quarta-feira, 3 de outubro de 2007

Descobri que sou herege

Ricardo Gondim

Multiplicam-se relatórios que confirmam as suspeitas das elites evangélicas: “Não resta dúvida, o Ricardo Gondim destrambelhou”. A inteligentsia já concluiu que prego uma teologia relacional herética. Consto na pauta de algumas reuniões de presbitérios. Aumenta o número de professores de seminário que se deliciam com os textos que lhes municio e que os ajudam a mostrar aos seus alunos como são exatos na ortodoxia.

Ganhei o glorioso status de persona non grata no mundo evangélico. Já não sou sequer cogitado para falar em eventos multi-denominacionais. Em um congresso promovido pela Visão Mundial nos Estados Unidos, um correto e fiel guardião da fé tentou boicotar meu nome, ao afirmar, sem constrangimentos, que represento uma ameaça à “sã doutrina”. Como ele foi voto vencido, preguei, mas, num ambiente constrangedor.


Realmente percebo uma patrulha implacável no que escrevo. Cada dia mais noto o furor de desafetos que, há muito, não gostavam do meu jeitão e agora dispõem de bons argumentos para me apedrejarem.

Sinceramente não sei o que fazer. Não é bom para o coração sentir-se marginal. Não sou herege para fazer tipo. Por isso, procuro descobrir desde quando e porquê alguns me deram esse rótulo tão antipático.

Será que comecei a me desviar da fé por ter, um dia, lido e gostado de Fernando Pessoa, Vinicius de Moraes e Adélia Prado? Às vezes, me belisco tentando punir-me por interessar-me por Henry Nouwen, um católico. Eu não podia permitir que seu livro, “A Volta do Filho Pródigo”, mexesse tanto com minha alma. Por que, eu me pergunto, abri minha alma e me encantei pela prosa nordestina de José Lins do Rego e Rachel de Queiroz? Para que li o Abraham Joshua Heschel e a Simone Weill? Sem a influência deles, talvez continuasse repetindo verdades das teologias sistemáticas que entopem minha biblioteca.


Tento acolher a crítica dos calvinistas, já que perco, todos os dias, bons amigos que temem macular seus nomes, se andarem comigo. Eles preferem (não os critico) o colo acolhedor de suas denominações reformadas.


Mas o que significaria voltar atrás? Como concordar com alguns de seus pressupostos? Para mim, aceitar a predestinação, como reza o catecismo de Calvino, significaria mais do que moldar minha mente à uma lógica que admita como coerente. Eu precisaria afirmar certas coisas que já não consigo.

Há alguns anos visitei Mumbai (antiga Bombaim). Ninguém anda pelas ruas da Índia e permanece o mesmo. Sua miséria destrói qualquer visão romântica da vida. A sorte de centenas de milhões não permite raciocínios objetivos. Caminhando pelo centro financeiro indiano, contemplei um mendigo completamente nu, jogado numa sarjeta e coberto de lama. O pobre homem mal respirava e naquele instante pensei: -Será que Deus em tempos imemoriais planejou criar este ser humano com o propósito de que nascesse, vivesse nessa condição, pior do que os porcos das favelas brasileiras, e depois morresse para queimar eternamente no inferno?


Eu poderia responder, como fazem os conservadores evangélicos: “Sim, ele nasceu sob a ira divina, herdou o pecado de Adão e sofre como participante da raça caída e degenerada. Infelizmente vai queimar no inferno. Esse pária intocável, viverá como vaso de desonra, mas cumprirá o propósito divino para que prevaleça a vontade de Deus e os eleitos vivam eternamente no paraíso”. Com essa atitude, daria as costas para seu rosto feridento e celebraria minha fortuna de ter sido eleito – sem mérito algum – para participar dos benefícios da Cruz.

Esse pensamento pode ser conseqüente para muitos, porém, não consigo acolhê-lo em meu peito. O rosto daquele indiano me persegue em noites insones, participa de meus solilóquios, e me convoca a dar melhores respostas ao sofrimento universal. A resposta lúcida e harmônica do calvinismo não me satisfaz, porque não consigo situar Jesus de Nazaré dentro dela. Prefiro observar a face terna de Deus em Cristo para perceber em seus atos o afeto divino. Desejo olhar para o faminto, o injustiçado e o marginalizado e poder identificar nele, a Imago Dei de Mateus 25, e não sua danação eterna.


Não me deleito em saber que consto no Index como um dos grandes apóstatas brasileiro. Mas, por mais que tente, não consigo varrer minhas inquietações para debaixo dos tapetes do mistério. Não tolero que me digam que certas doutrinas são mistério e que preciso aquietar-me com o ensino de que Deus em sua soberania sabe o que faz. Esse dogmatismo não me acalma. Quero saber, quero respostas! Aquiesço que jamais conhecerei todos os porquês, só não admito que me proíbam de continuar indagando.

Sendo assim, consagro meu novo status de herege para a glória de Deus. Desde que aceitei a Cristo como Senhor de minha vida, considero minha reputação um esterco. Tudo o que tenho e sou dedico ao santo ofício de trazer minha geração para um relacionamento mais íntimo com Jesus. Quero somar ao lado dos que têm fome e sede de justiça.

Caso minhas divagações e elucubrações ajudem as pessoas a conhecerem a ternura e o amor de Deus, continuarei a escrever, rasgando meu peito em público. Meus inquisidores podem dormir tranqüilos, no instante em que notar que meus devaneios promovem indolência, desumanidade e paranóias nas relações com o próximo e com Deus, calarei para sempre; e nunca mais se terá qualquer notícia minha.


Por enquanto, desejo transformar essas tais heresias em matéria prima que promova o bem da humanidade; sempre para o louvor do seu nome.


Soli Deo Gloria.


Fonte: Mesa No Deserto

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