Um reino na Terra não pode existir sem desigualdade entre as pessoas. Alguns tem que ser livres, alguns servos, alguns líderes, alguns seguidores.— Martin Luther King Jr.
É chegado o Reino!
A concepção de Reino de Deus sempre esteve no centro da vida e obra de Jesus. David Bosch afirma que esse Reino está no centro da compreensão de sua missão “para Jesus, o reinado de Deus é o ponto de partida e contexto para a missão e questiona os valores tradicionais do judaísmo em pontos decisivos” (1).
Apesar de a maioria das definições do Reino de Deus feitas por Jesus serem em forma de Parábola, frustrando todas as nossas tentativas de descrevê-lo de forma física ou linear, Jesus viveu a essência desse Reino em cada movimento do seu ministério. Jesus quebrou toda possibilidade de se compreender o Reino de Deus dentro de uma perspectiva de dominação e de opressão, e essa inovação de conceito foi tão chocante para as pessoas de seu tempo que o levou para a cruz.
Jesus inaugurou seu ministério anunciando a proximidade do Reino de Deus, com isso ele demarcou uma nova ordem na vida, ele mostrou que o reinado de Deus não deveria ser entendido como algo exclusivamente do futuro, mas também do presente, da era do já.
A esperança de libertação não é uma canção distante sobre um futuro remoto. O futuro invadiu o presente [...] permanece, entretanto, uma tensão não-resolvida entre as dimensões presente e futura do reinado de Deus. Ele chegou mas ainda virá. Por causa deste último aspecto, no Pai-Nosso os discípulos são ensinados a orar por sua vinda
(Bosch, p. 53).
(Bosch, p. 53).
A oração de súplica ou petição tem sido, ao longo da história, o modelo de oração mais utilizado pelas pessoas. As orações de gratidão, de adoração, de entrega, de confissão de pecados e todas as demais reunidas não conseguem somar o volume de orações de petições elevadas aos céus diariamente. Talvez por isso um modelo correto de oração de petição foi o único relatado nos evangelhos como sendo aquele ensinado por Jesus.
Pai nosso que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino, faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu; o pão nosso de cada dia dá-nos hoje; perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós temos perdoado aos nossos devedores; e não nos deixes cair em tentação; mas livrai-nos do mal.
(Mateus 6.9-13).
(Mateus 6.9-13).
A “Oração do Senhor” traz uma lista de prioridades de petições. Não é que não possamos pedir outras coisas além destas, mas as prioridades estabelecidas por Jesus aqui possuem toda uma lógica voltada para sua compreensão do Reino e de sua missão. Esta lista de prioridades determina alguns princípios básicos para a oração de petição.
Queremos nos deter na frase que sempre nos intrigou: “Venha o teu reino e faça-se tua vontade assim na terra como no céu”, e destacar algumas das súplicas derivadas desta primeira.
Na lógica da oração do Pai-Nosso, para que o Reino venha, a vontade de Deus tem que estar em primeiro lugar e a vontade humana aparece depois, porém combinada com a vontade divina. Se a vontade humana tiver prioridade, o que teremos é um reino cheio de desigualdades, como Martin Luther King Jr. mencionou, e não o Reino idealizado por Jesus. O Reino de Deus não é estabelecido dentro dos padrões humanos. Ao contrário, ele desconstrói os padrões humanos.
A narrativa bíblica nos mostra que no momento mais angustiante de sua vida na Terra, Jesus praticava os princípios da oração que ensinou aos discípulos: “se possível passa de mim este cálice, mas não seja como eu quero, mas como tu queres”. Esse era o estilo didático de Jesus: ensinar a partir da prática de vida. Uma oração baseada no querer humano não conseguiria estabelecer o Reino de Deus na Terra.
“Assim na terra como no céu” ensina a não deixar brecha alguma para que realizações fora da “tua vontade” fossem feitas, nem no mundo material nem no mundo espiritual. Nem no reino da Terra nem no Reino dos Céus, nem nos reinos encantados onde habitam os guardiães ancestrais dos indígenas brasileiros, nem nos tronos dos soberanos políticos das nações deste mundo. Ele cria as fronteiras de demarcação do Reino: a vontade de Deus.
