Laurence M. Vance - O Outro Lado do Calvinismo
A Teologia de Calvino
Além da falha de Calvino de corretamente interpretar o Novo Testamento quanto à relação entre a Igreja e o Estado e a perseguição de “héreticos,” há outros elementos em sua teologia que são importantes examinar. Como Agostinho, Calvino não está imune a crítica só porque foi um grande reformador e escreveu volumes de material teológico. Além disso, uma investigação teológica é especialmente pertinente no caso de Calvino por causa do grande teólogo que os calvinistas fazem-no ser. Em seu dia, Melanchthon chamou Calvino de “o teólogo.”[1] Mais recentemente somos informados:
Possivelmente nenhum teólogo na história tem tão bem combinado os poderes da exegese bíblica, do pensamento claro e lógico, da expressão literária, e da preocupação pastoral em uma personalidade poderosamente integrada.[2]
A primeira posição entre os intérpretes da época é merecidamente atribuída a João Calvino, que empreendeu comentar aproximadamente a totalidade do sagrado livro.[3]
O que João Calvino tem a dizer pode contribuir significativamente para o pensamento cristão contemporâneo.[4]
Foi ele que deu ao movimento evangélico uma teologia.[5]
Nem todos os calvinistas, entretanto, mantêm elevadas opiniões como estas, pois como Wendel admite: “Mas, às vezes, pelo bem da coerência lógica ou da ligação a posições dogmáticas pré-estabelecidas, ele também fez violência aos textos bíblicos. Seu princípio de autoridade escriturística então o levou a buscar as Escrituras por apoio ilusório, por meio de interpretações puramente arbitrárias.”[6] Todavia, George alega que Calvino “apresentou mais claramente e mais habilidosamente do que qualquer um antes dele os elementos essenciais da teologia protestante.”[7] Esta sendo a opinião aceita, é para a teologia de Calvino que agora nos voltamos.
Apesar de suas diferenças, os reformadores foram unidos em uma coisa: aversão ao papado e ao sistema católico romano de relíquias, confissão auricular, missa, e monastérios. Lutero chamava o Papa de “o Anticristo” e disse que a igreja romana era a “igreja-prostituta do Diabo.”[8] Ele também queimou a bula papal de sua excomunhão.[9] Calvino foi, da mesma forma, incessante em sua denúncia do sistema papal, como Mosheim relata: “Poucas pessoas de sua época será comparável a Calvino pela diligência paciente, resolução e ódio da superstição romana.”[10] Calvino escreveu vários livros contra a Igreja Romana. Sua obra Reply to Sadoleto (1540) já foi mencionada. A obra Treatise on Relics de Calvino apareceu em 1543. Esta foi seguida em 1544 por uma outra obra intitulada On the Necessity of Reforming the Church. E finalmente, The Acts of the Council of Trent with the Antidote em 1547, em que ele diz sobre o Conselho: “Eu não mais perderei tempo expondo sua impudência. Mas, como todos podem ver, elas são piores do que inúteis; qualquer um que for sábio, no futuro, não tomará conhecimento de seus decretos e não estará indeciso sobre isto.”[11] Calvino, da mesma forma, chamou o Papa de “Anticristo.”[12] Não obstante, o erro de Calvino e os outros reformadores foi postular uma reforma ao invés de uma rejeição completa da Igreja Católica Romana. O determinante é inadvertidamente afirmado por Schaff: “Todos os reformadores nasceram, foram batizados, confirmados, e educados na histórica Igreja Católica. Eles nunca duvidaram da validade das ordenanças católicas, e rejeitaram a idéia do re-batismo.”[13]
Esta falha de Calvino de completamente rejeitar a Igreja Católica Romana e suas ordenanças tem adversamente afetado sua concepção da Igreja do Novo Testamento e suas ordenanças. O erro das crenças de Calvino sobre o papel do Estado nos negócios da Igreja e vice-versa já foi mencionado. Isto é até confirmado pelos calvinistas: “Ele não tinha nenhum conceito de uma separação entre religião e estado, ou de um magistrado não-cristão, ou de tolerância de múltiplas igrejas.”[14] E embora Calvino distinguia entre a igreja visível e a invisível porque ele acreditava “que a Sagrada Escritura fala da igreja de duas maneiras,”[15] o modo que ele explicou ambos os termos está contrário ao ensino da Bíblia sobre eclesiologia. A igreja invisível de Calvino era “aquela que está, na verdade, na presença de Deus, na qual ninguém é recebido senão aqueles que são filhos de Deus pela graça da adoção e membros verdadeiros do Cristo pela santificação do Espírito Santo.”[16] Mas nesta igreja “verdadeira” Calvino incluía “não somente os santos que vivem atualmente na terra, mas todos os eleitos desde a fundação do mundo.”[17] Assim, Calvino não fazia nenhuma distinção entre o Velho e o Novo Testamentos no que se refere à Igreja como o corpo de Cristo. Ele usou o conceito da eterna predestinação para promover a idéia de que a “verdadeira” igreja era conhecida somente a Deus.[18] O conceito de Calvino da igreja visível era, da mesma forma, deficiente. Ele afirmava como “as marcas distintivas da igreja” a “pregação da Palavra e a observância dos sacramentos”[19] antes que uma assembléia de crentes nascidos de novo onde estas coisas acontecem. Ele disse que deveríamos chamar a igreja de nossa “mãe” porque “não há outra forma de entrarmos para a vida senão que esta mãe nos conceba em seu ventre, dê-nos a luz, alimente-nos em seu peito, e, finalmente, a menos que ela nos mantenha sob seu cuidado e governo.”[20] Ele ainda acrescenta que “distante de seu seio, ninguém pode ter esperança de qualquer perdão dos pecados ou de qualquer salvação, como Isaías e Joel testificam.”[21] Assim como sua defesa de seu sistema de disciplina em Genebra e a execução de Servetus, os argumentos de Calvino são continuamente tirados do Velho Testamento ao invés do Novo. E como Wendel reconhece de Calvino: “A verdade nos compele a admitir francamente que, apesar de toda sua fidelidade à Bíblia, ele parece ter buscado as Escrituras mais freqüentemente por textos para apoiar uma doutrina aceita anteriormente, do que derivar a doutrina das Escrituras.”[22] O débito de Calvino a Agostinho por seus ensinos sobre eclesiologia tem sido reconhecido pelos calvinistas.[23] E não somente Calvino buscava refutar os anabatistas de seu dia sobre seu conceito de igreja, como Agostinho, ele também repreendeu os donatistas dos tempos antigos.[24]
Como mencionado na seção precedente, Calvino rejeitou os sete sacramentos dos católicos – reduzindo-os a apenas dois: o batismo e a Santa Ceia. Entretanto, ele ainda considerava-os que fossem sacramentos. Ele concordava com a definição de Agostinho de um sacramento mas procurava “dar uma afirmação mais completa” para expressá-lo “mais claramente.”[25] Ele também requeria para os sacramentos “o mesmo ofício que a Palavra de Deus.”[26] Calvino considerava que os sacramentos fossem “ajudas e meios para nossa incorporação em Jesus Cristo, ou, se já formos de seu corpo, para nos confirmar nele cada vez mais até que sejamos unidos completamente a ele mesmo na vida do céu.”[27] Mas ele concordava com Agostinho que os benefícios dos sacramentos somente cabiam aos “eleitos.”[28] Por causa de seu conceito de sacramento, os ensinos de Calvino sobre a Santa Ceia e o batismo exigem uma análise individual.
