quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Isaías 63.7-14 lido entre as brincadeiras de crianças





Recordarei os benefícios do Senhor, os louvores que celebram o Senhor, segundo tudo o que o Senhor realizou por nós, sim, a sua grande bondade pela casa do Israel, que ele realizou por eles segundo a sua ternura, pródiga em benefícios. Ele dissera: Verdadeiramente, são o meu povo, filhos que não enganam, e foi para eles um Salvador em todas as aflições. Não foi um delegado nem um mensageiro, foi ele, em pessoa, que os salvou: em seu amor e em sua compaixão, ele mesmo os resgatou, Ele os levantou, os carregou, todos os dias de outrora. Mas revoltaram-se, acabrunharam o seu Espírito santo. Então voltou-se contra eles como inimigo, ele mesmo pôs-se em guerra contra eles. Então, o seu povo lembrou de Moisés: Onde está Aquele que me fez subir novamente do mar, o pastor do seu rebanho? Onde está Aquele que nele infundiu o seu Espírito Santo? Aquele que me fez avançar, à direita de Moisés, o seu braço resplandecente? Aquele que fendeu as águas diante deles para fazer para si um nome eterno? Aquele que fez avançar nos abismos? Como um cavalo no deserto, eles não tropeçavam, e como o gado que desce uma encosta, Espírito do Senhor os conduzia ao descanso. Foi assim que conduziste o teu povo, para fazer-te um nome resplandecente.(A Bíblia: tradução ecumênica, São Paulo: Edições Loyola, 1995, p.502)



Brincar...Caminho para explicar a formação do livro de Isaías


A vida toda vivi num prédio pequeno de três andares numa ladeira, um morro – algo típico da geografia do estado do Rio de Janeiro. Facilmente me lembro da época feliz da infância, onde tínhamos diversas brincadeiras que eu, amigos e amigas criávamos. Claro, a preferida de todas era jogar bola (futebol), mas quando a bola ‘estourava’, logo nossa criatividade aflorava. Encontrávamos saídas alternativas para a diversão. Construíamos novas brincadeiras com o que tínhamos.


Não me sai da cabeça certa vez, já era tarde da noite e não podíamos mais correr e pular. Assim mesmo, gostávamos de ficar conversando em nosso pequeno prédio. Bom, como não poderíamos jogar futebol, e nem fazer nada de pular e correr pela hora, nos sobrava brincar com as próprias vozes. Ao mesmo tempo que era bom dar atenção às nossas próprias falas e gritos, era diferente escutar nossas vozes. Nós desconsertávamos. Riamos o tempo todo de nós mesmos. Logo, após uma seção de gritos e de risos da brincadeira, começamos a tentar sistematizar o que acontecia com as nossas (estranhas) vozes. Chegamos à conclusão de que nossos gritos tinham três etapas.


A primeira parte era aquela da saída da voz (“grito”) da boca indo até o ponto mais alto do prédio, lá onde estava a parede. Neste momento, a característica das vozes era a força, eram gritos que todos ao redor escutavam. As palavras eram sempre imponentes e altivas, por isso a altura de cada voz não permitia escutar a outra.


Mesmo assim percebemos que cada grito tinha um tom único, da mesma forma que ocorre com a primeira parte do livro de Isaías. Sim, por que, entre o capítulo 1 a 39, podemos ouvir gritos, vozes fortes e particulares, mas há nelas falta de diálogo com os outros. No caso, não se percebe muito que se diz pouco se escuta das outras bocas, pois a maior preocupação de cada falante é com o próprio grito.


Voltando às percepções da infância no seu segundo momento, do percurso das vozes, nele se sentira o impacto das ressonâncias sonoras infantis na parede. É neste que as vozes colidem junto à parede e também entre si, tornando o segundo momento inflamável, com certo debate entre os tons. Ora, ocorre o mesmo no livro de Isaías, na sua segunda parte; em Isaías 40-55 encontramos os conflitos, os debates. Eles ocorriam entre os israelistas e os outros povos, bem como internamente. A segunda parte do livro fora escrita no exílio na Babilônia, junto à tensão com a cultura babilônica. Da mesma forma que o grito das crianças primeiro colidia na parede, a cultura judaíta entrou em conflito com o império, e depois os judeus dispersos se debateram entre si, tornando difícil encontrar uma palavra nesta época que seja coerente.


Agora, a última parte da análise do grito é a parte posterior ao encontro do som com a parede; e neste momento ocorre a perda de força nas vozes. O tom do grito diminui, voltando mais brando aos ouvidos, consegue-se ouvir os outros com maior facilidade por que cada tom de voz diminui, fazendo com que as outras vozes aflorem. Portanto, quando o tom diminui é que se percebe aquilo que o outro está falando. Assim, a última etapa da brincadeira das vozes lembra a terceira parte do livro de Isaias: Isaías 46-55.


No pós-exílio persa não se tem um profeta como voz única de Deus. Nesse contexto, não se tem uma voz forte, contudo tem-se um conjunto de vozes com tons baixos permitindo com que todos se escutem. E ao mesmo tempo em que o tom diminui e mais se ouve os outros, aumenta o espaço para dúvidas, pelo acesso às outras vontades.


