sábado, 25 de junho de 2011

Vida abundante, o que é isso?





Como a corça que anseia por água, temos sede de viver. Ouvimos o Nazareno: “eu vim para que tenham vida e vida com abundância”. Sua oferta é convite para que embarquemos na aventura de desdobrar a existência em vida? Sim, existir e viver se diferenciam qualitativamente. Existir cumpre o trajeto biológico de nascer e morrer ou de meramente sobreviver. Vida em abundância confere significado àquele hífen que separa as duas datas que constam em todas as lápides.

Vida em abundância hospeda beleza. Se há alguma sublimidade no universo, ela mora dentro da gente. A única formosura possível é a que retemos. O belo é jeito de agasalhar aquilo que percebemos. Não existe esplendor essencial, absoluto, descolado do olhar. O barulho de uma árvore caindo na floresta inexiste. Sem alguém para contemplar, o arco-íris nunca se forma. Tudo depende das conexões, das analogias que fazemos entre o que somos e o mundo que nos rodeia. Viver é contemplar o prado congelado e poder associá-lo ao que quisermos. Uma geleira pode lembrar seu extremo oposto, o sertão calcinado; e ambos são esplêndidos. Para o poeta, tanto faz a neve alva e fresca da cordilheira como o areal perolizado semi incandescente da duna. Os dois inspiram mundos diversos; ao dar-lhes infinitos significados, a vida transcende.

Viver é povoar o coração de memórias vivas. Só as recordações salvam os olhos da insipidez. A realidade esterilizada, pobre de sentido, é morta. Marcel Proust provou um biscoito “madeleine” e todo o passado se atualizou, ressurgiu. Bastou-lhe um sabor para sair “em busca do tempo perdido”. Eu farejo farofa com cebola na manteiga e também volto à cozinha de minha avó. O gosto de um xarope travoso me devolve o rosto preocupado da mamãe; quantas vezes precisei adoecer para ganhar a sua atenção. Na sala onde dormia, o ranger da rede me amedrontava como o piado de uma coruja; aquele barulho ainda me faz tremer nas madrugadas insones. Em qualquer ônibus, a janela continua a significar um lugar de isolamento e introspeção.

Viver é desabotoar a alma e não deixar que a grandiosidade do que está lá fora passe desapercebida. Vida abundante acontece no ancoradouro, no poente, quando celebramos o instante único, sem esquecer que duas tardes nunca são iguais. Vive quem não se acomoda, mas corre na direção do horizonte, sempre afastado. Só no delírio de viver, a linha que junta céu e mar se descostura. Viver é desafiar limites. Criados com a eternidade no coração, carregamos o imperativo de sonhar para além do possível.



Viver é meditar no mistério, intuir o belo, florescer o delicado, celebrar o eterno. Vida abundante transforma pedregulho em esmeralda. O excelso merece o exagero do superlativo. Quem vive se torna arauto da esperança e artesão de uma nova história. 
Vida abundante se esconde nas trilhas bucólicas onde poucos peregrinos se aventuram. O segredo da promessa do Messias mora em bosques selvagens. Só viajores sequiosos sabem que no percurso, não na chegada, está a vida abundante.

Soli Deo Gloria


Vi no http://www.ricardogondim.com.br/Artigos/artigos.info.asp?tp=65&sg=0&id=2274

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