terça-feira, 16 de agosto de 2011

Carta aberta aos meus filhos






Queridos Pedro, Cynthia e Carolina,

Hoje é domingo e celebramos a vida de novo. Pensei escrever-lhes esta carta como meu presente. Ela é um pedaço de mim em forma de prosa. Por toda minha vida lutei para agraciar-lhes com uma fortuna intangível e essencial: o apreço pelo tempo que corre como um riacho preguiçoso, e de águas simples. Sempre quis ensinar-lhes a amar a vida na celebração do encontro, fazendo de cada refeição uma liturgia, de cada abraço um compromisso e de cada olhar uma aliança.

Lutei para não termos nenhum patrimônio senão essa soma de afetos e birras, lutas e medos, choros e danças que transformam a existência em tesouro. Esse é meu legado neste domingo, legado que, espero, vá acompanhar-lhes nos dias que virão.

Não tenho outra aspiração senão tornar-me horticultor do pomar onde vocês possam colher o fruto que lhes dará felicidade. Trabalho arduamente para não incitar em vocês outra cobiça senão a de serem humanos, apenas humanos, com luzes e sombras, defeitos e virtudes. Desejo que vocês encarnem uma humanidade íntegra diante de Deus e dos homens.

Vocês já se tornaram adultos, mas continuo debruçado sobre suas camas. Sou o mesmo, continuo a vazar lágrimas de um coração emocionado. Imploro que Deus canalize sobre suas vidas qualquer bênção que tenha reservado para mim. E que essa bênção signifique amar a justiça, defender os menos afortunados e querer espalhar luz onde reinam trevas.

Não saberia imaginar meu mundo sem vocês. Porque os amo, desconheço distâncias. Hoje entendo um pouco sobre a onisciência divina. O amor nos força a acompanhar passos ainda ausentes, pressentir armadilhas ainda não acontecidas e intuir caminhos melhores, que ainda virão. Assim eu me programo a seguir-lhes sem estar perto. Estou a ver-lhes mesmo quando não estou a olhar.

Em cada um de vocês reconheço traços do que já tentei.


Pedro, vejo-lhe entusiasmado por seu time, também já sofri e chorei pelo futebol. Saiba que seu abraço pesado e sem jeito na porta da escola me salvou do olhar triste que eu via em meu pai. Papai foi melancólico e hoje sei que ele carecia de abraços meus, que muitas vezes neguei.

Cynthia, sua coragem de singrar oceanos, enfrentar ruas e avenidas inclementes, intrigam. Também sonhei navegar por águas inexploradas. Como nunca fui bravo para desamarrar o cabo de meu tímido navio, eu lhe admiro bem muitão. 

Carolina, sempre plena de siso. Você me ensinou a ser responsável, naturalmente. Eu sempre tentei fazer o melhor, mas procurava grimpar as alturas pela religiosidade. Como nunca alcancei os ideais da religião, puni-me com intermináveis flagelos. Através de seus olhos fundos, Carolina, aprendi a sentir a dor deste mundo e a conviver melhor comigo mesmo, e com Deus.

Estressei-me ao caminhar por estradas alargadas por falsas onipotências. Hoje meus caminhos se estreitam. Ganhei a consciência de perceber aqueles sonhos como mirabolantes. Contento-me com um quinhão singelo, mas precioso e que qualquer homem pode guardar em seu palácio: os filhos.

Já ouço, bem distante ainda, o assobio tenebroso da morte. Quando chegar, estou certo que não temerei sua visita súbita. Atravessarei o rio e terei nas mãos o óbolo do barqueiro: uma aljava cheia de boas memórias.

Nem sei porque lhes escrevo hoje. Talvez me sinta galardoado pelo instinto materno; eu os guardo em um útero masculino, o meu coração. Espero nunca cessar de lhes parir para o amanhã radiante, para o porvir que nasce dos sonhos e da esperança.


Com um beijo,


Ricardo


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/Artigos/artigos.info.asp?tp=66&sg=0&id=1168

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