segunda-feira, 4 de julho de 2011

Defender-me? Por quê?






Não pedi, não procurei e jamais imaginei ser alvo de tanta raiva religiosa. Mas, embora magoe, não me impressiono com a veemência dos neoinquisidores. Por anos, fui igual a eles. Eu também não notava que minha obstinação religiosa não passava de obscurantismo. Renego ter sentado na cadeira do fariseu intolerante. Sinto muito, espezinhei quem parecia diferente. Lamento ter sido um inclemente que pensava defender a “verdadeira doutrina” – de certa forma colho o que semeei.

Pratiquei uma religiosidade corporativa. Calei ao presenciar horrores éticos. Eu achava a mensagem grandiosa e procura me convencer: os erros das pessoas não podem enfraquecer o Evangelho. Nessa lógica enviesada, fui conivente. Sinto vergonha de ter calado. Eu devia denunciar. Hoje confesso que convivi e participei de um clericalismo doente.

Sim, eu mudei bastante nos últimos anos. Há pouco, soube que um pastor anunciou de púlpito que enlouqueci. O que dizer? Como provar sanidade? Talvez devesse antecipar-me ao aviso dele e dizer: não pretendo ser bem falado por gente com ele. Os guardiões da glória de Deus me enfadam. (Estranho, um sacerdote tratar alguém como louco e não lembrar de Mateus 5.22: “Qualquer que disser [ao próximo]: ‘Louco!’ corre o risco de ir para o fogo do inferno”).

Caso ceda à patrulha dos Cruzados, arrisco a asfixiar o pouco de criatividade que me resta. Sinto que não devo explicar-me. Vou fazer-me de mouco e continuar. É impossível convencer o gramático sobre a licença poética de prosear. Limitado, nunca conseguirei convencer que meus textos pessimistas só querem exorcizar ufanismos antigos.

Resta isolar-me e, no deserto, trocar de pele. Estou consciente de que não sou um lunático fundador de seita. Mesmo acusado de pregar novidade, sei que não articulo nada inédito. Apenas tento, precariamente, sintetizar o que já foi pesquisado por teólogos de primeira grandeza.

A bem da verdade, reconheço: muitos dos que venho lendo também se distanciaram dos cânones oficiais da Igreja Católica Romana e do Movimento Evangélico anglo-saxônico pseudo-protestante. Talvez esse tenha sido o meu erro: ler gente da estirpe de Juan Luis Segundo, Gustavo Gutierrez, René Padilla, Orlando Costas, Leonardo Boff, Jung Mo Sung, Andrés Torres-Queiruga, Jean Delumeau.

Apresentado a Brian McLaren, Rob Bell e aos malucos da “Emergent Church”, critiquei a superficialidade com que tratavam de temas que teólogos europeus já haviam aprofundado. Mas, não cobro deles em demasia. Considerando o peso cultural dos Estados Unidos, esse pessoal até que avançou bastante. Depois de lê-los, não consegui gostar de Max Lucado. Não tenho a menor tentação de organizar a minha igreja com os “propósitos” do Rick Warren.

Não estou na vanguarda de nenhuma nova teologia, carrego apenas um anseio de liberdade. Com as pedradas que recebi, aprendi que dogmáticos antipatizam os que tentam olhar por cima da cerca e eu só quero a liberdade de olhar.

Acusam-me de humanista. Nem sei o que esse rótulo encerra, mas não sou ingênuo. Repito: a balsa da humanidade está à deriva. Embora continue acreditando, como um romântico desvairado, na liberdade, não me iludo: o progresso tecnológico não conseguiu aliviar a perversidade do mal. Concordo com Karl Rahner: “a liberdade é sempre mediada pela realidade concreta do espaço e tempo, pela corporalidade e pela história do homem”[1].

Jürgen Moltmann afirmou: “liberdade é um movimento criador". Portanto, não aceito cabrestos ideológicos que procuram gerar aceitação tácita da realidade. “Aquele que em pensamentos, palavras e ações transcende o presente em direção ao futuro, este é que é livre. O futuro é para se entendido como o espaço livre para liberdade criadora”[2].

Paul Tillich disse, e eu concordo, que liberdade é fundante do destino: “A liberdade é experimentada como deliberação, decisão e responsabilidade... Á luz dessa análise de liberdade, torna-se compreensível o sentido de destino”[3].

