adoração.[4]

Embora à primeira vista esta proclamação parece ser admirável, foi na verdade o começo da aliança profana da Igreja e Estado que iria contaminar verdadeiras igrejas até bem depois da Reforma. Assim como Balaão não podia amaldiçoar os filhos de Israel (Nm 23.7-8), e por isso fez com que eles, pelo seu conselho (Nm 31.16), cometessem fornicação (Ap 2.14) e se dedicassem a Baal (Nm 25.5), com o resultado que Deus ordenou que fossem mortos (Nm 25.5), assim também a Igreja, começando no tempo de Constantino, visto que não podia ser comprometida pela perseguição, foi seduzida, como os filhos de Israel foram, a unir-se com o mundo.

Se Constantino tivesse meramente seguido a carta do Edito de Milão e deixado os cristãos em paz ele teria entrado para a história com uma melhor reputação que ele desfrutou. Mas tal não era o caso, pois Constantino logo depois estendeu privilégios especiais ao que ele considerava ser a Igreja enquanto retirava todos os privilégios, não apenas dos romanos pagãos, mas do que ele considerava “heréticos” também. Ele eximiu o clero cristão de certos deveres e taxas municipais, aboliu os costumes pagãos que os cristãos julgavam ser ofensivos, e contribuiu liberalmente ao apoio do clero e a construção de igrejas.[5] Para um grupo de cristãos, entretanto, Constantino recusou dar apoio. Os donatistas da África do Norte, que tinham se separado da Igreja estabelecida, foram destituídos de suas igrejas e perseguidos por um edito de Constantino.[6] Então em 325, o primeiro conselho de igreja geral, o Concílio de Nicéia, foi convocado por Agostinho para tratar da controvérsia Ariana. Nada confirma o lamentável estado da Igreja mais do que a convocação do conselho pelo Estado, pois não apenas Constantino se colocou contra Ário (256-336), mas ele defendeu a supressão de seus escritos nos termos mais ásperos:

Se qualquer estudo composto por Ário for descoberto, que seja atirado às chamas, a fim de que, não somente sua doutrina corrompida possa ser suprimida, mas também que nenhuma memória dele possa ser de alguma maneira preservada. Por isso decreto que, se qualquer um for encontrado ocultando um livro compilado por Árius, e instantaneamente não entregar para ser queimado, a pena por esta ofensa será a morte.[7]

Constantino foi cruel em sua perseguição aos “heréticos.” Ele proibiu aqueles que estavam fora da igreja católica de se reunirem, pública ou privadamente, e confiscou suas propriedades.[8] Assim, as próprias coisas que os cristãos tinham sofrido estavam agora sendo praticadas em nome do Cristianismo.

Perto da morte, Constantino finalmente pediu que fosse batizado. Ele se referia ao batismo como “a salvação de Deus,” “aquele selo que confere imortalidade,” e “o selo da salvação.”[9] Crendo na regeneração batismal, ele adiou o batismo até próximo da morte para que obtivesse perdão de seus pecados passados e não tivesse a chance de pecar mais. Ele morreu logo depois e foi colocado em um caixão de ouro e levado à cidade a qual foi dada o nome em sua homenagem: Constantinopla. Apesar dos louvores dados a ele por Eusébio, Constantino foi responsável por colocar a base de um dos maiores erros a contaminar a Igreja: a união da Igreja e do Estado. Ainda que Constantino foi instrumental nas mortes de sua mulher, neto, e filho,[10] F. F. Bruce (1910-1990) ainda sustenta que “não há nenhuma razão para duvidar da genuinidade da aceitação do Cristianismo por Constantino, apesar de seus ataques bárbaros que desfigura o registro de seu reino de tempos em tempos.”[11] O historiador Andrew Miller (1810-1883), entretanto, é provavelmente mais preciso em sua avaliação: “Um Salvador crucificado, verdadeira conversão, justificação pela fé apenas, separação do mundo, nunca foram temas conhecidos por Constantino.”[12]