É vontade de Deus que todos se salvem (1 Timóteo 2.5), é vontade de Deus que não haja pobres entre nós (Deuteronômio 15.3), é vontade de Deus que os homens se perdoem e que usem de misericórdia uns com os outros (Mateus 18.23-28), é vontade de Deus que sejamos libertos do mal e livrados dele (Mateus 6.13). É vontade de Deus que todos tenham o que comer (Mateus 14.15), não por acaso a petição seguinte fala do sustento diário.
Pedir pelo pão nosso de cada dia é suplicar por uma necessidade básica que muitos não conseguem ter suprida. Nos tempos antigos também havia fome. Esta ocorria quando as chuvas das estações não aconteciam como previstas e longos períodos de seca ou inundação destruíam o trabalho agrícola do povo. Gente passando fome é também gente que morre sem salvação. Isso é contra a noção de Reino que Jesus estabeleceu.
Jesus exerceu seu ministério no pior período da história em termos de empobrecimento populacional. Pessoas tornavam-se escravas por não poderem pagar os impostos, que por vezes chegavam a oitenta por cento de suas rendas. Com isto vendiam os campos, as casas, os filhos e a si mesmos. A única forma de escapar de tão pesado tributarismo era não tendo mais nada, nem a própria vida — era tornar-se um escravo.
A provisão diária é algo que tem faltado a muitos. Regiões com terras áridas como nosso Nordeste ou o norte da África ou também com climas muito chuvosos e sujeitos à inundação correm o risco de perder a provisão diária. Um princípio de equilíbrio do ecossistema está contido neste “Pão nosso”, princípio repleto de sentido quando se considera que entre 168 e 68 aEC Jerusalém foi atingida por não menos do que dez calamidades que provocaram grande fome e devastação na região (2).
Pedir pelo “Pão nosso” é pedir que seja dada também à natureza a chuva e o sol no tempo certo e aos animais a erva que lhes alimenta. Sem que a natureza tenha suprida a sua necessidade de “pão” a nossa necessidade de pão também não será suprida. Sem chuva a erva seca, os animais não têm o que comer e morrem. A concepção de vinda do Reino contida na oração do Pai-Nosso está impregnada de visão sistêmica da criação e da cadeia de ações-reações que é atingida quando algum destes elos se rompe.
Por fim, é vontade de Deus que as pessoas sejam libertas do mal. E neste sentido — de livramento do mal — o mistério de Jesus fez mais diferença. “Venha o teu reino” é uma oração cheia de implicações sociais, econômicas e políticas. A única coisa que uma petição como esta não possui é neutralidade.
A boa nova (evangelho) do Reino sempre chega acompanhada de cura das doenças e enfermidades (Mateus 4.23; 9.35), expulsão de demônios ( Lucas 4.33) proclamação da justiça (Mateus 5.10; 6.33), ensino nas sinagogas e convite ao arrependimento (Mateus 4.17). Nenhuma das formas pelas quais Jesus manifestou a chegada deste Reino está desvinculada de algum desses parâmetros.
A chegada do Reino compreende, acima de tudo, libertação do ser humano. Libertação da doença, da fome, da vida sem consciência do erro, da injustiça, dos demônios, do mal e de tudo mais. Muitas vezes nós, cristãos, não temos entendido que a chegada do Reino não é o estabelecimento de uma nova igreja ou denominação evangélica e acabamos fechando as portas para todas as pessoas mais destituídas que foram convidadas pelo Rei deste Reino, o pai do noivo, para virem às bodas (Mateus 22.10). A Igreja tem empregado um tempo fabuloso discutindo até que ponto as igrejas evangélicas deve ou não permitir que as pessoas dos grupos GLBTTs e outros grupos marginais estejam em suas congregações, esquecendo que o Reino é chegado para todos!