A princípio, a doutrina mais controversa não foi a predestinação mas a idéia de que o corpo de Cristo está espiritual e realmente, embora não fisicamente, presente nos elementos da Santa Ceia.[29] Esta doutrina foi um grande pomo de discórdia entre os reformadores. Pois embora eles estavam de acordo na questão da predestinação dos “eleitos,” eles vigorosamente diferiam em relação à natureza da Santa Ceia. Todos os reformadores rejeitaram a transubstanciação da missa católica romana. Mas Lutero não foi demovido de sua doutrina da consubstanciação, e Calvino de sua idéia de uma presença espiritual. Somente Zwínglio sustentava a correta concepção de um memorial, cuja concepção Calvino chamava de “falsa e perniciosa.”[30] Embora a teoria de Calvino da Santa Ceia seja primeiro mencionada na edição original de suas Institutas, ele estava principalmente preocupado em refutar a doutrina católica romana da missa.[31] Mas na edição final de suas Institutas em 1559, Calvino dedica um capítulo inteiro tanto aos erros da missa romana quanto ao que ele entendia ser uma doutrina escriturística da Santa Ceia. Além de mostrada em suas Institutas, a concepção de Calvino da Santa Ceia foi também exposta em vários estudos teológicos.[32]
Há, antes de mais nada, três coisas elogiáveis sobre a doutrina de Calvino da Santa Ceia. Primeiro é sua opinião da missa católica romana. Da missa Calvino disse: “Nela uma intolerável blasfêmia e desonra é infligida sobre Cristo.”[33] Em segundo lugar, ele fortemente denunciava a adoração da hóstia. Ele chamou de “idolatria,” e declarou que “aqueles que inventaram a adoração do Sacramento” têm “imaginado por si mesmos à parte das Escrituras, onde nenhuma menção dela pode ser mostrada.”[34] E em terceiro lugar, Calvino se opunha à negação do cálice. Ele observou que esta prática católica era “tão estranha à Palavra de Deus.”[35] Mas em um aspecto ele se aproximou da concepção dos católicos, pois Calvino desejava a freqüente administração da Santa Ceia “pelo menos uma vez na semana.”[36] Entretanto, ele estava disposto a se conformar com a comunhão uma vez no mês.[37] Todavia, as autoridades de Genebra deram ordens para que ela devesse ser celebrada quatro vezes ao ano: Natal, Páscoa, Pentecostes, e o primeiro domingo de setembro.[38]
A verdadeira concepção de Calvino da Santa Ceia era, de acordo com o teólogo presbiteriano Dabney: “Não somente incompreensível, mas impossível.”[39] O próprio Calvino disse:
Os símbolos são pão e vinho, que representam para nós a comida invisível que recebemos da carne e do sangue de Cristo.[40]
Essa sagrada participação de sua carne e sangue, pelos quais Cristo derrama sua vida sobre nós, como se penetrassem em nossos ossos e medula, ele também testifica e sela na Ceia.[41]
Nossas almas são alimentadas pela carne e pelo sangue de Cristo da mesma maneira que esse pão e vinho mantêm e sustenta a vida física.[42]
Agora, se alguém me perguntar como isto acontece, eu não me envergonharei de confessar que é um segredo elevado demais para minha mente compreender ou minhas palavras expressarem. E, falando mais claramente, eu antes a conheço por experiência do que a compreendo.[43]
A doutrina de Calvino da Santa Ceia é resumida pelo teólogo reformado Berkhof como:
Ele crê que Cristo, embora não corporal nem localmente presente na Ceia, está, contudo, presente, e é desfrutado em Sua pessoa completa, corpo e sangue. Ele dá ênfase à união mística dos crentes com a pessoa completa do Redentor. Sua apresentação do assunto não é inteiramente clara, mas ele parece querer dizer que o corpo e o sangue de Cristo, embora ausentes e localmente presentes só no céu, comunicam uma influência vivificante ao crente, quando ele está no ato de receber os elementos. Essa influência, apesar de real, não é física, mas, sim, espiritual e mística, e mediada pelo Espírito Santo e está condicionada ao ato de fé pelo qual o comungante recebe simbolicamente o corpo e o sangue de Cristo.[44]
Mas Dabney e Berkhof não são os únicos calvinistas que crêem que Calvino foi obscuro, pois Wendel comenta que “qualquer que possa ser o valor dos argumentos que Calvino apresenta para justificar sua particular interpretação da eucaristia, devemos reconhecer que sua doutrina deixa alguém com muitas obscuridades, somente imperfeitamente mascarada por uma exegese que é um tanto peculiar, e pelo apelo ao mistério.”[45] Calvino lastima aqueles “que definem o comer da carne de Cristo e o beber de seu sangue como, em uma palavra, nada senão crer em Cristo” porque lhe parece “que Cristo pretendia ensinar algo mais definido, e mais elevado, nesse nobre discurso em que ele nos recomenda comer de sua carne.”[46] Desse modo, Berkhof admite novamente: “Às vezes parece que dá demasiada ênfase ao corpo e ao sangue literais.”[47] Os calvinistas até admitem que Calvino confiava intensamente em Agostinho para sua concepção da Santa Ceia.[48] Assim, como aludido anteriormente, a doutrina de Calvino da Santa Ceia está intrinsecamente ligada ao seu conceito de um sacramento, como Wendel observa: “Quanto a Agostinho, sua influência sobre este ponto é apenas um aspecto de sua influência mais geral por toda a doutrina calvinista dos sacramentos.”[49] E é esta influência que também afeta seu ensino sobre o batismo.
