Ao longo da maior parte da história do cristianismo a fé que está sendo requerida de você não foi requerida do cristão comum. Pense séculos; não, pense um milênio ou dois. Durante mais de mil anos foi tomado como certo que a essência do cristianismo residia em outra coisa que não aquilo que aprendemos a associar à fé.
Nos primeiros mil e quinhentos anos, ser cristão foi visto como tentar imprimir sobre a vida real as implicações da revelação; nos últimos quinhentos anos ser cristão tem sido visto como acreditar (e tentar demonstrar) que o conteúdo da revelação aconteceu na vida real.
Essa distinção pode requerer elucidação mais extensa e reflexão mais profunda.
Basta entender, e entendido isso tudo ficará claro, que durante séculos a verossimilhança da narrativa judaico-cristã não precisou ser grandemente defendida ou colocada em dúvida. Durante esse período o conteúdo da revelação bíblica foi visto por judeus e cristãos como especialmente fidedigno e singular, e assim defendido contra revelações competidoras – mas não se requeria de quem se aproximava dessa revelação uma fé no mundo sobrenatural que já não estivesse presente no cidadão comum. Ninguém se preocupava em argumentar em favor ou estabelecer a credibilidade das alegações da Bíblia, porque as pessoas em geral acreditavam por si mesmas em deuses, milagres, aparições, demônios, portentos, feitiços, revelações, divinos embates e divinas paixões, intervenções de anjos e toda sorte de outras sobreposições do mundo invisível no mundo natural.
Durante mais de mil anos, portanto, a questão da factualidade da revelação cristã raramente entrou em discussão. A esmagadora maioria das pessoas acreditava ou estava predisposta a acreditar em alguma forma de mundo sobrenatural, pelo que não se requeria delas um esforço particular para que acreditassem na ressurreição dos mortos, na concepção virginal, numa criação em seis dias ou em Jesus andando sobre as águas. Todos os homens pressupunham algum conteúdo sobrenatural; a revelação cristã apenas apresentava sua descrição do mundo sobrenatural e de seus mecanismos como especialmente fidedigna.
Ninguém se preocupava muito, como fazem hoje alguns de nós, em insistir que o planeta inteiro esteve coberto de água durante o Dilúvio, ou que em situações de grandes stress seres humanos podem de fato suar sangue, ou que se pode comprovar cientificamente que homens e dinossauros caminharam lado a lado.
Como não se requeria fé para crer-se no conteúdo da revelação cristã, o foco da vida religiosa era mantido sobre a interpretação desse conteúdo particular. Para incontáveis gerações de cristãos, na verdade, a fé consistia no exercício de pesar e aplicar na vida real as implicações da narrativa cristã.
Esse mundo, naturalmente, não existe mais, e a maior parte de nós ignora que nossa presente atitude com relação à fé não se origina na tradição cristã ou nas ênfases da própria narrativa bíblica. A transição ocorreu quando deixamos de nos preocupar com o desafio do conteúdo da fé e desenvolvemos a obsessão de convencer o mundo e nós mesmos a acreditar nele.
A maré começou a mudar com o Renascimento, com a Reforma e com a a visão mecanicista da natureza que caracterizou a ciência a partir do século XVII. A virada definitiva, no entanto, parece ter coincidido historicamente com o raiar do Iluminismo – também chamado, muito significativamente, de Idade da Razão – movimento que afetou irresistivelmente a ciência, a política, as artes e o comportamento da porção ocidental do planeta, consolidando as tendências do que ficaria estabelecido como era Moderna. Foi esse o dia em que nasceu o nosso mundo.
A partir desse momento começamos todos a pensar de modo científico, racionalista e mecanicista, e – apesar de Woodstock, do movimento hippie, de Paulo Coelho e da Era de Aquário (e na verdade com a plena cumplicidade de todos eles) – nunca chegamos a aprender o caminho de volta. Tornamo-nos incapazes de enxergar o mundo com os olhos antigos.
O mundo que enxergamos hoje, o único mundo válido e admissível, é o da realidade física, palpável e mensurável; para ser devidamente aceito por nós, até mesmo Deus deve conformar-se a ele. Eventos sobrenaturais, se admitidos, devem ser considerados uma exceção ao fluxo natural e real das coisas; não somos mais capazes de abraçar a sério o conceito oposto, que predominava antes: de que o mundo físico é mera sombra de um mundo invisível maior e mais real.
Porém a revolução racionalista da era Moderna não apenas moldou o nosso modo de ver a natureza e a realidade; mais prenhe de consequências foi o fato de ter alterado para sempre o modo como pesamos a própria verdade.