O rabino Jonathan Sacks pontuou sobre liberdade como o alicerce do vínculo pactual entre Deus e o homem:

“O conceito de um vínculo pactual entre Deus e o homem é revolucionário e não tem paralelo em nenhum outro sistema de pensamento. Para os antigos, o homem estava à mercê de forças impessoais que tinham que ser aplacadas... no humanismo secular, o homem está sozinho num universo cego às suas esperanças e surdo às suas preces. Todas estas visões são coerentes, e cada uma tem seus adeptos. 

Mas somente no judaísmo encontramos a asserção de que, apesar da sua completa disparidade, Deus e o homem se encontram como “parceiros no trabalho da Criação”. Não conheço nenhuma outra visão que confira ao ser humano tamanha dignidade e responsabilidade “[4].

Parto da vida com seus paradoxos e ambiguidades. Minha pedra de arranque não é a teoria, mas a realidade de gente que me rodeia. Não quero premissas teóricas, filhas do arrazoamento “científico” da verdade. Desencantado com devaneios conceituais sobre o mundo do "andar de cima", pretendo lidar com a revelação aqui, dentro da história. Se minhas ideias não se ligarem ao mundo onde ponho os pés, eu as considerarei inválidas. Desafio a mim mesmo a perceber o amor de Deus no decorrer da existência. Quero conhecer os atos divinos na poeira da estrada. O que a vida traz de bom e de ruim será a matéria prima de minha articulação.

Eu também não procuro interpretar o mundo, só quero modificá-lo ao antecipar os sinais, ainda que precários, do Reino de Deus. Repito as palavras de Moltmann em sua análise sobre a Teologia da Libertação:

“Ao contrário das teologias metafísicas, trancendentalistas ou personalistas, a Teologia... começa com a história como palco da manifestação de Deus e do encontro do homem com Deus. Com isto ela se liga às tradições bíblicas da história de Israel e da história de Cristo... “[5].

Neste chão hermenêutico, faço teologia. Quero fazer práxis; enfrentar estruturas injustas, opressoras e alienantes como alguém que acredita em milagre. Não desmereço a ortodoxia clássica, sei de seu valor na história, mas desejo ir além. Prefiro as ações transformadoras da realidade à exatidão de um discurso. O Nazareno disse: “Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” [João 13.35].

Carlos Mesters ensina que Deus se relaciona com o povo e sempre apela ao dinamismo , nunca à resignação. Ele interpela para encontrar cooperadores:

A presença de Deus na vida era percebida [no relato bíblico], antes de tudo, como apelo, como dinamismo, como futuro, que atraía e chamava o povo a ultrapassar-se, não permitindo que se acomodasse na estrada. A frase tantas vezes repetida: “Eu serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo (Ex 6.7), fazia saber que o relacionamento com Deus no presente era apenas uma amostra-grátis daquilo que ele seria no futuro. 

A outra frase, igualmente frequente despertava o povo a nunca contentar-se com o que já possuía, e a aprofundar onde estava escondido o germe de toda liberdade. 

Com outras palavras, a presença de Deus era percebida e vivida como o fundamento da esperança que os animava e os fazia caminhar. Ela era uma força que dinamizava a vida para a frente, levando o povo a conquistar-se e a conquistar o futuro que ele entrevia no contato com esse Deus[6].

Teologia não deve se restringir ao discurso metafísico sobre Deus, mas em organizar a vida com os valores revelados pelo Espírito. Missão não se contenta em preparar gente para o céu, almeja mostrar que Deus se interessa com aqui e o agora. Vida abundante começa já.

A pitada existencialista do que venho escrevendo brota da promessa: “O Reino de Deus chegou”. Se procuro transformar a minha espiritualidade em força que pode concretizar essa promessa, não tenho do que arrepender-me.

Soli Deo Gloria
4-07-11




[1] Rahner, Karl – Curso Fundamental de Fé – Edições Paulinas, 1989, p. 53.
[2] Moltmann, Jürgen – O Espírito da Vida. Editora Vozes, 1999, p. 118.
[3] Tillich, Paul – Teologia Sistemática, Editora Sinodal, 2005, p.193.
[4] Sacks, Jonathan – Uma Letra da Torá – Editora Sêfer, 2002, p. 109.
[5] Moltamann, Jürgen – O Espírito da Vida – Editora Vozes, 1999, p.111.
[6] Mesters, Carlos – Por Detrás das Palavras – Editora Vozes, 1999, p. 113.



Vi no http://www.ricardogondim.com.br/Artigos/artigos.info.asp?tp=61&sg=0&id=1460

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