Ainda que ele mantinha que o batismo não era essencial à salvação,[50] Calvino atribuía muita significância ao rito e freqüentemente fazia declarações que levaria alguém a pensar que ele acreditava de outra forma. Ele dedicou dois capítulos de suas Institutas ao assunto. De acordo com Calvino:
O batismo é o símbolo da iniciação pelo qual somos recebidos na sociedade da igreja, a fim de que, enxertados em Cristo, possamos ser contados entre os filhos de Deus. Agora o batismo foi dado a nós por Deus para estes fins (que eu tenho ensinado ser comum a todos os sacramentos): primeiro, servir de nossa fé diante dele; segundo, servir de nossa confissão diante dos homens. Trataremos na ordem as razões para cada aspecto de sua instituição. O batismo traz três coisas à nossa fé com que devemos lidar individualmente. A primeira coisa que o Senhor demonstrou para nós é que o batismo deve ser um sinal ou prova de nossa purificação; ou (melhor explicando o que quero dizer) é como um documento selado que nos confirma que todos os nossos pecados são abolidos, cancelados e apagados, que eles nunca podem vir à sua vista, ser lembrados, ou acusados contra nós. Pois ele deseja que todos os que crêem sejam batizados para a remissão dos pecados.[51]
Calvino menosprezava aqueles “que consideravam o batismo como nada senão um símbolo e sinal pelo qual confessamos nossa religião diante dos homens.”[52] Ele ligava o batismo à salvação,[53] ao perdão dos pecados,[54] à regeneração,[55] e à segurança.[56] Ele também alegava que o batismo não era somente análogo à circuncisão, mas “substituiu a circuncisão.”[57] Entretanto, ele nunca menciona o assunto do batismo das mulheres.
Por causa de sua concepção do significado do batismo, Calvino defendia o batismo dos infantes – até alegando que o batismo infantil descansa “sobre firme aprovação das Escrituras.”[58] De fato, aqueles que se opunham a ele sobre o assunto eram “espíritos desvairados” e “bestas loucas.”[59] Deus “irá descarregar sua vingança sobre qualquer um que desprezar assinalar seu filho com o símbolo da aliança.”[60] Embora ele rejeitava a tese de Agostinho de que as crianças não batizadas iam para o limbo,[61] Calvino dizia que “os infantes são batizados para futuro arrependimento e fé, e ainda que estes ainda não tenham sido formados neles, a semente de ambos jazem escondidas dentro deles pela operação secreta do Espírito.”[62] Além de seu apelo à circuncisão, Calvino empregava principalmente três textos para provar o batismo infantil:
Porque o marido incrédulo é santificado pela mulher, e a mulher incrédula é santificada pelo marido crente; de outro modo, os vossos filhos seriam imundos; mas agora são santos (1Co 7.14).[63]
Jesus, porém, disse: Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, porque de tais é o reino dos céus (Mt 19.14).[64]
Porque a promessa vos pertence a vós, a vossos filhos, e a todos os que estão longe: a quantos o Senhor nosso Deus chamar (At 2.39).[65]
Todavia, como Wendel diz de Calvino:
Visto que não era possível a ele apresentar uma única passagem do Novo Testamento contendo uma clara alusão ao batismo infantil, ele teve que se contentar com inferências indiretas e analogias tiradas da circuncisão e a benção de Cristo das crianças. Calvino tem sido muito repreendido pela fraqueza deste raciocínio, em contraste com os mais rigorosos métodos exegéticos que ele usualmente empregou, pelo menos ao lidar com o texto do Novo Testamento: e ele mesmo parece ter estado ciente das falhas de sua exegese sobre este ponto.[66]
Sobre o modo do batismo, Calvino estava igualmente equivocado.
Como seus companheiros reformadores, Calvino não somente batizava infantes, como também vertia água sobre eles. E isto apesar do fato de que em suas Institutas ele admite a imersão como o modo correto: “Mas se a pessoa a ser batizada deve ser completamente imersa, e se três ou uma vez, se deve somente verter água sobre ela – estes detalhes não têm importância, mas devem ser opcionais para as igrejas de acordo com a diversidade dos países. A palavra batizar quer dizer imergir, e é claro que o rito da imersão foi observado nas igrejas primitivas.”[67] E não somente a imersão foi observada nas igrejas primitivas, foi o modo prevalecente na Inglaterra no tempo de Calvino e continuou a ser assim até o reino da Rainha Elizabeth I (1533-1603).[68]
Considerando o maior evento na Bíblia no que se refere a Deus – o reino milenar de Jesus Cristo – Calvino assume a posição amilenista dos católicos romanos. Mas porque ele fez declarações em seus comentários que poderiam ser consideradas pós-milenistas, ele é algumas vezes reivindicado tanto pelos defensores do amilenismo quanto pelos do pós-milenismo.[69] Ele foi completamente contra qualquer conceito de um reino terreno de Cristo de mil anos literais:
Mas um pouco adiante seguiam os chiliasts, que limitavam o reino de Cristo a mil anos. Agora sua ficção é ingênua demais para necessitar ou valer a pena uma refutação. E o Apocalipse, do qual eles indubitavelmente tiraram um pretexto para seu erro, não os apóia. Pois o número “mil” não aplica à bem-aventurança eterna da igreja mas somente às várias turbações que esperavam a igreja, enquanto ainda trabalhando na terra.[70]
Lutero, de uma maneira semelhante, chamava o reino terreno de Cristo “um sonho.”[71] Visto que Calvino acreditava que o reino de Cristo começava em sua primeira vinda,[72] ele sentia que aqueles que criam num milênio literal “não percebem quanto opróbrio eles estão lançando sobre Cristo e seu Reino.”[73] E ainda que o ensino do amilenismo seja construído sobre uma interpretação alegórica da Escritura, Boettner mantém que “Calvino foi o primeiro a rejeitar o costume de alegorizar as Escrituras.”[74]
Calvino é obviamente melhor lembrado por sua doutrina da predestinação. Todavia os calvinistas são insistentes em dizer que a predestinação não foi o principal foco de Calvino:
Esta não foi a principal doutrina de Calvino nem foi seu ponto de partida.[75]
Embora alguns estudiosos tenham sugerido que a predestinação constitui o centro do pensamento de Calvino, é claro que este não é o caso.[76]
Contrário à disputa de muitos historiadores, Calvino não coloca ênfase ímpar na doutrina da Predestinação.[77]
