sexta-feira, 17 de junho de 2011

O "herege da vez" denuncia as causas, a moral excludente se apega aos efeitos





E os evangélicos prevendo que a Dilma seria eleita, foram, em favor da conservação do próprio conforto, exigir sua assinatura na caprichosa carta elaborada por líderes de imagem alinhada com o perfil geral da nação santa, geração eleita. Uma das questões, para não dizer a única, era que a candidata, que se consolidava nas pesquisas, assumisse compromisso em não aprovar o casamento – diferente de união civil – entre pessoas do mesmo sexo. Para não dar na cara que a questão envolvia nada mais que a garantia da permanência almofadada dos crentes na tranqüilidade de seus ideários dominicais sem correr os riscos de ter de lidar com o incômodo tema, embutiram lá também a questão da não legalização do aborto e outros itens despercebidos, secundariando o real motivo da falta de sono desta omissa parcela da sociedade.

Já no meio da candidatura da mulher, a movimentação no arraial do comodismo evangélico dava indícios do frenesi que se apossava dos crentes, enchendo as nossas caixas de entrada de e-mails com os mais variados alertas sobre a vida oculta da ex-ministra. De libertinagem e lesbianismo a envolvimento com satanismo, Dilma foi classificada de tudo o que a imaginação dessa gente pode produzir, sob o dúbio interesse por uma nação mais “santa” nas mãos de deus. Admitimos que lemos um ou dois desses e-mails e, daí em diante, tudo para a lixeira.

Esta inquietação evangélica sonoriza a cada quatro anos. A carta contendo como tema central, o que uma comitiva dos “bem intencionados” servos do deus, que abomina a sodomia, achou primordial para que não se mexesse no time que está ganhando, para que o Estado não viesse a entulhar o tênue caminho da vitória daqueles que aspiram por um Brasil culturalmente evangélico, demonstrou que estes “bem intencionados” servos sofrem, na memória coletiva, daquilo que os psicanalistas chamam de neurose histérica de dissociação. Um distúrbio na consciência e na identidade, em que desenvolvem como principal sintoma uma personalidade múltipla, pois, quando comparados o comportamento destes com as instruções de Jesus fica claro que não sabem de que espírito são.

O que pretendiam? Uma sinalização de que continuariam imperturbáveis, nos espaços anestésicos que são seus templos e igrejas, onde reproduzem um arquétipo de mundo que só existe na cabeça dos crentes.

Até aí nada novo.

O que é novo nesse episodio é a forma como os ditos líderes inconscientemente confessaram o blefe em que vivem, consentido com os aplausos de 90% da massa evangélica brasileira, que blefa junto.
Os destinatários da benção demonstraram nas urnas não ter e mínima afinidade com política e menos ainda senso de responsabilidade social quando a única opção de uma política mais igualitária, não corrupta e engajada, Marina Silva, não passou do primeiro turno. A proposta de “um jeito novo de fazer política” não fez sucesso entre os servos do dono do ouro e da prata, pois a única ética que encanta essa gente é a que é inspirada pelo espírito do capitalismo, egocentralizada, fundamentada no salve-se quem puder, na qual quem pede mais – e do jeito certo – leva mais.

Sobre este caso, perguntas que não querem calar: Porque na tal carta não havia um item expresso e inegociável que fizesse a futura presidente do Brasil assumir um compromisso de erradicar a pobreza principalmente nos estados e cidades mais pobres? Porque não havia lá nada que forçasse a Dilma a estabelecer metas para acabar com mortalidade infantil? Porque os crentes não pensaram em colocar como um dos pontos principais a serem assumidos pelo novo governo a extinção do analfabetismo? Passou despercebida a condição surreal da saúde pública e o tratamento desumano nas unidades básicas de bairros pobres? Não deu pra lembrar das urgentes e necessárias melhorias em vias públicas para os portadores de necessidades especiais? E o péssimo tratamento aos aposentados? E os maus-tratos no sistema carcerário? E a corrupção no centro do poder?

Outra carta, desta vez a Capital, contendo a entrevista do “pastor herege” causou uma acesa circulação de desinformação no arraial dos defensores da moral adequada aos costumes de um povo que se acostumou a buscar favores da divindade em um culto intimidador, prolixo em churumingas, conformado a uma liturgia capenga e cheia de ressentimento.

