sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

ESQUECER SIGNIFICADOS E LEMBRAR POSSIBILIDADES

De longe já dava para vê-lo sentado ao poço. Preferia que não estivesse lá, como nos outros dias. Venho aprendendo a escolher lugares e horas que me ajudem a ficar só. Aquele poço e sua distância de tudo e todos, aquela hora e seu sol a pino traziam menos desgaste que esbarrar naqueles, quaisquer que fossem, cujos olhares espelhassem o pior de mim.


A aproximação acrescentou um dissabor, não bastasse alguém atrapalhar minha solidão, agora ficava evidente que o homem perto do poço era um judeu. Os babados da sua roupa de bom judeu anunciavam um daqueles que se crêem puros a despeito de nossa impureza. Nada é mais opressor que se enxergar tão estranha e detestável nos olhos de quem quer que seja.


Ao poço, o inusitado mostrou a face. Antes que pudesse deixar nítida minha pressa e indiferença, pediu-me água. Eu sei que a cortesia mínima não rejeita água sequer ao inimigo, mas não soube disfarçar minha amargura. Neguei-lhe e lembrei-lhe o óbvio, era homem e eu, mulher; era judeu e eu, samaritana. Fronteiras fortes o suficiente para que nem a mais sofrida angústia licenciasse o encontro. Nenhum preconceito é tão cruel que não possa servir a uma doentia e útil comodidade.


Ainda assim não me livrei do peregrino. Insistiu, apesar da cara de fadiga e dos lábios ressecados, e advertiu-me de estar desperdiçando uma grande chance. Falou-me da água de um jeito estranho. Não tive certeza se tentava me propor um enigma, como fazem os mestres e profetas, ou se de fato conhecia alguma água com poderes mágicos. Mas ofereceu uma água viva que resolveria a sede de uma vez por todas. Fiquei confusa. Não estou acostumada a esses devaneios, coisas de poetas e profetas, ou insanos. Sempre ali, icei baldes de água que, além de mal saciar minha sede, traziam o enfado de um serviço que nunca finda. Aos meus olhos, balde é balde, água é água, e gente nunca faz muito mais que trazer transtornos.


E mesmo depois de interromper o palavrório mostrando o absurdo de oferecer qualquer que fosse a água sem ter ao menos um balde, continuou a falar de tudo como se nada pudesse ser apenas o que sempre foi. Parecia falar de nada que já antes ouvi, como se tudo pudesse ter outra versão.


E falava como se fosse maior que aquele que cavara o poço, Jacó, nosso pai.


Falava como se palavras cavassem poços e baldeassem saciedade.


Talvez um poeta deslumbrado.


Sendo assim, aceitei a proposta da água viva e entrei na brincadeira. Dei ainda um certo tom de seriedade: ‘apenas para não ter mais o trabalho de ir ao poço’. Um silêncio e de novo aquele olhar insano de quem vê através das coisas e engendra o surpreendente. Eu, que queria não voltar ao poço de água, fui convidada por ele a voltar à origem da minha sede. Mandou-me buscar o marido, esse tipo de gente que primeiro abandona a imaginação, para depois abandonar a esperança e o amor.


A brincadeira perdeu a graça. A guinada da água para o coração causou-me vertigens. Lacônica, disse-lhe não ter marido. E não é que sequer esboçou surpresa? Nem um tom escrupuloso. Sabia de todos os maridos que tive e daquele que me toca, mas não me abraça. Senti meu rosto como um livro que se desenrola diante de um leitor. Seria eu tão evidente? Ou ele, um leitor habilidoso de gestos e olhares? Quem?


Poeta, sim. Louco? Com certeza e daqueles que a gente, atordoada, chama de profeta.


Alguém com versões tão diferentes do que a vida toda ouvi. Que fala estranhamente de tudo, mas com tanta graça. Que transfigura o óbvio e enxerga o avesso do que sempre me enfadou. E, sem pá, explora profundidades e, sem balde, baldeia com as palavras novos sentidos e embebe a vida de significados vários. Alguém assim pode me falar de Deus também com surpresa. Salvou-me da culpa de não ser amada, quem sabe salvará o divino do meu tédio?


Fala de Deus, poeta. Baldeia também o divino de outro poço, profeta. Porque tal como esta água, o que de Deus eu sei me angustia mais que sacia. Os samaritanos falam de um que é mais Deus em nosso templo que naquele de Jerusalém. Deus é só isso? Dos judeus ou dos samaritanos? De Jerusalém ou de Gerisim? Do templo que não me quer, ou que não me cabe? Dos homens e suas vaidades másculas e truculentas? Reiventa, poeta. Redescreve, profeta.


Bem naquela hora, uma brisa boa refrescou nossos rostos e a conversa, já tão tensa e grave. Ele, por um instante, pareceu esperar pelo sopro como um cantor aguarda o acorde da harpa. Como um poeta espera a metáfora que libertará a imaginação. Chamou o divino de vento. Desse que sopra selvagem e solto no deserto; desejado, mas indômito. Para além de qualquer estrutura, imprevisível, tão livre que apenas os que também anseiam pela liberdade podem encontrá-lo. Disse que Deus é vento e procura por quem, ao adorá-lo, também vai além dos edifícios e suas rígidas estruturas, tal qual o indomável e inventivo vento, e só assim o encontra de verdade.


Porque a verdade nunca é o que já se disse, mas o que está por dizer.


A verdade nunca é o que a brisa já deixou desenhado na areia, mas o vento que sempre está por soprar e redesenhar o chão de nossa existência.


Então? Vocês não querem vir e ouvi-lo? Ele (re)contou tudo o que tenho feito. Acho que é o Messias. Certamente não o que esperávamos. Mas o Messias. E eu, nossa! Esqueci meu cântaro lá, de tão lembrada que estou de tudo o que ainda posso ser.


Por Elienai Cabral Junior


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