McGrath insiste que “outros têm lido em seus escritos a preocupação particular dentro da posterior ortodoxia reformada pela predestinação.”[78] H. Henry Meeter (1886-1963) alega que “foi somente quando a doutrina bíblica da predestinação foi atacada” que Calvino “se sentiu obrigado a vir em sua defesa.”[79] Bratt menciona o que ele percebe como a cobertura limitada da predestinação nas edições das Institutas de Calvino: “A doutrina não é mencionada na primeira edição das Institutas. Ele a menciona primeiro na edição de 1539 e depois somente incidentalmente. Ela assume proeminência em edições posteriores.”[80]
Outros calvinistas, entretanto, discordam desta conclusão: “Na segunda edição das Institutas, o que Calvino acrescentou às suas discussões da predestinação foi em sua maior parte uma defesa, na qual a doutrina da dupla predestinação foi fortemente enfatizada porque foi sobre este ponto que a oposição foi maior.”[81] McGrath afirma que “da edição de 1539 em diante, é tratada como um tópico de devida importância.”[82] Um contemporâneo de Calvino, o teólogo holandês católico romano Albert Pighius (c. 1490-1542) discordaria também. Após a publicação em 1539 da segunda edição das Institutas de Calvino, Pighius escreveu uma resposta a Calvino intitulada Ten Books on Human Free Choice and Divine Grace.[83] Ele viu o livro publicado em agosto de 1542 mas morreu logo depois.[84] Todavia, Calvino respondeu aos primeiros seis livros de Pighius em sua obra de 1543 A Defense of the Sound and Orthodox Doctrine of the Bondage and Liberation of the Human Choice Against the Misrepresentations of Albert Pighius of Kampen.[85] Em 1552 Calvino terminou sua resposta a Pighius (a quem ele chama de um “cão morto”[86]) em sua obra Concerning the Eternal Predestination of God.[87]
O fato ainda permanece: Calvino está intrinsecamente ligado à doutrina da predestinação. O fato que no começo de seu ministério ele não tenha enfatizado não é importante. A doutrina é firmemente estabelecida como uma das fundações do pensamento teológico desenvolvido de Calvino. E como a maioria de seus outros escritos, os calvinistas admitem que Calvino foi fortemente influenciado por Agostinho na formação de sua doutrina da predestinação.[88] A oposição à doutrina da predestinação de Calvino por Bolsec e Trolliet já foi mencionada. Um outro que se opôs a Calvino com os mesmos argumentos foi Sebastian Castellio (1515-1563). Seu ataques sobre a doutrina da predestinação de Calvino fez com que Calvino escrevesse ainda uma outra defesa da predestinação em 1558 contra “um certo caluniador desprezível”:[89] A Defense of the Secret Providence of God.[90] Castellio foi um dos poucos defensores sinceros da tolerância religiosa nesta época na história. Após a morte de Servetus, a quem ele chamava de um “inocente assassinado,”[91] Castellio escreveu um estudo condenando a execução e implorando por tolerância.[92] Ele também escreveu uma obra contra Calvino em 1554, mas não foi publicada até que ambos, Calvino e Castellio, estivessem há muito mortos.[93] Durante a vida de Calvino, uma coleção de seu sermões sobre a eleição de Jacó e a reprovação de Esaú também foi publicada.[94]
A ênfase de Calvino sobre a doutrina da predestinação foi causa de muita controvérsia. Foi por causar muitos problemas que os ministros da cidade vizinha de Berna requisitaram de Genebra, em 7 de dezembro de 1551, uma “interrupção da discussão” da questão da predestinação em prol da “tranquilidade e paz da igreja.”[95] O companheiro reformador de Calvino, Bullinger, até escreveu a ele: “Acredite em mim, muitos estão descontentes com o que você diz em suas Institutas sobre a predestinação.”[96] Paul Jewett mantém que Beza “achou necessário passar mais tempo defendendo a doutrina da predestinação de Calvino do que qualquer outra coisa.”[97] Visto que já é aparente que Calvino foi um “calvinista,” um completo tratamento de sua doutrina da predestinação será dada no capítulo 7 e em outros lugares onde doutrinas relacionadas surgirem.
Como anteriormente mencionado nas seções sobre Calvino e Genebra e Calvino e Servetus, e até mais em relação à sua teologia, Calvino é inexcusável quando se desvia da Escritura sobre qualquer assunto. Não é apenas que os calvinistas estabelecem Calvino como um grande teólogo, ele é regularmente enaltecido como um dos maiores teólogos. Um exemplo típico é Warfield: “Ele foi distintamente um teólogo bíblico, ou, vamos ser francos, por eminência o teólogo bíblico de sua época. Aonde a Bíblia o levava, era para lá que ele ia: onde as declarações escriturísticas o enfraquecia, ali ele parava repentinamente.”[98] Então, quaisquer que sejam os costumes, tradições, e preconceitos de sua época; qualquer que seja o conhecimento que ele tinha dos escritos dos Pais da Igreja ou seus companheiros reformadores que possam ter sido influências; quaisquer que sejam as más experiências que ele pode ter tido antes de sua conversão; por mais que ele tenha sido falsamente caluniado, ridicularizado, e mal compreendido pelos cristãos: o outro lado de João Calvino não está somente manchado, está repleto de notáveis afastamentos das Escrituras – como reconhecido pelos próprios calvinistas.[99] Mas e quanto ao seu correspondente, James Arminius?
Possivelmente nenhum teólogo na história tem tão bem combinado os poderes da exegese bíblica, do pensamento claro e lógico, da expressão literária, e da preocupação pastoral em uma personalidade poderosamente integrada.[2]
A primeira posição entre os intérpretes da época é merecidamente atribuída a João Calvino, que empreendeu comentar aproximadamente a totalidade do sagrado livro.[3]
O que João Calvino tem a dizer pode contribuir significativamente para o pensamento cristão contemporâneo.[4]
Foi ele que deu ao movimento evangélico uma teologia.[5]
Nem todos os calvinistas, entretanto, mantêm elevadas opiniões como estas, pois como Wendel admite: “Mas, às vezes, pelo bem da coerência lógica ou da ligação a posições dogmáticas pré-estabelecidas, ele também fez violência aos textos bíblicos. Seu princípio de autoridade escriturística então o levou a buscar as Escrituras por apoio ilusório, por meio de interpretações puramente arbitrárias.”[6] Todavia, George alega que Calvino “apresentou mais claramente e mais habilidosamente do que qualquer um antes dele os elementos essenciais da teologia protestante.”[7] Esta sendo a opinião aceita, é para a teologia de Calvino que agora nos voltamos.
