Ninguém discorda de que estamos experimentando um tempo de angustiante desconstrução na teologia da Betesda[2]. Continuo acreditando que os sentidos dessa desconstrução já vinham sendo apontados há muito tempo. O que não tínhamos era a maturação desses sentidos para fazer as perguntas necessárias e sugerir algumas respostas.[3]
Creio que ninguém nunca inventa um sentido. Nunca surge um sentido até então inédito e impensável. O que há é o ponto de maturação de sentidos que nos puxam há muito tempo. Nesses pontos de maturação da nossa história, idéias consideradas estranhas, mesmo que ponderáveis, são testadas pelo tempo e as experiências. Se não se diluem, são adensadas, agravadas, ganham sobrevida e, se sobrevivem, agregam força de persuasão e plausibilidade. Se não sobrevivem, são esquecidas como um delírio infantil. Caso resistam, ganham força gravitacional, o poder da coerência de nos puxar para dentro de um sentido. Puxam-nos com a força da consciência de algo que mostra real.
Quem resiste, sem enlouquecer, a algo que lhe pareceu real? Só despreza algo novo que faz sentido e ama o que se mostra injustificável quem esquizofrenizou. Em outras palavras, se eu sei que uma idéia esgotou seu sentido e que outra idéia indica um mundo de sentidos novos, basta um pouco de coragem para acolher mudanças, propor novas lógicas e chegar a algumas conclusões.
Portanto, o que chamamos aqui de desconstrução não é uma demolição fortuita e muito menos arbitrária. Também não pode ser confundida com um arroubo irresponsável de novas idéias. Nossa experiência de desconstrução é o enfrentamento corajoso das implicações desses sentidos que há muito nos puxam. Sim, somos puxados pelos sentidos apontados pela história. Não confundam isso com nenhum novo determinismo. Mas entendam o “ser puxados” como uma consciência histórica, como a escolha pelo que salta aos olhos. Toda consciência é construída pela história. À medida que vivemos e refletimos o que vivemos, coletivamente, acolhemos o que faz e repelimos o que deixa de fazer. As individualidades interagem, mas, preciso frisar, a consciência é sempre coletiva. Sinto que esse é o momento que vivenciamos, o do surgimento de uma nova consciência.
Mesmo sendo coletiva a experiência de surgimento de nova consciência, cada um caminha no ritmo em que discerne a (sua) história. Por isso também escolhi a palavra maturação. Porque se trata de um processo que não pertence inteiramente à pessoa que o experimenta. Ninguém possui em sua livre iniciativa todo o movimento de abertura para uma nova lógica.
Além da boa vontade, da coragem, do despojamento, da sinceridade, de um alargamento de horizonte, há também elementos que não dependem apenas de vontade pessoal. Outras experiências escapam ao indivíduo, como as decepções sofridas com as explicações convencionais, uma vivência cultural e comunitária com o esgotamento de modelos antigos e a demanda por novos modelos que melhor respondam às expectativas. Além, é claro, de elementos subjetivos e psíquicos: alguns tendem à resignação, foram adestrados em sua formação pessoal a adiarem conflitos. Outros são inquietos e ávidos por enfrentar as novas questões que surgem e imediatamente propor novas respostas. Enquanto alguns experimentam inquietações e desencantos típicos de sua idade ou experiência de vida, outros tendem a um olhar idealista, apaixonado e otimista para a vida, também, mas não somente, em função de sua idade emocional.
Há tantas variantes quantas individualidades envolvidas no desenvolvimento da cosmovisão de uma comunidade. Logo, falamos de uma experiência marcada necessariamente pelo conflito e assimetria. É neste ponto que nossas fantasias de unidade e nossa obsessão por simetria institucional atrapalham. Nenhuma comunidade desenvolve sua cosmovisão com integridade e liberdade sem abrir mão da hegemonia e do espírito de manada.
O fato, no entanto, de falarmos de assimetria na formação de uma nova consciência não pode ser entendido como uma experiência desencontrada e anárquica. Novamente, falamos de uma consciência histórica, logo, de um fenômeno que a todos abarca. Senão, qualquer proponente de novas idéias sequer seria entendido, sendo confundido com um lunático. Como são, talvez, os líderes das chamadas seitas messiânicas que já tantas tragédias causaram na história recente do mundo.
