Gosto muito de imaginar que a Bíblia foi inteiramente redigida por uma espécie de Alexandre Dumas ou Eugène Sue da época. Que ela não passa de um folhetim estritamente popular, redigida para fazer uma grana e para distrair um público muito amplo, um folhetim passivelmente aberrante cujo autor inventava as peripécias entre dois litros de vinho, morrendo de rir a cada novo episódio.
SERNBERG, Jacques. Dictionnaire du mépris. Paris: Calmann-Lévy, 1973.
É óbvio que tal aforismo seria plausível se o amor de Deus fosse condicionado como muitos “líderes” religiosos costumam dizer pelas esquinas. Se Deus não ama pessoas imperfeitas, Deus não tem ninguém para amar; eles esquecem disso. Sim, o amor é incondicional, porém, tais líderes ficam vendendo água na beira de rios. O amor incondicional não divide, mas unifica, porque a universalidade da cruz se ilumina, ou seja, quem poderia questionar o que é possível para Deus?
Até Deus tem um inferno: é o seu amor pelos homens – Nietzsche.
O amor condicional de Deus é a grande novidade do século, a experiência horrenda que destruiu… o que mesmo? Tudo, em particular uma imagem graciosa, perfeita, concebida para o homem da parte de Deus sobre Deus. Até que ponto um comentarista bíblico deveria se preocupar em fornecer uma paráfrase sistematizada sobre amor incondicional? Até onde a limitação do teólogo sobre o amor incondicional deveria ir? O objetivo de muitos teólogos é reproduzir toda a dimensão do amor em um sistema conceitual coerente. A teologia aspira à absoluta clareza do conceito; o amor tem que ser condicionado, caso contrário não é amor – Uma castração patética de uma figura paternal humana que nada tem com o divino. Como diz meu velho Pai: Faça uma análise dos Pais de quem prega o Evangelho para saber qual deus está falando. Repito: Qualquer amor condicionado não tem valor. Não absorve a dor da alma ou corrigi os incoerentes súbitos da vida. Não dá uma segunda chance, porque, como os “santos” homens dizem : Se houvesse outra chance, você de forma alguma aceitaria o amor de Deus – Talvez o próprio Cristo diria: Não posso salvar-te, você está condicionado ao amor condicional. Será?
… porque percorreis o mar e a terra para fazer um prosélito; e, depois de o terdes feito, o tornais duas vezes mais filho do inferno do que vós – Mateus 23.15
Não sou capaz de formular melhor: “A fumaça do amor condicional, predeterminado por aqueles que podem responder tudo sobre a guerra, mas nunca viveram uma, projetou uma sombra longa e escura na Igreja, enquanto suas chamas marcam a fogo um sinal indisfarçável no ego dos capazes”. Bem disse Václav Havel: Sempre há algo errado no intelectual do lado vencedor.
Não é a idéia que se reflete no amor incondicional, mas o trabalho cheio de suor, sangrento, dificultoso, de Deus. Que sofre junto. Que se faz fraco para ser forte. Caso contrário, que relação teria com o amor condicionado, o banido, o estrangeiro, o marcado, de quem chicotes arrancaram o direito humano, a confiança em Deus?
A tentativa de superação de um homem derrubado não se apóia em condições permutativas, a não ser se houver intenções políticas. Amor tem que gerar esperança; e sem a esperança de um amor incondicional, o amor se atrofia. Nenhuma paráfrase, nenhum comentário ou teologia sistemática pode jamais esgotar as riquezas do amor de Deus – Só o ego. No final, só o amor desinteressado que não se preocupa com prêmios ou glórias, pode gerar luz ao espírito desacreditado. Pode demonstrar que Deus existe. Temos de visualizar com clareza essa esperança: O Carrasco não é o amor incondicional, mas um conceito nebuloso, a condição.
O homem torturado pela vida que suporta o destino assumido com o peso da individualidade e suas conseqüências não se dispõe a concordar com um princípio teológico condicional sobre o amor de Deus. Onde ficaria sua esperança? Seu destino? Sua personalidade? E, além disso, se somos ensinados desde o berço a não questionar as “insondáveis condições divinas”,como querer, depois, que escapemos das armadilhas retóricas de lunáticos, que usam o amor condicionado para construir seus impérios?
O pastor de hoje interessa-se mais pela filosofia grega e por todas as espécies de coisas estranhas aos Evangelhos, mas nunca pela questão posta por Cristo:“A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular”. O que é que isto quer dizer? A crise do mundo pós-moderno vem da nossa recusa desta mensagem incondicional; recusamos aceitá-la e, sobretudo, segui-la. Se o cristão servisse mais o próximo e parasse de tentar provar sua verdade à ele, o resultado seria diferente – O que vale tentar provar algo que já provou na história sua ignomínia? Somos, pois, cada vez mais ameaçados pela nossa própria violência e não fazemos nada de razoável ou de eficaz para escutar o amor incondicional e, sobretudo nos adequarmos a ele.
Na busca por uma mathesis universalis, comemos o porco e colocamos a culpa no cozinheiro. Como disse Thoreau: A massa nunca se eleva ao padrão do seu melhor membro; pelo contrário, degrada-se ao nível do pior. Ou seja, sempre buscamos pelo Cristo que se revela em nossas condições. Sempre procuramos pelo amor que gera fundamento para nossa crença. Sempre buscamos condicionar alguém para não sermos condicionados. Nos esquecemos que o homem não nasceu para desaparecer num cosmos descartável criado por Deus – E viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom – , mas para compreender seu destino, para confrontar-se com sua mortalidade e – ouvirão agora uma expressão bem antiquada – para salvar sua alma. O amor incondicional no sentido mais elevado esconde-se fora da nossa interpretação sobre ele – não na evitação do pecado, mas, ao contrário, na convivência com ele, na sua apropriação e na identificação trágica que demanda. Somente o amor incondicional pode alçar o homem acima da justiça humana. Em tempos de graça limitada, que desencoraja, que liquida toda esperança, o amor incondicional é o único refúgio respeitável, o único bem.
Por fim, como ficaria as controvérsias bíblicas sobre o amor condicional/ incondicional ?
Usaria o mesmo mito que um certo amigo meu – considerado descrente por certos líderes religiosos – utilizou para superar em Deus, o desespero de um momento :
Diz a lenda que certo anjo passeava nas ruas de uma cidade com um balde d’agua na mão direita, e uma tocha de fogo na mão esquerda. Ao passar em frente de um albergue, um desafortunado perguntou ao anjo para que serviam aqueles elementos. O anjo respondeu: O fogo, para queimar as mansões no céu, e a água, para apagar o fogo do inferno. Pois Deus lutara até o final para mostrar que não faz distinção entre os homens!
A história termina dizendo que tal homem dançou e chorou durante três dias.
Vi no http://nelsoncostajr.com/2012/03/o-amor-comeu-minha-biblia/
segunda-feira, 19 de março de 2012
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