Apesar de suas diferenças, os reformadores foram unidos em uma coisa: aversão ao papado e ao sistema católico romano de relíquias, confissão auricular, missa, e monastérios. Lutero chamava o Papa de “o Anticristo” e disse que a igreja romana era a “igreja-prostituta do Diabo.”[8] Ele também queimou a bula papal de sua excomunhão.[9] Calvino foi, da mesma forma, incessante em sua denúncia do sistema papal, como Mosheim relata: “Poucas pessoas de sua época será comparável a Calvino pela diligência paciente, resolução e ódio da superstição romana.”[10] Calvino escreveu vários livros contra a Igreja Romana. Sua obra Reply to Sadoleto (1540) já foi mencionada. A obra Treatise on Relics de Calvino apareceu em 1543. Esta foi seguida em 1544 por uma outra obra intitulada On the Necessity of Reforming the Church. E finalmente, The Acts of the Council of Trent with the Antidote em 1547, em que ele diz sobre o Conselho: “Eu não mais perderei tempo expondo sua impudência. Mas, como todos podem ver, elas são piores do que inúteis; qualquer um que for sábio, no futuro, não tomará conhecimento de seus decretos e não estará indeciso sobre isto.”[11] Calvino, da mesma forma, chamou o Papa de “Anticristo.”[12] Não obstante, o erro de Calvino e os outros reformadores foi postular uma reforma ao invés de uma rejeição completa da Igreja Católica Romana. O determinante é inadvertidamente afirmado por Schaff: “Todos os reformadores nasceram, foram batizados, confirmados, e educados na histórica Igreja Católica. Eles nunca duvidaram da validade das ordenanças católicas, e rejeitaram a idéia do re-batismo.”[13]
Esta falha de Calvino de completamente rejeitar a Igreja Católica Romana e suas ordenanças tem adversamente afetado sua concepção da Igreja do Novo Testamento e suas ordenanças. O erro das crenças de Calvino sobre o papel do Estado nos negócios da Igreja e vice-versa já foi mencionado. Isto é até confirmado pelos calvinistas: “Ele não tinha nenhum conceito de uma separação entre religião e estado, ou de um magistrado não-cristão, ou de tolerância de múltiplas igrejas.”[14] E embora Calvino distinguia entre a igreja visível e a invisível porque ele acreditava “que a Sagrada Escritura fala da igreja de duas maneiras,”[15] o modo que ele explicou ambos os termos está contrário ao ensino da Bíblia sobre eclesiologia. A igreja invisível de Calvino era “aquela que está, na verdade, na presença de Deus, na qual ninguém é recebido senão aqueles que são filhos de Deus pela graça da adoção e membros verdadeiros do Cristo pela santificação do Espírito Santo.”[16] Mas nesta igreja “verdadeira” Calvino incluía “não somente os santos que vivem atualmente na terra, mas todos os eleitos desde a fundação do mundo.”[17] Assim, Calvino não fazia nenhuma distinção entre o Velho e o Novo Testamentos no que se refere à Igreja como o corpo de Cristo. Ele usou o conceito da eterna predestinação para promover a idéia de que a “verdadeira” igreja era conhecida somente a Deus.[18] O conceito de Calvino da igreja visível era, da mesma forma, deficiente. Ele afirmava como “as marcas distintivas da igreja” a “pregação da Palavra e a observância dos sacramentos”[19] antes que uma assembléia de crentes nascidos de novo onde estas coisas acontecem. Ele disse que deveríamos chamar a igreja de nossa “mãe” porque “não há outra forma de entrarmos para a vida senão que esta mãe nos conceba em seu ventre, dê-nos a luz, alimente-nos em seu peito, e, finalmente, a menos que ela nos mantenha sob seu cuidado e governo.”[20] Ele ainda acrescenta que “distante de seu seio, ninguém pode ter esperança de qualquer perdão dos pecados ou de qualquer salvação, como Isaías e Joel testificam.”[21] Assim como sua defesa de seu sistema de disciplina em Genebra e a execução de Servetus, os argumentos de Calvino são continuamente tirados do Velho Testamento ao invés do Novo. E como Wendel reconhece de Calvino: “A verdade nos compele a admitir francamente que, apesar de toda sua fidelidade à Bíblia, ele parece ter buscado as Escrituras mais freqüentemente por textos para apoiar uma doutrina aceita anteriormente, do que derivar a doutrina das Escrituras.”[22] O débito de Calvino a Agostinho por seus ensinos sobre eclesiologia tem sido reconhecido pelos calvinistas.[23] E não somente Calvino buscava refutar os anabatistas de seu dia sobre seu conceito de igreja, como Agostinho, ele também repreendeu os donatistas dos tempos antigos.[24]
Como mencionado na seção precedente, Calvino rejeitou os sete sacramentos dos católicos – reduzindo-os a apenas dois: o batismo e a Santa Ceia. Entretanto, ele ainda considerava-os que fossem sacramentos. Ele concordava com a definição de Agostinho de um sacramento mas procurava “dar uma afirmação mais completa” para expressá-lo “mais claramente.”[25] Ele também requeria para os sacramentos “o mesmo ofício que a Palavra de Deus.”[26] Calvino considerava que os sacramentos fossem “ajudas e meios para nossa incorporação em Jesus Cristo, ou, se já formos de seu corpo, para nos confirmar nele cada vez mais até que sejamos unidos completamente a ele mesmo na vida do céu.”[27] Mas ele concordava com Agostinho que os benefícios dos sacramentos somente cabiam aos “eleitos.”[28] Por causa de seu conceito de sacramento, os ensinos de Calvino sobre a Santa Ceia e o batismo exigem uma análise individual.
A princípio, a doutrina mais controversa não foi a predestinação mas a idéia de que o corpo de Cristo está espiritual e realmente, embora não fisicamente, presente nos elementos da Santa Ceia.[29] Esta doutrina foi um grande pomo de discórdia entre os reformadores. Pois embora eles estavam de acordo na questão da predestinação dos “eleitos,” eles vigorosamente diferiam em relação à natureza da Santa Ceia. Todos os reformadores rejeitaram a transubstanciação da missa católica romana. Mas Lutero não foi demovido de sua doutrina da consubstanciação, e Calvino de sua idéia de uma presença espiritual. Somente Zwínglio sustentava a correta concepção de um memorial, cuja concepção Calvino chamava de “falsa e perniciosa.”[30] Embora a teoria de Calvino da Santa Ceia seja primeiro mencionada na edição original de suas Institutas, ele estava principalmente preocupado em refutar a doutrina católica romana da missa.[31] Mas na edição final de suas Institutas em 1559, Calvino dedica um capítulo inteiro tanto aos erros da missa romana quanto ao que ele entendia ser uma doutrina escriturística da Santa Ceia. Além de mostrada em suas Institutas, a concepção de Calvino da Santa Ceia foi também exposta em vários estudos teológicos.[32]
Há, antes de mais nada, três coisas elogiáveis sobre a doutrina de Calvino da Santa Ceia. Primeiro é sua opinião da missa católica romana. Da missa Calvino disse: “Nela uma intolerável blasfêmia e desonra é infligida sobre Cristo.”[33] Em segundo lugar, ele fortemente denunciava a adoração da hóstia. Ele chamou de “idolatria,” e declarou que “aqueles que inventaram a adoração do Sacramento” têm “imaginado por si mesmos à parte das Escrituras, onde nenhuma menção dela pode ser mostrada.”[34] E em terceiro lugar, Calvino se opunha à negação do cálice. Ele observou que esta prática católica era “tão estranha à Palavra de Deus.”[35] Mas em um aspecto ele se aproximou da concepção dos católicos, pois Calvino desejava a freqüente administração da Santa Ceia “pelo menos uma vez na semana.”[36] Entretanto, ele estava disposto a se conformar com a comunhão uma vez no mês.[37] Todavia, as autoridades de Genebra deram ordens para que ela devesse ser celebrada quatro vezes ao ano: Natal, Páscoa, Pentecostes, e o primeiro domingo de setembro.[38]