Se uma nova idéia provoca amplo debate, atrai novos pensadores, agrega indivíduos não pessoalmente envolvidos e nem participantes de um mesmo segmento, como igreja, cidade, país ou religião é porque essa idéia é parte de uma nova consciência que nos puxa. Mesmo que a essa idéia sejam contrapostas ferozmente idéias conservadoras. Inclusive, o fato de representantes de idéias conservadoras, de antigas consciências, serem mobilizados e agirem com violência intelectual apenas confirma que as novas idéias nem são invenções, nem delírios, nem idéias absurdas. Ao contrário, talvez porque façam todo sentido e terminem por ameaçar a sobrevida de antigas consciências, sejam tão fortemente combatidas.
Minha primeira sugestão é de uma desistência acompanhada por uma aceitação. Precisamos desistir de um debate monofônico. Nossas conversas serão marcadas pela polifonia de idéias. Haverá tons distintos que precisaremos orquestrar se não quisermos desperdiçar a chance de construirmos com múltiplas percepções uma nova consciência. Mas também precisamos aceitar que temos bem mais em comum do que imaginamos. Por isso defendo que essa nova consciência sobre Deus, a Bíblia, a fé, a salvação, a oração, os milagres e todos os demais assuntos da vida cristã já se mostra nos sentidos que sempre nos puxaram.
Nessa altura do campeonato, os debates de idéias já criam grupos distintos. Cada um se forma em função da identidade de cada participante e dos preconceitos de muitos que acabam por catalogar e isolar os diferentes. É natural que os iguais se aproximem para melhor argumentar. Mas é lamentável que algumas pessoas isolem outras em categorias preconceituosas, tais como: os progressistas, os de esquerda, os conservadores, os fundamentalistas, os legalistas, os liberais e assim por diante. Catalogados pelos preconceitos, perderemos a condição de ampla conversa. Precisamos nos aproximar através das conclusões comuns a todos. Meu esforço inicial será o de intuir alguns desses elementos em comum.
Para tornar nossa conversa mais produtiva, escolho um tema que, segundo entendo, é bem mais que um assunto entre tantos. Milagres. Escolho-o por ver convergir nele nossas maiores tensões. Mas principalmente porque, como já indiquei, é um tema mais abrangente que um simples assunto. É um tema que nos remete ao todo do modo de ver Deus, a humanidade, a liberdade, o amor, a vida autêntica, o sofrimento, a ética e outros ainda. Talvez pudéssemos começar afirmando que o tema dos milagres é o centro nervoso da consciência humana.
Para a consciência religiosa tradicional, não apenas cristã, o debate a respeito dos milagres é o mais intenso. Nenhuma afirmação repercute mais que a aquela que checa a consistência do que acreditamos ser milagre. Nenhuma dúvida atormenta mais que aquela que questiona a expectativa por um milagre. Nenhuma negação afronta mais que aquela que abre mão da pertinência de um milagre. Por quê? Minha idéia é que a discussão sobre milagres é a discussão sobre um modo de viver. Uma cultura. Um modo de se colocar na vida. E um modo de vida é a cultura que desenvolvemos para nos sentirmos seguros diante da imprevisibilidade da história e das ameaças de um mundo que, com freqüência, se mostra hostil.
Basta aceitarmos o tipo de hipótese proposta por Jesus ao “jovem rico” (Mt 19.16-30) para entendermos a dificuldade de se lidar com mudanças de consciência. O jovem se aproxima como que puxado pelo anseio de algo novo, mas ainda desconhecido. Há uma questão: “Mestre, que farei de bom para ter a vida eterna?” Jesus o remete a um modelo que não consegue mais responder: “obedeça aos mandamentos.” A pergunta insiste com a confirmação de anseio por outras respostas diferentes das que carregou a vida toda: “A tudo isso tenho obedecido. O que me falta ainda?” Jesus respondeu com algo mais que uma proposta radical, um exercício de mudança de consciência: se quisesse ser perfeito, o jovem rico deveria vender tudo o que tinha, dar o dinheiro aos pobres para então segui-lo. Por um instante, ao menos, aquele jovem rico sentiu-se sem a segurança de todos os bens conquistados. Sentiu-se a mercê de um projeto de vida que abria mão da segurança das riquezas. Por um instante, Jesus deu ao jovem a oportunidade de imaginar-se sem o modo de vida com o qual construíra toda a sua história, de sentir-se participante de uma outra consciência.