Em particular, aprendemos a tomar verdade e factualidade como coisas idênticas ou inseparáveis. Hoje em dia, para nós a verdade é sempre factual – isto é, pertence ao âmbito da realidade física, podendo ser medida e atribuída a um ponto concebível do tempo e do espaço, quer submetendo-se ou sobrepujando as leis naturais, mas sempre confirmando-as. Se uma afirmação não é factual, para nós ela simplesmente não é verdade – e, talvez mais grave, não cremos que possa haver numa afirmação não-factual alguma medida de verdade. Aprendemos a contrastar verdade não apenas com mentira ou com inverdade, mas com superstição, com crença, com utopia, com ficção, com faz-de-conta – com fé.
Numa palavra, para nós verdade é o que pode ser verificado. Se a terra não foi criada em seis dias de 24 horas que poderiam ter sido medidos por um hipotético observador isento, a narrativa da criação em Gênesis 1 não diz a verdade. Se por ocasião do Dilúvio a água não cobriu comprovadamente o topo do monte Everest, e se a arca de Noé não tiver sido grande o bastante para comportar um casal de cada animal terrestre da criação, a Bíblia está faltando com a verdade. Se a virgindade de Maria por ocasião da sua concepção era de tal modo que não poderia ter sido verificada por uma criteriosa e hipotética junta médica multidisciplinar, não há verdade na alegação de Mateus de que Jesus nasceu de uma virgem. Se depois da crucificação Jesus não sofreu verificável morte cerebral seria incorreção dizer que ele ressuscitou, porque ele nunca teria estado tecnicamente morto. E assim por diante.
O incrível é que de fato cremos que se essas coisas não forem factuais nada temos a aprender com elas. De fato cremos que se não forem factuais não há nelas verdade alguma.
Essa crença de que a verdade se esgota no que pode ser verificado no mundo físico se mostraria inteiramente incompreensível para os grandes mestres da antiguidade, e isso antes, durante e depois de Jesus. Seria ainda duramente rejeitada se tentássemos convertê-los a ela os pelos primeiros cristãos – pois fica claro que criam que a verdade não é definida pela correspondência com a realidade física, mas pela correspondência com uma realidade espiritual: uma realidade narrativa ou literária com um arco maior e mais grandioso do que o da experiência crua do dia a dia. Criam, com o autor da carta aos Hebreus, que a fé não se fundamenta no que se pode ver, medir ou comprovar; criam que o mundo físico não esgota ou caracteriza a realidade, mas justamente o contrário: “o visível não foi feito daquilo que se vê”.
A questão é que não foram apenas os céticos e cientistas a abandonar o modo narrativo-espiritual de interpretar a realidade. Hoje em dia nem mesmo os religiosos tem verdadeiro acesso ao modo antigo de pensar e de destrinchar o mundo. Nossa transfiguração foi completa. Hoje em dia ateus e agnósticos combatem com argumentos científicos os que defendem uma verdade maior do que a do mundo físico, mas todos – especialmente os religiosos – parecem ignorar que o triunfo do racionalismo contaminou os dois lados da discussão, não apenas os que não creem.
Até mesmo os cristãos compraram a ideia de que se uma afirmação não for factual não há nela nenhuma verdade, e nessa única transação não só negamos todo o mistério que prometemos, mas nos rebaixamos a discutir a verdade nos termos de nossos antagonistas, para os quais a realidade se esgota no que há de mensurável neste mundo.
Por essa razão, muitos cristãos realmente acreditam que sua grande tarefa neste mundo é convencer os céticos de que as histórias de Gênesis ocorreram do modo e na cronologia em que estão narradas, que Jesus nasceu literalmente de uma virgem e ressurgiu corporeamente dos mortos, que sua gentileza quer nos livrar de um inferno físico para um céu físico – porque sentimos que se nada disso for factual, ou se alguma dessas coisas não for factual, a Bíblia não é verdadeira. Que, se essas coisas não forem verdadeiras no sentido de correspondência com o mundo físico, a mensagem cristã é uma absoluta farsa e o evangelho de Jesus um engano que nada tem a nos ensinar e não tem cacife para nos transformar.
É por isso necessário refazer o trajeto uma última vez, para que fique claro que durante mais de mil anos não foi assim. Na maior parte da história do cristianismo não ocorreu aos cristãos que sua tarefa fosse convencer as pessoas do inacreditável – porque, para praticamente todos, ela nada tinha de particularmente inacreditável.