A verdadeira concepção de Calvino da Santa Ceia era, de acordo com o teólogo presbiteriano Dabney: “Não somente incompreensível, mas impossível.”[39] O próprio Calvino disse:
Os símbolos são pão e vinho, que representam para nós a comida invisível que recebemos da carne e do sangue de Cristo.[40]
Essa sagrada participação de sua carne e sangue, pelos quais Cristo derrama sua vida sobre nós, como se penetrassem em nossos ossos e medula, ele também testifica e sela na Ceia.[41]
Nossas almas são alimentadas pela carne e pelo sangue de Cristo da mesma maneira que esse pão e vinho mantêm e sustenta a vida física.[42]
Agora, se alguém me perguntar como isto acontece, eu não me envergonharei de confessar que é um segredo elevado demais para minha mente compreender ou minhas palavras expressarem. E, falando mais claramente, eu antes a conheço por experiência do que a compreendo.[43]
A doutrina de Calvino da Santa Ceia é resumida pelo teólogo reformado Berkhof como:
Ele crê que Cristo, embora não corporal nem localmente presente na Ceia, está, contudo, presente, e é desfrutado em Sua pessoa completa, corpo e sangue. Ele dá ênfase à união mística dos crentes com a pessoa completa do Redentor. Sua apresentação do assunto não é inteiramente clara, mas ele parece querer dizer que o corpo e o sangue de Cristo, embora ausentes e localmente presentes só no céu, comunicam uma influência vivificante ao crente, quando ele está no ato de receber os elementos. Essa influência, apesar de real, não é física, mas, sim, espiritual e mística, e mediada pelo Espírito Santo e está condicionada ao ato de fé pelo qual o comungante recebe simbolicamente o corpo e o sangue de Cristo.[44]
Mas Dabney e Berkhof não são os únicos calvinistas que crêem que Calvino foi obscuro, pois Wendel comenta que “qualquer que possa ser o valor dos argumentos que Calvino apresenta para justificar sua particular interpretação da eucaristia, devemos reconhecer que sua doutrina deixa alguém com muitas obscuridades, somente imperfeitamente mascarada por uma exegese que é um tanto peculiar, e pelo apelo ao mistério.”[45] Calvino lastima aqueles “que definem o comer da carne de Cristo e o beber de seu sangue como, em uma palavra, nada senão crer em Cristo” porque lhe parece “que Cristo pretendia ensinar algo mais definido, e mais elevado, nesse nobre discurso em que ele nos recomenda comer de sua carne.”[46] Desse modo, Berkhof admite novamente: “Às vezes parece que dá demasiada ênfase ao corpo e ao sangue literais.”[47] Os calvinistas até admitem que Calvino confiava intensamente em Agostinho para sua concepção da Santa Ceia.[48] Assim, como aludido anteriormente, a doutrina de Calvino da Santa Ceia está intrinsecamente ligada ao seu conceito de um sacramento, como Wendel observa: “Quanto a Agostinho, sua influência sobre este ponto é apenas um aspecto de sua influência mais geral por toda a doutrina calvinista dos sacramentos.”[49] E é esta influência que também afeta seu ensino sobre o batismo.
Ainda que ele mantinha que o batismo não era essencial à salvação,[50] Calvino atribuía muita significância ao rito e freqüentemente fazia declarações que levaria alguém a pensar que ele acreditava de outra forma. Ele dedicou dois capítulos de suas Institutas ao assunto. De acordo com Calvino:
O batismo é o símbolo da iniciação pelo qual somos recebidos na sociedade da igreja, a fim de que, enxertados em Cristo, possamos ser contados entre os filhos de Deus. Agora o batismo foi dado a nós por Deus para estes fins (que eu tenho ensinado ser comum a todos os sacramentos): primeiro, servir de nossa fé diante dele; segundo, servir de nossa confissão diante dos homens. Trataremos na ordem as razões para cada aspecto de sua instituição. O batismo traz três coisas à nossa fé com que devemos lidar individualmente. A primeira coisa que o Senhor demonstrou para nós é que o batismo deve ser um sinal ou prova de nossa purificação; ou (melhor explicando o que quero dizer) é como um documento selado que nos confirma que todos os nossos pecados são abolidos, cancelados e apagados, que eles nunca podem vir à sua vista, ser lembrados, ou acusados contra nós. Pois ele deseja que todos os que crêem sejam batizados para a remissão dos pecados.[51]
Calvino menosprezava aqueles “que consideravam o batismo como nada senão um símbolo e sinal pelo qual confessamos nossa religião diante dos homens.”[52] Ele ligava o batismo à salvação,[53] ao perdão dos pecados,[54] à regeneração,[55] e à segurança.[56] Ele também alegava que o batismo não era somente análogo à circuncisão, mas “substituiu a circuncisão.”[57] Entretanto, ele nunca menciona o assunto do batismo das mulheres.
Por causa de sua concepção do significado do batismo, Calvino defendia o batismo dos infantes – até alegando que o batismo infantil descansa “sobre firme aprovação das Escrituras.”[58] De fato, aqueles que se opunham a ele sobre o assunto eram “espíritos desvairados” e “bestas loucas.”[59] Deus “irá descarregar sua vingança sobre qualquer um que desprezar assinalar seu filho com o símbolo da aliança.”[60] Embora ele rejeitava a tese de Agostinho de que as crianças não batizadas iam para o limbo,[61] Calvino dizia que “os infantes são batizados para futuro arrependimento e fé, e ainda que estes ainda não tenham sido formados neles, a semente de ambos jazem escondidas dentro deles pela operação secreta do Espírito.”[62] Além de seu apelo à circuncisão, Calvino empregava principalmente três textos para provar o batismo infantil:
Porque o marido incrédulo é santificado pela mulher, e a mulher incrédula é santificada pelo marido crente; de outro modo, os vossos filhos seriam imundos; mas agora são santos (1Co 7.14).[63]
Jesus, porém, disse: Deixai as crianças e não as impeçais de virem a mim, porque de tais é o reino dos céus (Mt 19.14).[64]
Porque a promessa vos pertence a vós, a vossos filhos, e a todos os que estão longe: a quantos o Senhor nosso Deus chamar (At 2.39).[65]
Todavia, como Wendel diz de Calvino:
Visto que não era possível a ele apresentar uma única passagem do Novo Testamento contendo uma clara alusão ao batismo infantil, ele teve que se contentar com inferências indiretas e analogias tiradas da circuncisão e a benção de Cristo das crianças. Calvino tem sido muito repreendido pela fraqueza deste raciocínio, em contraste com os mais rigorosos métodos exegéticos que ele usualmente empregou, pelo menos ao lidar com o texto do Novo Testamento: e ele mesmo parece ter estado ciente das falhas de sua exegese sobre este ponto.[66]
Sobre o modo do batismo, Calvino estava igualmente equivocado.
