Vida em abundância hospeda beleza. Se há alguma sublimidade no universo, ela mora dentro da gente. A única formosura possível é a que retemos. O belo é jeito de agasalhar aquilo que percebemos. Não existe esplendor essencial, absoluto, descolado do olhar. O barulho de uma árvore caindo na floresta inexiste. Sem alguém para contemplar, o arco-íris nunca se forma. Tudo depende das conexões, das analogias que fazemos entre o que somos e o mundo que nos rodeia. Viver é contemplar o prado congelado e poder associá-lo ao que quisermos. Uma geleira pode lembrar seu extremo oposto, o sertão calcinado; e ambos são esplêndidos. Para o poeta, tanto faz a neve alva e fresca da cordilheira como o areal perolizado semi incandescente da duna. Os dois inspiram mundos diversos; ao dar-lhes infinitos significados, a vida transcende.
Viver é povoar o coração de memórias vivas. Só as recordações salvam os olhos da insipidez. A realidade esterilizada, pobre de sentido, é morta. Marcel Proust provou um biscoito “madeleine” e todo o passado se atualizou, ressurgiu. Bastou-lhe um sabor para sair “em busca do tempo perdido”. Eu farejo farofa com cebola na manteiga e também volto à cozinha de minha avó. O gosto de um xarope travoso me devolve o rosto preocupado da mamãe; quantas vezes precisei adoecer para ganhar a sua atenção. Na sala onde dormia, o ranger da rede me amedrontava como o piado de uma coruja; aquele barulho ainda me faz tremer nas madrugadas insones. Em qualquer ônibus, a janela continua a significar um lugar de isolamento e introspeção.
Viver é desabotoar a alma e não deixar que a grandiosidade do que está lá fora passe desapercebida. Vida abundante acontece no ancoradouro, no poente, quando celebramos o instante único, sem esquecer que duas tardes nunca são iguais. Vive quem não se acomoda, mas corre na direção do horizonte, sempre afastado. Só no delírio de viver, a linha que junta céu e mar se descostura. Viver é desafiar limites. Criados com a eternidade no coração, carregamos o imperativo de sonhar para além do possível.
Viver é meditar no mistério, intuir o belo, florescer o delicado, celebrar o eterno. Vida abundante transforma pedregulho em esmeralda. O excelso merece o exagero do superlativo. Quem vive se torna arauto da esperança e artesão de uma nova história. Vida abundante se esconde nas trilhas bucólicas onde poucos peregrinos se aventuram. O segredo da promessa do Messias mora em bosques selvagens. Só viajores sequiosos sabem que no percurso, não na chegada, está a vida abundante.
Soli Deo Gloria
Vi no http://www.ricardogondim.com.br/Artigos/artigos.info.asp?tp=65&sg=0&id=2274
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