Penso não haver engano em supor que antes da idade Moderna as pessoas, num certo sentido, eram tão céticas quanto somos hoje. Não suponho que estivessem em geral mais preparadas para acreditar na ressurreição dos mortos do que nós. Porém naquele tempo o desafio não seria convencê-las de que milagres acontecem, mas convencê-las de que determinados milagres de fato aconteceram. As leis que vemos hoje como “naturais” não haviam sido tabuladas ou estabelecidas, pelo que eventos miraculosos eram vistos menos como transgressões notórias da realidade do que como parte misteriosa dela – tão estranhos, digamos, como os fenômenos da memória, da imaginação, da reprodução, dos pesadelos, dos sonhos.
Perdemos esse modo integrado de ver as coisas, e é fundamental entendermos que essa foi uma mudança recente. A era Moderna catequizou-nos por completo com o dogma de que o que existe é o universo espaço-tempo, o mundo da massa, da matéria e da energia. Passamos a crer que o que sustenta a complexa realidade não é uma intervenção secreta do mundo invisível, mas um conjunto muito sensato e bastante ortodoxo de leis de causa e efeito que tudo sujeitam e tudo explicam. Em termos gerais, essas leis explicam tudo na nossa experiência, inclusive o que costumávamos chamar de alma e espírito. O mistério que resta é aparente: deve-se às leis naturais que ainda não aprendemos a tabular ou a interpretar.
O curioso é que, de tão catequizados que estamos, perdemos a noção do quanto é absurdo que gente que alegue alguma fidelidade com a tradição cristã compre uma ideia dessas. E a prova que compramos essa ideia está no tempo que gastamos defendendo milagres diante de quem aprendeu a duvidar deles. Se no universo das leis naturais (que representa a realidade última, como todos acreditam, até mesmo nós) milagres simplesmente não acontecem, nós esperneamos para que aconteçam – porque se os milagres da Bíblia não forem todos eles factuais, não há neles nenhuma verdade.
Duvidar da factualidade de um único milagre tornou-se o mesmo que duvidar da legitimidade de toda a revelação: o mesmo que duvidar do próprio Deus.
E enquanto céticos e crentes discutem circularmente sobre a factualidade dos milagres, deixamos de considerar o que consideraram gerações e gerações de cristãos: o que os milagres da narrativa bíblica tem a nos ensinar. Qual é o seu significado. O que representam. Quais são suas implicações na vida real, na minha vida e na sua.
Nosso literalismo, que alimentamos na esperança de preservar o conteúdo da mensagem bíblica, termina por sufocá-lo e apagá-lo por completo. Ficamos discutindo que se Jesus não nasceu literalmente de uma virgem, se não foi concebido literalmente pela divina semente portando o divino DNA, não pode ser tomado legitimamente como Filho de Deus – e perdemos de vista a maravilha e o mistério de que a história conte que o filho crucificado do carpinteiro tenha angariado a fama de filho de Deus, e a tenha angariado também para nós. Argumentamos que Adão e Eva devem ter sido personagens reais abocanhando uma fruta literal, do contrário desmoronaria por completo o edifício do Pecado Original e seu magnífico anexo, o da Redenção – e nisso deixamos de ouvir a história, que conta como a divina misericórdia soube abraçar com toda a maturidade as contradições da liberdade e os horrores sagrados do amor.
Nosso literalismo, ao invés de preservar a mensagem, acaba por nos proteger eficazmente dela; seu papel é devidamente anular qualquer efeito que a revelação poderia ter sobre nós. Quando afirmamos que para demonstrar fidelidade à herança cristã basta crer que essas coisas aconteceram, estamos efetivamente dizendo que nenhuma delas tem implicações. O dilema da fé foi transferido de como reagir ao conteúdo da revelação para simplesmente acreditarmos nele. Deus não morreu, mas é agora indistinguível de Papai Noel. Acreditemos em fadas, se não Sininho pode morrer.
Isso quando, por mil e quinhentos anos, cristãos de todas as estirpes debruçaram-se sobre essa mesma narrativa e ponderaram solenemente de que modo podiam ser efetivamente tocados por ela; pesaram o que verdadeiramente representava o nascimento virginal e a ressurreição; tiveram sonhos e visões, na tentativa de iluminar quais seriam as implicações desses milagres na sua própria experiência. Passaram a vida vasculhando essas histórias em busca da verdade profunda e misteriosa que transmitiam a cada um, enquanto passamos a vida asseverando diante dos outros a verdade que têm na superfície.
