sábado, 14 de janeiro de 2012

Teologia entre a sacada e o caminho




Vou fazer algumas descargas catárticas — e por isso desordenadas e pouco acadêmicas — sobre um tema que aparece constantemente dentro do imaginário teológico e eclesial: o questionamento a respeito daqueles e daquelas que fazem teologia sem pertencer a alguma igreja. Uma frase muito utilizada para apresentar de modo gráfico esta situação é a invocação da famosa metáfora de Juan Mackay: "É preciso fazer teologia no caminho, não da sacada". Certamente que é uma frase com uma verdade inquestionável. O problema emerge na hora de definir o que é um e o outro. A sacada é a academia? O caminho é a experiência da comunidade de fé? Creio que necessitamos outra leitura de tais imagens, que muitas vezes utilizamos de forma fácil sem compreender as experiências humanas... experiências sofridas.


I


Esta última ideia me parece a mais sensível. Há muitos e muitas que pertenceram por um longo tempo (inclusive toda sua vida) a comunidades, estruturas e instituições eclesiais, que saíram feridas, no mais profundo, por práticas asfixiantes, moralismos fundamentalistas, atos hipócritas revestidos de uma bondade espiritualizada, exclusões "em nome de Deus", entre muitas outras experiências danosas que poderíamos mencionar. Esclareço para aqueles que se sentem ameaçados e se adiantam com desculpas: falo de muitos e de muitas, de experiências concretas de homens e mulheres particulares que viveram e vivem estes flagelos.


Tendo isto em conta: não é por acaso desumano não considerar estas feridas sangrantes daqueles que fazem teologia sem querer comprometer-se com uma comunidade eclesial concreta? Por que não pensar na teologia como um grito ao céu, em forma de desejo, de fantasia e de sonho para que as circunstâncias sejam diferentes? É coerente exigir que o fazer teológico esteja preso a uma comunidade eclesial por um romanticismo do que seria "uma teologia coerente", sem considerar as feridas de crentes concretos? Por que o refletir sobre a economia divina deve estar presa à vivência de um grupo concreto?


Resumindo: muitas vezes julgamsos rapidamente aqueles e aquelas que não participam de uma comunidade eclesial sem considerar as feridas de sua hitória, sem aceitar que suas decisões tem a ver com questões de alma e não com uma negação consciente de princípios absolutos, que os tornam "culpáveis". Igreja tem a ver com vivências, relações e conexões que se constróem, ressignificam-se, mantém-se e se rompem. Assim, não podemos nos esquecer dos acidentes destes sentidos tão subjetivos e profundos a partir da fácil crítica de um lugar de suposta "coerência". Que tipo de sensibilidde "do caminho" demonstra nossa atitude? Mais ainda: Por que temos que relacionar a manifestação de Deus a "um" lugar?


II


Outro tema que emerge nesta discussão é a questão teoria-prática. A acusação já é conhecida: os teólogos e teólogas são personagens que vivem na abstração da teoria sem nenhuma experiência concreta. É vão dizer que esta expressão representa uma grande verdade, e que não apenas se relaciona com a academia — ainda que tal espaço é, talvez, aquele onde mais se vivencia tal contradição.


Mas o que quero ressaltar é o definhamento que existe dentro de boa parte do mundinho evangélico com respeito à tarefa teórica. A academia é um tipo de prática em si mesma. Por que tanta resistência a pensadores e pensadoras que se dedicam a construir teorias, questionamentos, marcos de análises, textos etc.? Por acaso não temos vivido uma experiência transformadora, que atravessou o mais profundo de nossa vida e nos projetou uma maneira totalmente distinta de ver a realidade, ao ponto de mudar o rumo de nosso caminhar através do trabalho de intelectuais que se atreveram a repensar e ressignificar os pontos nodais de nossa fé? Não é isso a irrenunciável marca pastoral e espiritual que possui todo discurso teológico que emerge da sensibilidade e se entretece com as experiências e necessidades do outro? Creio que existem outros elementos por trás destas desculpas que devemos analisar, para além das acusações à "coerência" com a prática.


