terça-feira, 13 de maio de 2008

Desaforos, resiliência e perdão.

Ricardo Gondim

Há tempo escrevo memórias e garimpo reminiscências. Antes que se rompa o fio de prata, procuro revolver emoções sedimentadas, talvez em busca de achar-me.

Desisti de querer voltar aos lugares da infância. Casas, avenidas e praças encolheram demais para despertar meu olhar adulto. Chamo, porém, pelos personagens que me marcaram. Um ou outro obedece e sai dos porões úmidos onde jaziam. Reencontrá-los, entretanto, nem sempre me alegra, alguns continuam assustando.

De Londrina, por exemplo, não revejo apenas o pó vermelho que encardia meus pés e que toldava o céu nas tardes de temporal. – Que medo! Ressuscito amigos com quem nadei em ribeiros e represas e não esqueço o rosto do padre que estendeu-me a hóstia da Primeira Comunhão.

Mas não idealizo as recordações. Não vivi uma infância ou adolescência protegida; cedo conheci gente ruim e despertei para um mundo perigoso.

Um dos momentos mais doloridos aconteceu nos tempos da prisão do papai. Logo antes do golpe militar, papai requerera sua transferência de Londrina para outra base aérea, porém, antes do despacho oficial, o governo caiu. Assim, mamãe, grávida de gêmeos com seus cinco filhos, ficou no meio do caminho. A situação de nossa família era complicada: não tínhamos para onde voltar e não sabíamos para onde ir. Ainda bem que meus avós maternos nos acolheram na pequena casa de vila onde moravam.

E como eu não podia ficar sem estudar, fui matriculado num Grupo Escolar mal cuidado; de carteiras, pensas, prestes a desabar e com uma lousa verde desbotada. Na primeira semana de aula, meu irmão e eu chamamos a atenção. Nosso sotaque paranaense soava afeminado para os ouvidos cearenses.

A choça era geral. Nunca hei de esquecer quando alguém gritou “viado”. Fui ao encontro da voz, disposto a brigar. Mas não dei três passos e uns seis moleques formaram uma parede humana. Todos fortes e bem mais velhos do que eu. Um assumiu a liderança e me provocou com um montão de coisas, mas não ousei nenhum gesto. Ele então escarrou e cuspiu no meu rosto.

Ódio, raiva, ira, furor, mal sei o vocábulo adequado (talvez todos), acendeu uma febre súbita por todo o meu corpo; e rompeu-se a indignação que eu represava por saber que papai estava preso, por não ter casa nem quarto de dormir, por pressentir que jamais me deitaria no colo da mamãe como fazia em Londrina, por estar naquele colégio vagabundo, por ter perdido meus antigos amigos. Lutei para não enfrentá-lo - eu sabia que não tinha chance - esforcei-me para não chorar e saí de perto deles. Mas, enquanto enxugava o cuspe, jurei vingança e por anos procurei guardar a fisionomia do meu ofensor para matá-lo.

Hoje acordei e pensei naquele evento. Perguntei-me se já consegui perdoar a afronta. Tentei redesenhar aquela face detestável, mas não consegui - sem um rosto o ódio não se adensa. Mas a memória daquele dia continua; escrevo como catarse, querendo enterrar o passado - sei que as obras das trevas só se destroem na luz, que revela a poder destrutivo do rancor.

Muitas outras decepções marcaram a minha vida. Não posso esquecer que namoradas me traíram; que perdi amigos que me acharam pobre por não ter dinheiro para comprar um mísero refrigerante na praia e por tentar pular o muro do estádio e ser apanhado pela polícia; que me vi diante de um conselho de presbíteros, antes dos 20 anos de idade, para um inclemente ritual de excomunhão.

Perguntam sobre a minha tristeza e respondo: ela é filha da decepção, mas a mãe dos vários eus que precisaram nascer para minha sobrevivência. Mia Couto escreveu: “Eu somos tristes. Não me engano, digo bem. Ou talvez: nós sou triste? Porque dentro de mim, não sou sozinho. Sou muitos. E esses todos disputam minha única vida. Vamos tendo nossas mortes. Mas parto foi só um. Aí, o problema. Por isso, quando conto a minha história me misturo, mulato não de raças, mas de existências”.

Nessas muitas existências numa só vida aprendi resiliência, que depois se misturou ao imperativo do amor e fez de mim uma crise ambulante.

Soli Deo Gloria.

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