Porém milagres de fato acontecem, e nas últimas décadas a modernidade tem se transfigurado lentamente em pós-modernidade. Já há gente sensata falando abertamente contra o regime totalitário do razão, e alguns desses estão sendo ouvidos; o necessário paradoxo é que poucas dessas vozes são de cristãos, aqueles que deveriam ter se mantido mais enfaticamente céticos com relação à suficiência da razão em primeiro lugar.
Mas paciência, basta a cada dia o seu mal. Já há cristãos defendendo abertamente o que por séculos foi tomado como evidente, e que dito hoje poderá soar como heresia: que a verdade da mensagem bíblica e cristã não depende da sua factualidade. John Stott só morreu depois de defender publicamente que a criação em seis dias não deve ser entendida literalmente, e que Deus usou a evolução como seu legítimo instrumento. Outros cristãos lançam resignadamente as bases de uma teologia narrativa (isto é, teologia nenhuma), outros tem visões de um cristianismo secular, ainda outros postulam uma verdade que seja essencialmente parabólica – isto é, transversal, narrativa e profundamente pessoal: aquilo que costumávamos chamar de “espiritual”.
E não há como não enxergar esse princípio nas parábolas de Jesus. O significado de uma parábola – sua intrínseca verdade – não depende da sua factualidade. Insistir no ponto de que as parábolas de Jesus narram “fatos reais”, verificáveis no tempo e no espaço, equivaleria a perder deliberadamente de vista o seu propósito e o seu poder transformador1. Que demônio nos convence a insistir na factualidade – e não no significado – das demais histórias que cercam a boa notícia do evangelho?
Não pode ter sido por acaso, portanto, que Jesus escolheu revestir o seu ensino de um manto metafórico, apresentando-o na forma de pequenas narrativas que destacam diferentes aspectos de uma verdade que não poderia ser contemplada de forma mais direta. As parábolas de Jesus coroam e comprovam o princípio que temos nos recusado, ao longo de toda a era Moderna, a encarar de frente: o de que histórias não necessariamente verdadeiras podem estar absolutamente repletas de verdade.
E a reviravolta da coisa toda está nesse “não necessariamente”. Porque essa nova perspectiva absolutamente não requer que você negue a factualidade da narrativa bíblica. Ninguém está pedindo para você acreditar em milagres, ou para deixar de acreditar neles. Basta que nos deixemos transformar pela narração deles.
Tudo isso encontrei no segundo capítulo de The First Christmas, de Marcus J. Borg e John Dominic Crossan, e parei de ler o livro antes que ele passasse a se ocupar das narrativas propriamente ditas do Natal. Tive de parar, porque notícias tão portentosas requerem a mais solene das pausas.
Porque, se uma narrativa como a do nascimento de Jesus pode afetar-me independentemente da sua factualidade, não tenho mais como escapar dela. Não pode mais proteger-me quer meu ceticismo diante dos fatos descritos, quer minha convicção de que ocorreram exatamente como foram narrados. Se reconheço que a verdade mais essencial de uma história independe da sua correspondência servil com o mundo “real”, aproximo-me da história como se aproximaria dela uma pessoa, e não como faria uma mente desencarnada ou uma razão pura. E uma pessoa é um saco de contradições, mas um saco de contradições que a narrativa certa, ouvida com o devida humildade (isto é, com o devido assombro), pode chegar a balançar. Trata-se menos de almejar uma deliberada ingenuidade do que uma deliberada humanidade. E essa humanidade é precisamente o que requer a apreensão desta história, que fala de um Deus que revestiu-se de humanidade e revestiu a humanidade de um caráter divino.
Tenho sincero pavor de me aproximar da Bíblia com essa postura, porque meu racionalismo e meu filosofismo não tem mais como me manter à salvo dela. Terei de me deparar, como Kierkegaard, com a desolação e a vertigem de estar “sozinho com o Novo Testamento”.
A fé que se requer de mim não é a de acreditar nessa história, mas a de vulnerabilizar-me diante dela. A de deixar-me afetar. A fé passa a ser postar-me como gente diante dos desafios de uma narrativa comum de que posso incrivelmente fazer parte, o desafio de conformar-me e inconformar-me ao fato de partilhar dessa humanidade e dessa imagem de Deus, o desafio de ser quem sabe curado por essa divina perspectiva, essa divina perplexidade.
NOTAS
1 - O que não impediu um um pastor que conheci de asseverar que todas as parábolas contadas por Jesus (digamos, a do negociante de pérolas e a da centésima ovelha) aconteceram necessariamente na vida real, porque Jesus não se rebaixaria a contar uma mentira.
Por Paulo Brabo
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