O que Constantino começou, o imperador Teodósio (reinou de 379-395) terminou. Depois da morte de Constantino, e a subseqüente divisão do império entre seus filhos, leis foram transmitidas contra os sacrifícios pagãos e os templos pagãos foram pilhados.[13] Isto teve o efeito de trazer muitos pagãos não regenerados para a Igreja. A primeira tarefa para Teodósio foi divulgar um edito que declarava para todos os súditos que eles “firmemente aderissem à religião que foi ensinada por São Pedro aos romanos, que tem sido fielmente preservada pela tradição.”[14] Ele mais tarde ordenou que “os partidários desta fé fossem chamados cristãos católicos,” e proibiu, sob pena pesada, que “heréticos” se reunissem em suas igrejas.[15] Teodósio, como Constantino, também convocou um conselho eclesiástico ecumênico. O Primeiro Concílio de Constantinopla, que Teodósio convocou em 381, reafirmou o credo niceno como a única fé ortodoxa e condenou todas as “heresias.”[16] Em 391 o Cristianismo se tornou na prática a religião oficial e também todas as formas de adoração pagã foram proibidas.[17] Mas apenas o que o imperador julgou ser Cristianismo ortodoxo foi aceito. Os “heréticos” cristãos foram proibidos de se reunirem, dar intrução de sua fé, e praticar a ordenação.[18] Muitos foram ameaçados com multas, confisco de suas propriedades, banimento, e morte.[19] Conseqüentemente, embora o Cristianismo era a religião “oficial,” verdadeiros cristãos, como eles fizeram quando o paganismo estava na ascendência, foram obrigados a tornarem-se clandestinos.

Os resultados dos editos e decretos imperiais e a aliança profana da Igreja com o Estado tem sido admiravelmente resumida pelo historiador William Jones (1762-1846):

As Escrituras agora não eram mais o padrão da fé cristã. O que era ortodoxo, e o que era heterodoxo, era, daqui em diante, determinado pelas decisões dos pais e conselhos; e a religião se propagou, não pelos métodos apostólicos de persuasão, acompanhado da submissão e docilidade de Cristo, mas por editos e decretos imperiais; nem foram os opositores levados ao convencimento pelas singelas armas da razão e da escritura, mas perseguidos e destruídos.[20]

Assim foi a triste condição da Igreja oficial na época em que Agostinho começou a exercer sua influência perto do fim do quarto século.

[1] Tertullian Apology 50.
[2] Eusebius, The Life of Constantine 1.28.
[3] Ibid., 1.29.
[4] Eusebius Church History 10.5.
[5] Schaff, History, vol. 3, p. 31; A. H. Newman, A Manual of Church History (Valley Forge: Judson Press, 1933), vol. 1, pp. 306-307.
[6] Michael Grant, Constantine the Great (Nova York: Charles Scribner’s Sons, 1993), p. 166.
[7] Socrates Scholasticus Ecclesiastical History 1.9.
[8] Eusebius The Life of Constantine 3.65.
[9] Ibid., 3.62.
[10] Will Durant, Caesar and Christ (Nova York: Simon e Schuster, 1972), p. 663.
[11] Bruce, The Spreading Flame, p. 298.
[12] Andrew Muller, Miller’s Church History (Grand Rapids: Zondervan Publising House, n.d.), p. 194.
[13] Schaff, History, vol. 3, p. 38.
[14] Ibid., p. 142.
[15] Ibid.
[16] Salaminius Sozomen Ecclesiastical History 7.9.
[17] Schaff, History, vol. 3, pp. 63-64.
[18] Salaminius Sozomen Ecclesiastical History 7.12.
[19] Schaff, History, vol. 3, p. 142.
[20] William Jones, The History of the Christian Church, 5a ed. (Gallatin: Church History Research and Archives, 1983), vol. 1, p. 306.

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