sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A DESPEDIDA DE RUBEM ALVES

Rubem Alves é escritor, psicanalista e educador. Conheci-o através de seus livros infantis que sempre nos trazem conteúdos profundos que nos fazem refletir sobre a vida e a humanidade. Seus livros sempre me inspiraram e elevaram a alma. Certa vez ouvi-o em um congresso de Psicologia na USP falando sobre a obra de Winnicott, psicanalista infantil, e sobre o brincar, algo tão necessário para adultos e crianças. Enterneceu-me sua maneira profunda e suave de adoçar a alma. Com tristeza li sua crônica despedindo-se de escrever no Cotidiano da Folha. E talvez ele também pare de ser articulista em algumas revistas que ansiosamente folheio para chegar à última página onde ele escreve. Espero que não. Mas, sempre restarão seus livros para onde volto a ler quando preciso de um alento ao meu coração. Que um dia ou breve seus livros estejam sim na livraria LaSelva dos aeroportos do mundo, pois homens como ele são necessários para tornarem a vida um pouco menos cruel. Aqui vai sua despedida, na Folha do dia 01 de Novembro de 2011.




Essa crônica é uma despedida.



Resolvi, por decisão própria, parar de escrever no “Cotidiano”.


Devo ter perdido o juízo. Minha decisão contraria um dos dois maiores sonhos de cada escritor. Primeiro, o sonho de ser um best-seller. Encontrar algum livro seu nas prateleiras da livraria La Selva, nos aeroportos. Confesso: sou vítima dessa vaidade. Mas não aprendo a lição: nos aeroportos vou sempre visitar a La Selva na esperança de lá encontrar um dos meus livros. Mas saio sempre desapontado.

 
O outro sonho dos escritores é ter seus textos publicados num jornal importante: ser lido por milhares de leitores. O que significa reconhecimento duplo: do jornal que os publica e dos leitores. Isso faz muito bem para o ego. Todo escritor tem uma pitada de narcisismo.



Fernando Pessoa tem um poema que diz assim: “Tenho dó das estrelas luzindo há tanto tempo, tenho dó delas...” E ele se pergunta se “não haverá um cansaço das coisas, de todas as coisas...” Respondo. Sim. Há um cansaço. A velhice é o tempo do cansaço de todas as coisas. Estou velho. Estou cansado. Já escrevi muito. Mas agora meus 78 anos estão pesando. E como acontece com as estrelas, há sempre a obrigação de brilhar... A obrigação: é isso que pesa. Quereria ser capaz de viver um poeminha do Fernando Pessoa: “Ah, a frescura na face de não cumprir um dever... Que refúgio o não se poder ter confiança em nós...”


Perco o sono atormentado por deveres, pensando no que tenho de escrever. Sinto – pode ser que não seja assim, mas é assim que eu sinto - que já disse tudo o que tinha para dizer. Não tenho novidades a escrever. Mas tenho a obrigação de escrever quando minha vontade é não escrever.


Não é qualquer coisa que se pode publicar num jornal. O próprio nome está dizendo: “jornal”: do Latim “diurnalis”; de “dies” , dia; diurno; o que acontece no dia; diário. O tempo dos jornais é o hoje, as presenças . Mas minha alma é movida pelas ausências: nos jornais não há lugar para ressurreições.


Acho que aconteceu comigo coisa parecida com o que aconteceu com a Cecília Meireles. Escrevendo sobre ela Drummond falou o seguinte: " Não me parecia criatura inquestionavelmente real; por mais que aferisse os traços positivos de sua presença entre nós, marcada por gestos de cortesia e sociabilidade, restava-me sempre a impressão de que ela não estava onde nós a víamos... Por onde erraria a verdadeira Cecília, que, respondendo à indagação de um curioso, admitiu ser seu principal defeito " uma certa ausência do mundo"?


Deve ser alguma doença que ataca preferencialmente os velhos e os poetas. A Cecília descrevia o tempo da sua avó com “uma ausência que se demorava”. E Rilke se perguntava:”Quem assim nos fascinou para que tivéssemos um olhar de despedida em tudo o que fazemos?” O sintoma dessa doença é aquilo que a Cecília disse: uma certa ausência do mundo.


O místico Ângelus Silésius já havia notado que temos dois olhos, cada um deles vendo mundos diferentes: “Temos dois olhos. Com um, vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro, vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem” . Jornais são seres do tempo. Notícias: coisas do dia, que amanhã estarão mortas.


E é por isso vou parar de escrever: porque estou velho, porque estou cansado, porque minha alma anda pelos caminhos do Robert Frost, porque quero me livrar dos malditos deveres que me dão ordens desde que me conheço por gente...


Vi no http://www.deliriosdaalma.com/2011/11/despedida-de-rubem-alves.html

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