Randal Rauser
Esta pergunta, que seguramente é uma das mais dolorosas que um cristão pode enfrentar, surge de dois ensinos do Novo Testamento: algumas pessoas enfrentarão a punição eterna no inferno (veja Mt 25.46; 2Pe 1.17) e os salvos um dia passarão para um estado onde a tristeza e as lágrimas cessarão (veja Ap 7.17; 21.4).
Mas como podem nossas lágrimas ser transformadas em júbilo enquanto incontáveis outros, incluindo talvez muitos de nossos próprios entes queridos, estarão enfrentando o horror excruciante da condenação eterna?
Uma possibilidade, sugerida pelo teólogo Millard Erickson e pelo filósofo William Lane Craig, é que Deus pode proteger os habitantes do céu do conhecimento do destino dos condenados. Por exemplo, Deus pode apagar as memórias de um filho desobediente da mente de sua mãe, para que ela possa desfrutar de uma plena felicidade inconsciente de que ela até mesmo teve um filho que agora foi condenado. No mínimo, este cenário muito pouco se encaixa na promessa de Paulo de que na eternidade “veremos face a face. Agora, conheço em parte; então, conhecerei como também sou conhecido” (1Co 13.12). E quanto a um homem que foi salvo enquanto todos os seus amigos e família rejeitaram a Cristo? Deus de fato limpará toda a sua memória? Uma outra dificuldade com esta proposta é que passagens como Is 66.24 (“Eles... verão os cadáveres dos homens que prevaricaram contra mim”) parece assumir que os redimidos na verdade estarão conscientes dos perdidos.
Uma segunda possibilidade audaciosamente sugere que esta consciência será causa de alegria e louvor antes que de dor. Por mais que pareça escandalosa, esta posição tem sido defendida por muitos teólogos, incluindo Tomás de Aquino, Jonathan Edwards e, mais recentemente, J. I. Packer. Como Edwards cooca, os redimidos “não ficarão tristes por causa dos condenados; isto não lhes será causa de inquietação e descontentamento; mas, pelo contrário, quando tiverem esta visão, ela lhes excitará louvores jubilosos.”
Pode parecer repugnante, mas a ideia tem um certo apoio bíblico impressionante. Os salmos imprecatórios (como Sl 139.21, 22) parecem antecipar com grande prazer o fim dos perversos. E alguém poderia razoavelmente inferir que os santos que rogam por vingança de seu sangue (veja Ap 6.10) obterão satisfação logo que este julgamento sobre “os habitantes da terra” estiver em andamento.
Finalmente, em Rm 9.23 Paulo parece sugerir que Deus poderia usar os perdidos como lições objetivas para os salvos a fim de ilustrar tanto sua justiça (aos perdidos) quanto sua misericórdia (aos salvos). Tais precedentes bíblicos indefinidos fazem pouco para suavizar a imagem de uma multidão de redimidos deleitando-se na agonia dos perdidos. Como uma mãe poderia possivelmente deleitar-se na condenação de sua filha? Como Paulo, que expressou sua disposição para ser condenado para que os judeus perdidos pudessem ser salvos (veja Rm 9.3), poderia um dia tirar satisfação da condenação deles? Tal cena parece tanto antiintuitiva quanto bastante ofensiva.
Defensores desta segunda opinião podem argumentar que nossa perspectiva no futuro será radicalmente transformada, nos deixando tão completamente focado na santidade de Deus que deixaremos para trás as relações finitas (conforme sugerido pelo ensino de Jesus em Mt 22.29, 30 que não haverá casamento no céu). Após essa transformação radical, poderia algo que agora parece detestável (ficar alegre com o sofrimento dos perdidos) tornar-se prazeroso? Talvez. Entretanto, há uma limite estreito entre ser incapaz de ver como algo poderia ser verdadeiro e ser capaz de ver que algo não poderia realmente ser verdadeiro. Muitos dos cristãos que você conhece aceitariam a ideia que uma perspectiva transformada poderia possivelmente levar ao seu deleite na condenação dos entes queridos perdidos?
Restam poucas outras possibilidades, sendo as mais radicais a rejeição da doutrina do tormento eterno consciente do qual surge todo o problema. Alguém poderia fazer isto adotando o aniquilacionismo (a visão que os perdidos serão finalmente destruídos) ou, mais radicalmente, o universalismo (a visão que os perdidos serão finalmente salvos). O problema é que estas duas opções exigem que alguém se coloque fora das fronteiras da ortodoxia histórica.
Precisamos parar aqui por razões de espaço, mas, obviamente, mais poderia ser dito tanto teologicamente quanto pastoralmente. Se alguém quiser se aprofundar, pode querer ler The Nature of Hell: A Report by the Evangelical Alliance Commission on Unity and Truth Among Evangelicals (escrito por um grupo da Aliança Evangélica no Reino Unido). Talvez também considere Gregory Beale, e outros, Hell Under Fire (Zondervan, 2004) ou William Crockett, ed., Four Views on Hell (Zondervan, 1997). Parece provável que a resolução final deste problema, como tantos outros na teologia cristã, permanecerá frustrantemente além de nossa compreensão. Mas essa admissão pode também fazer a pergunta se voltar para nós: Confiamos em Deus?
Tradução: Paulo Cesar Antunes
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