Isaías 63.7-14, sua história e coesão!


Isaías 63.7-14 parece ser representativo na terceira parte do livro de Isaías, porque, nele, diversas vozes podem ser encontradas nesse curto pedaço de texto. É um fragmento escrito com três estrofes bem alinhadas. Cada qual unidas originalmente por três diferentes profetas redatores. Pessoas diferentes com formas de escrever e cantar diferentes, como a terceira parte de Isaías.


Assim, a primeira estrofe se localiza no v.7, e com um estilo conciso traz o tom da celebração à Deus, divino que abençoara o seu povo, a “casa de Israel”. Já a segunda estrofe apresenta os posicionamentos de Deus diante do povo, desde Sua confiança (v.8), até o rompimento do povo com Ele (v.10). A terceira estrofe (v.11-14) destaca algumas indagações do povo para Deus, questionando-se a atuação do divino diante da situação perturbadora do pós-exílio.


Estilisticamente, na terceira estrofe, o termo “aquele” abre todos os três questionamentos sobre o papel da divindade durante a formação do povo de Israel. São indagações que trazem para o presente (época persa) a impressão do profeta de que o divino não parece atuar mais no povo, conforme se percebe com a pergunta: “Onde está aquele que fez subir?” (v.11a). A pergunta que dá mostras da dificuldade dos judeus acostumados com a centralidade monárquica e de Deus, de reconhecê-lo diante de tantos povos e culturas tidos na palestina no pós-exílio. Assim, nos v.11-14, pergunta-se pelo divino que os ajudara na formação do povo, enquanto conviver com tantos deuses dificultava no reconhecimento de Deus. Tornou-se difícil ter acesso a Ele pelas feitas anteriormente colocou-os como adversários Dele (v.10).


Ora, aquele divino que os teria levado a migrarem no deserto, na segunda estrofe (v.8-10) passa a ser deixado de lado pelo próprio povo que salvara. E, no presente, os judeus começam a se perguntar pelo Deus do passado, por Aquele a quem foram infiéis, percebendo pelas indagações o passado e os erros nele, O divino a quem se busca reencontrá-lo (a partir do que se fez no passado). Lembrando do que fizera, buscam reconhecer sua voz diante da confusão que se tornara a vida em Judá na Judéia no pós-exílio.


O papel dos questionamentos – até nas brincadeiras de crianças!


No questionamento os judeus criam condições para que o Espírito consolador de Deus “desça sobre eles”. Interessante é que por conta da indagação que lhes é dado “descanso” na agonia da vida no pós-exílio. Parece que para os profetas que falam por Isaías, a indagação é um passo da conscientização e da valorização. O questionamento traz em si um mover do reconhecimento em meio à diversidade, sendo como um facilitador para o re-encontro com a identidade. Colabora no ajustar dos caminhos para tanto esquecidos. Ajudam no tatear das soluções e das saídas.


Voltando aos gritos e ecos infantis. Lembramos das vozes que chegam pelo eco, e que só se fazem perceptíveis através do processo de questionamento interno de seu tom, palavras e mover. Ora, na infância, em meio ao turbilhão de palavras, ecos e gritos ressonantes, só se reconhece a própria fala pelos questionamentos que tateiam o universo dos sons. Então, a brincadeira da voz e o texto de Isaías 61.7-14 nos trazem em conjunto a valorização dos questionamentos, até nas brincadeiras de crianças, para o conhecimento na identidade religiosa.


Pois bem, lembramos que as indagações como a de Tomé frente a Jesus são importantes na construção do cristianismo. E que, vez ou outra, quando não se sabe o que se fazer em meio às possibilidades, o ato de questionar é o pontapé, o encontro da saída da questão. Dito isso, louvamos a Deus que na multidão das vozes, Ele sempre nos mostra pelo Seu Espírito consolador quem somos. Que possamos encarar os questionamentos como encaramos as brincadeiras de crianças, que estão com elas aprendendo a olhar e a ver a vida. Que possam, ao invés de afrontar-nos, mostrar ao menos vontade no crescer!


Gratos somos a Deus que nos permite sermos crianças e brincarmos mesmo diante dos problemas e de questões tão sérias da vida. Que nos ensine sempre a questionar mesmo diante de tantas certezas que o fundamentalismo dos tempos de hoje nos pregam.


Gratos somos a Ele, pois é dialogal como as crianças, e não unitário, fechado e fundamentalista como adultos. Deus nos mantenha sempre como crianças, entre risos, piques e no Espírito subversivo das brincadeiras. Que seu Espírito abra nossos olhos para a vida que estamos desperdiçando sem olharmos a importância dos questionamentos e das dúvidas importantes para um cristianismo mais consciente.


Boas perguntas a todos e todas, pois... Deus está entre elas...



Por Fábio Py Murta de Almeida - Historiador e teólogo, mestre em Ciências da Religião pela UMESP. Niteroiense de 31 anos, professor de história da Faculdade Batista do Rio de Janeiro (FABAT - Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil) e articulista bíblico-social. É autor de Nas veias correm esperanças...(CEBI, 2009).



Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=599

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