Como seus companheiros reformadores, Calvino não somente batizava infantes, como também vertia água sobre eles. E isto apesar do fato de que em suas Institutas ele admite a imersão como o modo correto: “Mas se a pessoa a ser batizada deve ser completamente imersa, e se três ou uma vez, se deve somente verter água sobre ela – estes detalhes não têm importância, mas devem ser opcionais para as igrejas de acordo com a diversidade dos países. A palavra batizar quer dizer imergir, e é claro que o rito da imersão foi observado nas igrejas primitivas.”[67] E não somente a imersão foi observada nas igrejas primitivas, foi o modo prevalecente na Inglaterra no tempo de Calvino e continuou a ser assim até o reino da Rainha Elizabeth I (1533-1603).[68]
Considerando o maior evento na Bíblia no que se refere a Deus – o reino milenar de Jesus Cristo – Calvino assume a posição amilenista dos católicos romanos. Mas porque ele fez declarações em seus comentários que poderiam ser consideradas pós-milenistas, ele é algumas vezes reivindicado tanto pelos defensores do amilenismo quanto pelos do pós-milenismo.[69] Ele foi completamente contra qualquer conceito de um reino terreno de Cristo de mil anos literais:
Mas um pouco adiante seguiam os chiliasts, que limitavam o reino de Cristo a mil anos. Agora sua ficção é ingênua demais para necessitar ou valer a pena uma refutação. E o Apocalipse, do qual eles indubitavelmente tiraram um pretexto para seu erro, não os apóia. Pois o número “mil” não aplica à bem-aventurança eterna da igreja mas somente às várias turbações que esperavam a igreja, enquanto ainda trabalhando na terra.[70]
Lutero, de uma maneira semelhante, chamava o reino terreno de Cristo “um sonho.”[71] Visto que Calvino acreditava que o reino de Cristo começava em sua primeira vinda,[72] ele sentia que aqueles que criam num milênio literal “não percebem quanto opróbrio eles estão lançando sobre Cristo e seu Reino.”[73] E ainda que o ensino do amilenismo seja construído sobre uma interpretação alegórica da Escritura, Boettner mantém que “Calvino foi o primeiro a rejeitar o costume de alegorizar as Escrituras.”[74]
Calvino é obviamente melhor lembrado por sua doutrina da predestinação. Todavia os calvinistas são insistentes em dizer que a predestinação não foi o principal foco de Calvino:
Esta não foi a principal doutrina de Calvino nem foi seu ponto de partida.[75]
Embora alguns estudiosos tenham sugerido que a predestinação constitui o centro do pensamento de Calvino, é claro que este não é o caso.[76]
Contrário à disputa de muitos historiadores, Calvino não coloca ênfase ímpar na doutrina da Predestinação.[77]
McGrath insiste que “outros têm lido em seus escritos a preocupação particular dentro da posterior ortodoxia reformada pela predestinação.”[78] H. Henry Meeter (1886-1963) alega que “foi somente quando a doutrina bíblica da predestinação foi atacada” que Calvino “se sentiu obrigado a vir em sua defesa.”[79] Bratt menciona o que ele percebe como a cobertura limitada da predestinação nas edições das Institutas de Calvino: “A doutrina não é mencionada na primeira edição das Institutas. Ele a menciona primeiro na edição de 1539 e depois somente incidentalmente. Ela assume proeminência em edições posteriores.”[80]
Outros calvinistas, entretanto, discordam desta conclusão: “Na segunda edição das Institutas, o que Calvino acrescentou às suas discussões da predestinação foi em sua maior parte uma defesa, na qual a doutrina da dupla predestinação foi fortemente enfatizada porque foi sobre este ponto que a oposição foi maior.”[81] McGrath afirma que “da edição de 1539 em diante, é tratada como um tópico de devida importância.”[82] Um contemporâneo de Calvino, o teólogo holandês católico romano Albert Pighius (c. 1490-1542) discordaria também. Após a publicação em 1539 da segunda edição das Institutas de Calvino, Pighius escreveu uma resposta a Calvino intitulada Ten Books on Human Free Choice and Divine Grace.[83] Ele viu o livro publicado em agosto de 1542 mas morreu logo depois.[84] Todavia, Calvino respondeu aos primeiros seis livros de Pighius em sua obra de 1543 A Defense of the Sound and Orthodox Doctrine of the Bondage and Liberation of the Human Choice Against the Misrepresentations of Albert Pighius of Kampen.[85] Em 1552 Calvino terminou sua resposta a Pighius (a quem ele chama de um “cão morto”[86]) em sua obra Concerning the Eternal Predestination of God.[87]
O fato ainda permanece: Calvino está intrinsecamente ligado à doutrina da predestinação. O fato que no começo de seu ministério ele não tenha enfatizado não é importante. A doutrina é firmemente estabelecida como uma das fundações do pensamento teológico desenvolvido de Calvino. E como a maioria de seus outros escritos, os calvinistas admitem que Calvino foi fortemente influenciado por Agostinho na formação de sua doutrina da predestinação.[88] A oposição à doutrina da predestinação de Calvino por Bolsec e Trolliet já foi mencionada. Um outro que se opôs a Calvino com os mesmos argumentos foi Sebastian Castellio (1515-1563). Seu ataques sobre a doutrina da predestinação de Calvino fez com que Calvino escrevesse ainda uma outra defesa da predestinação em 1558 contra “um certo caluniador desprezível”:[89] A Defense of the Secret Providence of God.[90] Castellio foi um dos poucos defensores sinceros da tolerância religiosa nesta época na história. Após a morte de Servetus, a quem ele chamava de um “inocente assassinado,”[91] Castellio escreveu um estudo condenando a execução e implorando por tolerância.[92] Ele também escreveu uma obra contra Calvino em 1554, mas não foi publicada até que ambos, Calvino e Castellio, estivessem há muito mortos.[93] Durante a vida de Calvino, uma coleção de seu sermões sobre a eleição de Jacó e a reprovação de Esaú também foi publicada.[94]
A ênfase de Calvino sobre a doutrina da predestinação foi causa de muita controvérsia. Foi por causar muitos problemas que os ministros da cidade vizinha de Berna requisitaram de Genebra, em 7 de dezembro de 1551, uma “interrupção da discussão” da questão da predestinação em prol da “tranquilidade e paz da igreja.”[95] O companheiro reformador de Calvino, Bullinger, até escreveu a ele: “Acredite em mim, muitos estão descontentes com o que você diz em suas Institutas sobre a predestinação.”[96] Paul Jewett mantém que Beza “achou necessário passar mais tempo defendendo a doutrina da predestinação de Calvino do que qualquer outra coisa.”[97] Visto que já é aparente que Calvino foi um “calvinista,” um completo tratamento de sua doutrina da predestinação será dada no capítulo 7 e em outros lugares onde doutrinas relacionadas surgirem.