O episódio se encerra com a força inibidora de qualquer mudança: a sensação de insegurança diante do desconhecido. Uma antiga cultura, mesmo que esgotada em sua pertinência, sustenta-se em sua capacidade de domar mentes inquietas com apelo do medo. Triste, o jovem partiu como chegou: perguntando-se pelo que ainda faltava, mas sem força para romper com um padrão sobre o qual firmou sua segurança existencial.
Importante foi a constatação feita por Jesus da gigante dificuldade de alguém redimensionar seu modo de vida: “é mais fácil um camelo entrar pelo fundo de uma agulha que um rico entrar no Reino de Deus”. A pergunta dos discípulos, que não eram ricos, nos diz que a questão não era apenas sobre riqueza, mas sobre abrir mão dos pontos de apoio para experimentar uma nova realidade: “neste caso, quem pode ser salvo?” Ou seja, ninguém, a princípio, está propício a abrir mão de sua cultura de segurança. A resposta de Jesus é o anúncio de esperança do Reino de Deus: “Para o homem é impossível, mas para Deus todas as coisas são possíveis”. A interpelação de Pedro reafirma que o que estava em questão não era ser rico ou ser pobre, mas a segurança em um mundo ameaçador: “Nós deixamos tudo para seguir-te! Que será de nós?”
Quando falamos de milagres estamos tratando sobre um modo de vida organizado para gerar segurança em um mundo que nos ameaça. Qualquer questionamento que levante a possibilidade de não esperar por milagres produz a mesma angústia que sentiu o jovem rico, a de ter todos os amparos construídos até então derrubados. O que parece inaceitável.
Mas até aqui apenas justifiquei os conflitos que estamos experimentando neste momento de surgimento de uma nova consciência. A pergunta a ser respondida é a que reúne os lugares comuns desta nova consciência na Betesda. Alguns prováveis acordos:
1. Não podemos duvidar do poder de Deus em realizar um milagre, muito menos de que milagres possam acontecer. Negar a possibilidade do milagre é negar a natureza de Deus, a dinâmica surpreendente da vida tanto quanto diversos depoimentos registrados na Bíblia. Nosso questionamento está sobre o posicionamento de Deus frente ao nosso anseio por milagres. Nossa questão seguinte é se devemos organizar nossa a vida a partir da expectativa de milagres. Mais ainda, se devemos nos empenhar pelo milagre ou fazer dele objeto de nossa oração.
2. Nem a quantidade, nem a qualidade de nossas orações estão relacionadas com a realização divina de um milagre. O Deus da graça nada faz em nosso favor porque somos mais ou menos convincentes, mas porque é misericordioso. A noção de que a intensidade da fé e o volume de oração e demais disciplinas devocionais podem nos aproximar da chance de um milagre se assemelha à lógica pagã de espiritualidade. Denúncia feita por Jesus no sermão da montanha. (Mt 6.7- Relacionar milagre com desempenho esvazia o Deus bíblico de sua bondade, conhecimento e compaixão.
3. O milagre não é a solução divina para o problema do sofrimento humano. Se a solução para o sofrimento humano fosse o milagre, Deus deveria realizar todas as curas e livramentos que a dor humana reivindica. Se Jesus não curou todas as pessoas, ao contrário, seu ministério teve um alcance geográfico minúsculo: a galiléia, é porque sua resposta ao sofrimento humano não foram os milagres por ele realizados. Sua resposta ao sofrimento humano foi a solidariedade de Deus, que se fez idêntico e nos ensinou a viver com coragem e esperança. No pão partido e na carne sofrida. No vinho bebido e no sangue derramado. No prazer e na dor. Inteiramente solidário. Completamente imitável.
Se, portanto, os milagres realizados por Jesus não resolveram o problema do sofrimento humano, eles incorporaram uma mensagem. O que eles significaram importa mais do que o que eles desempenharam imediatamente. Nossa leitura dos evangelhos deve se empolgar menos com o poder demonstrado e muito mais com os valores indicados.