Minha indignação é ainda maior quando escuto a constante queixa sobre a falta de reflexão própria, ainda mais em nosso contexto latino-americano. Necessitamos modos próprios de pensar, de fazer teologia a partir do nosso contexto, de ter bibliografia própria, diz-se... Mas quando "os/as teóricos/as" se levantam, vem o comentário: "Ah...já chegou o intelectual complicado...", e nem sequer o deixamos falar. E assim seguimos usando os mesmo manuais, livros, teorias importadas, que aplicamos em nossas práticas.. eclesiais e teológicas!


III


Quero defender-me de algo que já me questionaram: não creio que se possa fazer teologia a partir da lógica do solilóquio (bom, se é que seja possível... mas talvez não seja a melhor forma de fazê-lo). Mas me faço mais perguntas: É possível o isolamento total do sujeito que teologiza? Não podemos pensar o relacional e a prática de todo discurso a partir do mesmo contexto vital e cotidiano de quem constrói teologia? Mais ainda, não podemos falar do comunitário da fé para além da visão tradicional de igreja?


Neste sentido, questiono esta ideia de que o teólogo/a não tem uma comunidade de fé pelo fato de que não pertença a uma igreja concreta. Toda pessoa constrói comunidade — e de fé — de diversas maneiras, as quais são espaços de vivência, de prática, de construção de valores, de caminhos, que atravessam vitalmente seus marcos reflexivos e teóricos. Mais ainda, também existem inumeráveis alternativas para "pôr em prática" a fé, para além da igreja.


IV


Quero dizer que não faz falta a comunidade de fé para fazer teologia? Não! Necessitamos dela, mas sempre e quando seja comunidade em pleno sentido do termo. As vivências, os caminhos compartilhados, os afetos sentidos, o impacto da realidade, o atrito dos corpos, são elementos centrais e inevitáveis para a construção da teologia. O que aponto com este artigo é: apelar à sensibilidade para com um grupo bem grande de homens e mulheres que, por experiências de sofrimento e decepção com a estrutura eclesial se afastaram para as margens de tais instâncias, mas desejam retroalimentar sua fé e espiritualidades por outro lado, e fazer teologia a partir dali.


Não caiamos em absolutismos. Estas experiências não são de "todos/as". Por isso, devemos ter cuidado com as exclusões e acusações irrefletidas que fazemos quando não se cumprem certos padrões pré-fabricados. Vozes preciosas são silenciadas por esta falta de sensibilidade frente a uma experiência de sofrimento.


Assim, prefiro pensar na sacada como esse lugar inamovível, insensível, que olha de cima, seja na academia, na sociedade, na igreja. E ver o caminho como um trânsito constante, usando as próprias pernas e pés, compartilhado com amigos, amigas, irmãos, irmãs, e os que se somam na experiência mútua de amor.


É em vão dizer que muitíssimas igrejas não refletem em absoluto tal liberdade para permitir o caminhar. Há aqueles que têm (temos) a bênção de pertencerem a espaços eclesiais onde predomina o amor sobre qualquer marco institucional. Mas há muitas e muitos que o necessitam, mas buscam a Deus de qualquer maneira, refletem sobre seu agir, instigam-nos a repensar e nos refrescam com a sensibilidade que provoca a liberdade escolhida diante do sofrimento do que cerceia. Não há caminho mais rico para ver Deus que aquele que se elege para viver plenamente.


Por Nicolás Panotto - Licenciado em Teologia pelo Instituto Superior Evangélico de Estudos Teológicos - ISEDET (Argentina). Mestrando em Antropologia Social e doutorando em Ciências Sociais pela FLACSO Argentina. Diretor geral do Grupo de Estudos Multidisciplinares sobre Religião e Incidência Pública (GEMRIP - www.gemrip.com.ar)


Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=759

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