Como anteriormente mencionado nas seções sobre Calvino e Genebra e Calvino e Servetus, e até mais em relação à sua teologia, Calvino é inexcusável quando se desvia da Escritura sobre qualquer assunto. Não é apenas que os calvinistas estabelecem Calvino como um grande teólogo, ele é regularmente enaltecido como um dos maiores teólogos. Um exemplo típico é Warfield: “Ele foi distintamente um teólogo bíblico, ou, vamos ser francos, por eminência o teólogo bíblico de sua época. Aonde a Bíblia o levava, era para lá que ele ia: onde as declarações escriturísticas o enfraquecia, ali ele parava repentinamente.”[98] Então, quaisquer que sejam os costumes, tradições, e preconceitos de sua época; qualquer que seja o conhecimento que ele tinha dos escritos dos Pais da Igreja ou seus companheiros reformadores que possam ter sido influências; quaisquer que sejam as más experiências que ele pode ter tido antes de sua conversão; por mais que ele tenha sido falsamente caluniado, ridicularizado, e mal compreendido pelos cristãos: o outro lado de João Calvino não está somente manchado, está repleto de notáveis afastamentos das Escrituras – como reconhecido pelos próprios calvinistas.[99] Mas e quanto ao seu correspondente, James Arminius?
[1] Philip Melanchthon, citado em Schaff, History, vol. 8, p. 386.
[2] Leith, p. 127.
[3] John Mosheim, citado em Schaff, History, vol. 8, p. 281.
[4] Crampton, Calvin, p. 1.
[5] Warfield, Calvin, p. 22.
[6] Wendel, p. 359.
[7] George, p. 179.
[8] Martinho Lutero, citado em George, p. 86.
[9] George, p. 86.
[10] John Mosheim, citado em Schaff, History, vol. 8, p. 281.
[11] Calvino, citado em Potter e Greengrass, p. 117.
[12] Calvino, Institutes, p. 1144 (IV.vii.25).
[13] Schaff, History, vol. 8, p. 313.
[14] Douglas Kelly, Liberty, p. 26.
[15] Calvino, Institutes, p. 1021 (IV.i.7).
[16] Ibid.
[17] Ibid.
[18] Verduin, Anatomy, p. 200.
[19] Calvino, Institutes, p. 1024 (IV.i.10).
[20] Ibid., p. 1016 (IV.1.4).
[21] Ibid.
[22] Wendel, p. 359.
[23] Ford Lewis Battles, An Analysis of the Institutes of the Christian Religion (Grand Rapids: Baker Book House, 1980), p. 13.
[24] Calvino, Institutes, pp. 1027, 1239 (IV.i.13, IV.xii.12).
[25] Ibid., p. 1277 (IV.xiv.1).
[26] Ibid., p. 1292 (IV.xiv.17).
[27] Calvino, citado em Wendel, p. 318.
[28] Calvino, Institutes, p. 1290 (IV.xiv.15).
[29] George, p. 239; Charles Miller, p. 28.
[30] Wendel, p. 333.
[31] Ibid., p. 330.
[32] De Greef, pp. 134, 135, 191, 192.
[33] Calvino, Institutes, p. 1430 (IV.xviii.2).
[34] Ibid., p. 1413 (IV.xvii.36).
[35] Ibid., p. 1426 (IV.xvii.48).
[36] Ibid., p. 1421 (IV.xvii.43).
[37] Barth, p. 266.
[38] McNeil, p. 165.
[39] Robert L. Dabney, Systematic Theology, 2a. ed. (Edinburgo: The Banner of Truth Trust, 1985), p. 811.
[40] Calvino, Institutes, p. 1360 (IV.xvii.1).
[41] Ibid., p. 1370 (IV.xvii.10).
[42] Ibid.
[43] Ibid., p. 1403 (IV.xvii.32).
[44] Louis Berkhof, Systematic Theology, 4ª. ed. rev. e amp. (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1941), p. 654.
[45] Wendel, p. 354.
[46] Calvino, Institutes, p. 1365 (IV.xvii.5).
[47] Berkhof, Theology, p. 654.
[48] Schaff, History, vol. 8, p. 592; Wendel, p. 332.
[49] Wendel, p. 332.
[50] Calvino, Institutes, p. 1349 (IV.xvi.26).
[51] Ibid., pp. 1303-1304 (IV.xv.1).
[52] Ibid., p. 1304 (IV.xv.1).
[53] Ibid., p. 1304 (IV.xv.2).
[54] Ibid., p. 1305 (IV.xv.3).
[55] Ibid., pp. 1304, 1307 (IV.xv.2, IV.xv.5).
[56] Ibid., p. 1311 (IV.xv.10).
[57] Ibid., p. 1327 (IV.xvi.4).
[58] Ibid., p. 1331 (IV.xv.10).
[59] Ibid., pp. 1324, 1332-1333 (IV.xvi.1, IX.xvi.10).
[60] Ibid., p. 1332 (IV.xvi.9).
[61] Wendel, p. 328.
[62] Calvino, Institutes, p. 1343 (IV.xvi.20).
[63] Ibid., p. 1328 (IV.xvi.6).
[64] Ibid., p. 1329 (IV.xvi.7).
[65] Ibid., p. 1337 (IV.xvi.15).
[66] Wendel, p. 468.
[67] Calvin, Institutes, p. 1320 (IV.xv.19).
[68] Schaff, History, vol. 8, p. 587.
[69] Crampton, Calvin, p. 102.
[70] Calvino, Institutes, p. 995 (III.xxv.5).
[71] Martinho Lutero, citado em Berkhof, History, p. 263.
[72] Crampton, Calvin, pp. 101-102.
[73] Calvino, Institutes, p. 995 (III.xxv.5).
[74] Boettner, Predestination, p. 406.
[75] Bratt, Teachings of Calvin, p. 49.
[76] McGrath, Reformation Thought, p. 124.
[77] Charles Miller, p. 27.
[78] McGrath, Calvin, pp. 166-167.
[79] Meeter, p. 21.
[80] Bratt, Teachings of Calvin, p. 49.
[81] Willem Van’t Spijker, citado em de Greef, p. 200.
[82] McGrath, Reformation Thought, p. 125.
[83] Introdução a João Calvino, The Bondage and Liberation of the Will: A Defence of the Orthodox Doctrine of Human Choice against Pighius, ed. A. N. S. Lane, trad. G. I. Davies (Grand Rapids: Baker Books, 1996), p. xiv.
[84] Ibid., pp. xiv-xv.
[85] Ibid., p. xiv.
[86] Ibid., p. xv.
[87] Ibid.
[88] Nota de rodapé em Calvino, Institutes, p. 920 (III.xxi.1); Wendel, p. 264; George, p. 232.
[89] Calvino, Secret Providence, p. 209.
[90] De Greef, p. 178.
[91] Sebastian Castellio, citado em Zweig, p. 24.
[92] Register of Geneva, p. 302.
[93] Ibid.
[94] De Greef, p. 114.
[95] Calvino, Institutes, p. 926 (III.xxi.4).
[96] Heinrich Bullinger, citado em Schaff, History, vol. 8, p. 618.
[97] Jewett, p. 63.
[98] Warfield, Calvin, p. 481.
[99] Wendel, p. 359.
Fonte: http://www.arminianismo.com/
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