4. Os milagres na Bíblia nunca tiveram êxito em gerar amigos para Deus e nem pessoas melhores. Toda seqüência prodigiosa na Bíblia é seguida de decepção para Deus. É a história do Êxodo, os dez prodígios das pragas não endureceram apenas o coração de Faraó como também o do povo hebreu que continuou pronto a dar as costas a Deus e a Moisés a qualquer instante. É a história dos evangelhos. Onde estava a multidão de pessoas beneficiadas pelos milagres de Jesus no momento da crucificação? Por que os favorecidos pelos milagres não se tornaram os amigos mais fiéis de Jesus? Depois de todos os milagres, por que Jesus clama: Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que depois de tantos milagres realizados Jesus morre solitário e questionável? A Bíblia não seria a história do fracasso dos milagres em promover a vida humana?
5. Jesus, nosso modelo de vida, em momento algum foi beneficiado pessoalmente por qualquer milagre. Para escapar das ameaças precisou se esconder como qualquer homem faria (Jo 8.59). Na tentação do deserto, recusou todas as insinuações para que buscasse um milagre que facilitasse sua vida e carreira. Como afirma Ricardo Gondim no artigo publicado recentemente em seu site, “Tragédia, milagre e fé”[4]:
“Considero, inclusive, que nossas inquietações possam ser respondidas na tentação de Jesus no deserto. Trato o episódio como chave de compreensão de como podemos lidar com a vida. O Espírito levou Cristo até o deserto para ser tentado. Ali o diabo ofereceu três vantagens para que Jesus enfrentasse o desafio de viver: provisão, livramento e prosperidade. Caso aceitasse transformar pedras em pães, todos os famintos do mundo poderiam reivindicar a mesma coisa; se pedisse o socorro dos anjos, todos os acidentes seriam “evitáveis”; ao receber os reinos do mundo por decreto, o livre arbítrio humano ficaria anulado. Jesus rejeitou ter a fome satisfeita por magia; não permitiu que se criassem expectativas falsas de um mundo sem percalços; e rechaçou conquistar os reinos deste mundo pelo poder. Preferiu mostrar em sua própria vida que liberdade era a maior dádiva que Deus nos concedera.”
6. Não há nenhuma indicação na Bíblia de que devemos esperar por uma vida blindada. Estamos sujeitos aos acidentes da vida. Gostamos de citar as palavras de Jesus: “no mundo tereis aflição, mas tende bom ânimo, eu venci o mundo”. E, se vencer o mundo como Jesus significa experimentá-lo do mesmo modo, inclusive uma com a possibilidade de uma morte injusta e violenta, certamente ninguém deve esperar ter um “corpo fechado” por Deus. Dizer ‘quero vencer o mundo como Jesus venceu’ significa dizer ‘não quero nenhum livramento divino de nenhum mal que possa vir sobre mim’, porque foi assim que Jesus se comportou.
7. O milagre é um evento sobrenatural, portanto não está ao alcance de qualquer movimento humano. Sendo assim, cabe a nós conduzirmos a nossa vida a partir daquilo que nos compete. Precisamos viver independentes de qualquer milagre. Pois se o milagre cabe a Deus e a uma dimensão que nos escapa, nada poderemos fazer para torná-lo viável. Se Deus atua milagrosamente contra os sofrimentos humanos, não há nada que façamos que possa tornar esse agir melhor ou mais freqüente, senão, falamos de um agir divino deficiente, de um agir divino que carece do agir humano para ser mais competente. Portanto, se há a possibilidade do milagre, ela não pode ser algo sobre o que estabelecemos nossos valores, expectativas e decisões. Se milagre é milagre não podemos contar com ele. Se é milagre o que Deus pode ou não fazer, precisamos viver como se nunca fosse acontecer.
Se milagre me escapa, organizar minha vida na expectativa de um é uma irresponsabilidade e uma insensatez. Talvez o motivo pelo qual Jesus conta a parábola do administrador desonesto com um elogio à sua inteligência. “O senhor elogiou o administrador desonesto, porque agiu astutamente. Pois os filhos deste mundo são mais astutos no trato entre si do que os filhos da luz.” (Lc 16.1-15) Flagrado em seu delito, o administrador resolveu a encrenca na qual se meteu sem contar a misericórdia de seu senhor e das demais pessoas. O resultado foi um plano brilhante que o cercou de amigos. Mesmo reprovável em um primeiro momento em sua moralidade, foi admirável em sua atitude diante da vida.