Dois textos dos ditos de Jesus sobre o Reino explicam tudo sem necessitarmos aprofundar o óbvio e gritante confronto que eles nos fazem e nos servem de conclusão neste tópico.
Desde os dias de João Batista até agora, o reino dos céus é tomado por esforço, e os que se esforçam se apoderam dele. [...] a quem hei de comparar esta geração? É semelhante a meninos que, sentados nas praças, gritam aos companheiros: Nós vos tocamos flauta, e não dançastes; entoamos lamentações, e não pranteastes. Pois veio João, que não comia nem bebia, e dizem: Tem demônio! Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: Eis aí um glutão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores!
(Mateus 11.11-20).
(Mateus 11.11-20).
Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque fechais o reino dos céus diante dos homens; pois vós não entrais, nem deixais entrar os que estão entrando (Mateus 23. 13).
O Reino chegou libertando na Cracolândia
John Stott, em sua proposta de um cristianismo bíblico equilibrado, chama nossa atenção para a atuação do reino das trevas. Nas suas palavras, quando o diabo não consegue nos induzir a negar a Cristo ele consegue nos fazer distorcê-lo, pois um dos seus passatempos prediletos é perturbar o nosso equilíbrio e desestruturar o nosso cristianismo (3). Neste esforço de nos desestruturar uma das áreas onde ele é mais bem sucedido é em promover a desunião no meio evangelical, principalmente no que diz respeito às formas como o Reino de Deus deveria ser expandido. Stott afirma:
... estamos de acordo quanto aos fundamentos éticos e doutrinários da fé. Mesmo assim parece que, constitucionalmente, somos dados a discussões e divisões, ou simplesmente a seguir nosso próprio caminho e construir o nosso próprio império. Parece que sofremos de uma incapacidade patológica de nos acertarmos uns com os outros ou de cooperarmos juntos da causa do Reino de Deus (4).
O Reino é chegado porque o Verbo já encarnou, morreu e ressuscitou e com ele trouxe libertação, mas ainda não chegou totalmente porque longe estamos de ver os efeitos deste Reino sobre toda a Terra, talvez porque nós mesmos, cristãos, ainda não absorvemos completamente o seu significado a partir de nossa vida interior.
Esta é a tensão que Stott denomina como a do já e o ainda não. Para ele, a tentativa de compreender esta tensão deveria contribuir consideravelmente para uma compreensão mútua entre os diferentes grupos de cristãos e para uma colaboração ativa de comunhão genuína.
No Brasil, os evangélicos ainda gastam mais tempo acentuando suas divergências doutrinárias e apologéticas do que trabalhando juntos para a libertação de uma humanidade sofredora, oprimida e aprisionada sob as teias do império das trevas. Neste sentido, o Reino ainda não chegou.
Por outro lado, o Reino já chegou para muitos. Temos sido impactados aqui no Brasil com os efeitos da chegada do Reino na vida de mendigos, prostitutas e dependentes químicos. Esse foi um projeto de missão integral que começou a partir da visão de um líder da junta missionária da Convenção Batista Brasileira em 2008 (5).
Nas grandes metrópoles de um país tão grande quanto o Brasil, o contraste social é muito grande. Ao mesmo tempo que, há muita gente rica e próspera, há muita gente que vive num nível absurdo de indigência e mendicância. Estes redutos de gente em estado miserável infesta as grandes capitais, criando comunidades inteiras de drogados e pessoas enfermas, totalmente dominadas pelo mal e pelos efeitos do império das trevas. São demônios que precisam ser exorcizados diariamente da vida destas pessoas para que elas possam enxergar a libertação que a chegada do Reino traz a seus corações. Levar o Reino é levar libertação para as pessoas aprisionadas. Nas palavras de Jesus, se os demônios são expulsos, então o Reino é chegado! E onde o Reino chega, aí há liberdade.