8. Qualquer teologia que desenhe um deus aquém de você deve ser descartada como uma idolatria. Na Bíblia, Jesus escolhe a figura do pai para descrevê-lo o mais próximo de nossa compreensão. A comparação é expressa basicamente assim: se vocês pais, sendo maus, sabem dar coisas boas aos seus filhos, como não vos dará tudo o que é bom o Pai que está no Céu. Se quisermos nos aproximar ao máximo da compreensão de como Deus age precisaremos, como Jesus, pensá-lo a partir de nosso ideal de paternidade. É André Torres Queiruga[5] quem propõe o seguinte exercício: o que pensar de um pai que só providencia alimento e segurança para os seus filhos se os vizinhos intercederem? E o que dizer de um Deus que para agir exige ser lembrado de seu papel de provedor? Se eu em minha paternidade supero essa paternidade divina é porque não estou falando do Deus de Jesus, mas de um ídolo.
Mas se os seus filhos passam fome e sofrem violência, o que pensar de Deus senão que ele faz o papel inverso? Deve ser ele quem clama pelos seus filhos a mim e a você para que façamos algo. Porque se a iniciativa solidária é minha, se o ponto de partida de solução é meu, então eu sou melhor que esse deus. Os vizinhos são mais paternos presentes que o pai em sua própria casa. Mas nem sou eu o primeiro a me solidarizar e nem é uma intervenção sobrenatural a solução para o sofrimento humano. Mas sim, a solidariedade humana. Jesus se colocou definitivamente em todos os que sofrem (“os pequeninos”). Quem se solidariza com os que sofrem encontra e abençoa o próprio Deus neste mundo. (Mt 25.31-46)
A oferta de esperança da igreja ao mundo é de solidariedade e não promessas de milagre. Colocar as promessas de milagre como discurso da igreja é esconder-se da responsabilidade de agir. Gente solidária é a única esperança para gente que carece.
9. Se Deus não privilegia ninguém (Deus não faz acepção de pessoas, At 10.35-36), qualquer milagre que faça com o fim de atender a uma carência deve se estender a todos que também carecem. Se Deus transformou uma mulher estéril em uma mãe, não precisaria, na mesma comunidade, também ter impedido outra mulher de ser estuprada? Se Deus mandou alguém presentear outro com um carro novo, não deveria também ter providenciado alimento para as crianças que morreram naquele mês de desnutrição? Não deveríamos ao menos estranhar essas contradições e, novamente, suspeitar de uma teologia que propõe um deus pior do que nós?
10. Um cristão no exercício de sua consciência solidária precisaria sentir-se constrangido ao buscar um milagre enquanto milhões de pessoas simultaneamente padecem pela epidemia da AIDS. Sua oração deveria ser um clamor pelos outros sempre e não por suas aspirações.
11. Causam estranheza testemunhos de milagres parciais. A pessoa sofre um acidente, tem uma perna amputada e uma lesão que comprometerá sua locomoção definitivamente e testemunha o milagre de Deus impedir sua morte. Se foi feito por Deus, porque atendeu em parte às necessidades? Não seria esse tipo de testemunho um esforço coletivo por sustentar a cultura dos milagres e livramentos? A necessidade de acreditar que podemos contar com os milagres é tanta que interpretamos os eventos sempre para encontrar um fim glorioso.
12. Incomoda qualquer mente questionadora o fato de as ofertas de milagres, ou as expectativas por eles, excluírem um grupo de sofrimentos e limites humanos. A expressão é de Ricardo Gondim, só oramos por milagres dentro de uma zona de plausibilidade. Não esperamos muito ou nada por milagres em determinadas circunstâncias: alguém que sofreu a amputação de um membro do corpo, uma criança com Síndrome de Down, pessoas com nanismo e assim por diante. Temos mais ímpeto em orar pelos milagres que possuem alguma chance de acontecerem. Cogitamos o milagre com mais modéstia se possui muito pouca chance de acontecer. Sequer o cogitamos em situações extremas.
13. A Bíblia não pode ter sua interpretação superidealizada. Talvez a mais trágica crença incorporada pela tradição evangélica seja a que coloca a Bíblia acima da vida. Não quero substituir uma pela outra. Também não me atrevo a colocar a vida acima da Bíblia. Mas precisamos entender que só há uma Bíblia com autoridade final sobre nós: aquela que está inexoravelmente conectada à vida. A Bíblia vivida é a única que tem autoridade sobre a vida sem a sufocar, ou mesmo violentar. Uma Bíblia que transcende à vida, acima dela, independente dela, não significa nada, não diz nada, geralmente mata. A Bíblia precisa ser pensada em sua mundanidade.
Como um livro de palavras, sendo todas as palavras sempre precárias para dizer com precisão, a Bíblia carece de nosso esforço sensível, amoroso e modesto de interpretá-la a partir da única realidade que dispomos: a vida que vivemos. Por um cristianismo que contemple os desafornados, uma Bíblia vivida que nos liberte da opressão de uma Bíblia anterior e acima da vida.
A cultura dos milagres – essa que se apresenta como um modo de vida amparado nas intervenções milagrosas de Deus – está necessariamente construída sobre uma interpretação idealizada da Bíblia. O que torna a atitude de alguns crentes irresponsável, absurda, até mesmo criminosa, mas coerente com a sua compreensão da Bíblia:
Sem socorro, menina morre enquanto pais rezavam
Uma menina americana de 11 anos morreu de diabetes enquanto seus pais rezavam pela sua cura, sem chamar médicos para socorrê-la, informaram as autoridades de Wisconsin.
Os pais da garota, Dale e Leilani Neumann, foram acusados de homicídio culposo (sem intenção de matar). O casal acredita somente na Bíblia e está convencido de que sua filha estava nas mãos de Deus, segundo declarou a mãe da menina.
Segundo a agência Ansa, a garota morreu no dia 23 de março passado em sua casa em Weston, vítima de um nível muito baixo de insulina no sangue. Os pais nunca a levaram a consultas médicas.
Redação Terra
Não faz o menor sentido sustentar uma interpretação da Bíblia que não experimentamos de fato, ou que contradiz a vida. A autoridade da Bíblia está exatamente em sua promoção da vida: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a instrução na justiça, para que o homem de Deus seja apto e plenamente preparado para toda boa obra.” (2Tm 3.16-17)
Tenho ouvido com mais freqüência que gostaria, quando no esforço por compreender Deus e suas manifestações em nossa vida, a advertência de que Deus não é alcançável pela lógica humana, de que ele está acima da nossa lógica. O que me parece um absurdo completo. Se de fato fosse assim, haveria um fosso intransponível entre Deus e a humanidade. Sequer dele faríamos qualquer referência. Nem o nome Deus seria pronunciado. A dizermos “Deus” o fazemos sempre de dentro de uma lógica. Porque palavras só significam algo dentro de uma lógica.
Dizer que Deus não cabe em uma lógica é outra coisa. Até porque nenhuma verdade cabe absolutamente em uma lógica. Ninguém cabe dentro de uma lógica. Muito menos Deus. Portanto, abdicar do pensamento para conhecer Deus é matar “Deus” em nossa experiência. O que dá razão novamente a Nietzche. Mas não apenas matamos Deus com uma abdicação do pensamento, matamos a nós mesmos. Desistimos do que nos toca e nos reivindica compreensão.
Portanto, o exercício de construir uma consciência é idêntico ao de viver. É com esse compromisso que somos puxados pela consciência. O de viver com sentido. É com esse compromisso que precisamos responder as questões aqui levantadas. O de fazer teologia para a vida.
[1] Este artigo foi apresentado no 12º Encontro de Pastores da Igreja Betesda no Nordeste, realizado entre os dias 30/04 e 02/05/2008. Minha pretensão foi a de reunir argumentos que têm constituído uma ampla conversa dentro da denominação e oferecer uma pauta de discussão.
[2] A Igreja Betesda é uma denominação de origem assembleiana, com 27 anos de fundação. Desde então foi marcada pela busca de práticas e reflexões afinadas com os novos anseios do mundo moderno. Acabou por se desvincular institucionalmente das Assembléias de Deus no Brasil.
[3] Acredito que a experiência da Igreja Betesda sirva de amostragem para um fenômeno que a todos envolve. Senão com a atitude assumida de ressignificar a teologia, ao menos com a sensação de esgotamento do modelo até então vivenciado e anelo por algo novo.
[5] QUEIRUGA, André Torres. Fim do Cristianismo Pré-moderno. Editora Paulus.
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