O projeto Cracolândia (hoje chamado Cristolândia) começou em São Paulo, atuando nas regiões de baixo meretrício, redutos de distribuição e consumo de drogas muito pesadas. Em cerca de dois anos já se tem organizada uma comunidade com mais de quatrocentos ex-dependentes químicos e ex-presidiáriosque, sob efeito das drogas, haviam cometido crimes e passaram muito tempo nos presídios. Vários destes homens hoje, libertos da prisão e da dependência química, acabaram de ingressar em treinamento missiológico intensivo para a plantação de outras comunidades em outras inúmeras Cracolândias espalhadas pelo Brasil.
É emocionante quando o coro de duzentas vozes dos ex-dependentes químicos, sob o acompanhamento da Orquestra Filarmônica do Canadá num programa único intitulado Natal das Luzes, paralisa o centro da cidade de São Paulo e canta “eu sou livre” (6). Os voluntários, como eu, que têm participado deste projeto — dando banho nos mendigos, cortando os cabelos, cuidando, dando alimento, tratando as doenças, enviando os dependentes químicos para centros de recuperação — têm, igualmente, saído transformados dessa experiência. Alguém relatou recentemente: “ninguém que trabalha como voluntário no projeto Cracolândia consegue continuar a mesma pessoa”.
Se, porém, eu expulso demônios pelo Espírito de Deus, certamente é chegado o reino de Deus sobre vós.
(Mateus 12.28)
(Mateus 12.28)
Conclusão
Venha o Teu Reino! É uma oração que devemos fazer, com a plena consciência dos efeitos que isso precisa trazer. Se os reinos deste mundo e também do mundo sobrenatural ocupam os espaços que não são físicos, espaços que dominam e aprisionam as pessoas numa vida assombrada por presenças malignas, que visam a sua destruição, a chegada do Reino precisa promover o efeito contrário. Ela traz a verdade que liberta, ela reconstrói, edifica, restaura, cura e alvoroça o mundo.
John Newton, um traficante de escravos convertido, disse certa vez: “Eu não sou o que deveria ser, não sou o que quero ser, não sou o que espero ser em um outro mundo; mas pelo menos não sou mais aquilo que fui um dia e, pela graça de Deus, sou o que sou” (7).
Dentro da perspectiva de Reino de Deus, a missão inclui: “fazer pessoas pobres, negligenciadas e desprezadas ficar de pé novamente, tendo recuperado sua humanidade plena perante Deus e as pessoas” (8).
Venha, então, o Teu Reino!
Imagem: Cerezo Barredo, En la cena ecologica del Reino.
Notas
(1) BOSCH, David. Missão Transformadora: mudanças de paradigma na Teologia da Missão. 2ª. Ed. São Leopoldo: EST/Sinodal, 2007, p. 52.
(2) JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário. São Palo: Paulus, 1983, 197-202.
(3) STOTT, John. Ouça o espírito, ouça o mundo: como ser um cristão contemporâneo. São Paulo; ABU, 1997, p. 419.
(4) STOTT, John. Ouça o espírito, ouça o mundo, p. 421.
(5) Uma síntese com o coordenador do projeto pode ser assistida neste documentário de quinze minutos de um programa de TV transmitido em rede nacional: http://www.youtube.com/watch?v=2ZJhwjeoR-U
(6) Para ver um clip desta música com o próprio coro de ex-dependentes químicos cantando: http://www.youtube.com/watch?v=R079zSmw49k&feature=related.Uma busca pelos expressões: Cracolândia, Cristolândia e Junta de Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira na web e nos vídeos do Youtube trará inúmeros documentos e testemunhos do projeto mencionado.
(7) Citado em STOTT, Ouça o Espírito, ouça o mundo, p. 432.
(8) MATTHEY, Jacques. The Great Commission according to Matthew. International Review of Mission, v. 69, p. 161-173, 1980. Citado em: BOSCH, David. Missão Transformadora, p. 56.
Por Lília Mariano - Mestre em Teologia e em Ciências da Religião com especialização em exegese bíblica do Antigo Testamento. É coordenadora da Pós-Graduação em Exegese Bíblica da UNIABEU e professora da Faculdade Batista do Rio de Janeiro. É membro da diretoria da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica.
Vi no http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=773
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