Está tudo ali, às claras, nada de meias palavras. Para interpretar sua fala nada de chave hermenêutica, indisponível aos iletrados. O Ricardo Gondim disse o que tinha para dizer e os evangélicos entenderam o que sempre se predispuseram a entender. Levando em conta que texto fora do contexto sempre foi uma especialidade dos crentes, não poderia dar noutra conclusão: “Agora a Betesda vai começar a casar gays”, dedução óbvia de quem se habituou a ler a Bíblia como se fora o texto sagrado algo parecido com a famosa caixinha de promessa, da qual o texto é sacado sem a necessidade de vinculá-lo aos demais não sorteados. Método não diferente é aplicado quando se interpreta as colocações daquele que se tornou o “herege da vez”. Ainda mais óbvias, são as intenções dos que utilizam essa hermenêutica para interpretar as palavras do Ricardo na Carta Capital: Os crentes intentam ocultar aquilo que é causa, tratando-o como se fosse efeito, e assim, como criaturas entregues ao delírio, ao desvairo e a obsessão, continuam dormindo o sono da insensatez sobre o lençol das suas próprias omissões.

Só para refrescar a memória, segue a pergunta da Carta e a resposta do Ricardo que, ainda que aqui, colocada fora do contexto, qualquer um com o mínimo de tino e bom senso entende do que se trata. Mas, por nos faltar a paciência que sobra ao nosso amigo, colocamos em negrito apenas o que a letra por si só é capaz de explicar:

Carta Capital: O senhor é a favor da união civil entre homossexuais?

Ricardo Gondim: Sou a favor. O Brasil é um país laico. Minhas convicções de fé não podem influenciar, tampouco atropelar o direito de outros. Temos que respeitar as necessidades que surgem a partir de outra realidade social. A comunidade gay aspira por relacionamentos juridicamente estáveis. A nação tem de considerar essa demanda. E a igreja deve entender que nem todas as relações homossexuais são promíscuas. Tenho minhas posições contra a promiscuidade, que considero ruim para as relações humanas, mas isso não tem uma relação estreita com a homossexualidade ou heterossexualidade.

Perceptivelmente indispostos a fazer uma leitura na ordem da entrevista, e prontamente dispostos a tomar como pretexto um texto sem contexto, a tática de alguns desses “guardiões da fé” foi dar uma dimensão maior ao que é secundário de modo que não tenham que lidar com aquilo que é primário: O clamor de uma sociedade tragicamente enferma diante de uma igreja que, afogada no próprio vômito, é incapaz de absorver e fazer valer os valores do Reino de Deus. Estranhamente, esse clamor é ignorado em favor do cumprimento do “decreto divino” – que alguns, desfilando uma sucessão textos bíblicos, apresentam-no como legitimado pelas Escrituras – que a troco de nada abomina a homossexualidade, a bissexualidade, e outras formas, que não a heterossexual, de relacionamento afetivo.

Das nove questões que foram postas à mesa pela Carta Capital, oito estavam relacionadas ao comportamento destoante dos evangélicos, que inclui um modelo de espiritualidade triunfalista, uma compreensão mesquinha de Deus, ambição por poder, ênfase na quantidade em detrimento da qualidade. Apenas uma, abordando a questão da união civil entre homossexuais, aparece na entrevista, como que entre parêntesis. Esta, como não poderia ser diferente, vitimada pela síndrome da caixinha de promessas, foi pinçada do contexto para que, sem o amparo do restante da entrevista, tivesse sentido e interpretação desvirtuados para atender os interesses escusos de setores da mídia evangélica.

Condenada às fogueiras virtuais, abominada em púlpitos maculados pelas faltas encobertas daqueles que praticam a injustiça, verdadeira causa do pecado, a resposta do Gondim foi lenha queimada para prover a cortina de fumaça suficiente para ocultar o enquadramento dos seus algozes na conduta sob suspeição, tema das demais perguntas e respostas da entrevista.

Os depreciadores, invocam Gênesis 19 que relata aquele episódio no qual homens da cidade de Sodoma queriam ter relações sexuais com as manifestações teofânicas, em forma de homens, hospedadas na casa de Ló. Segundo se entende, havia um clamor que se multiplicava aos ouvidos de Deus e que esse clamor O fez querer conferir pessoalmente se era procedente de um pecado que se agravava (Gn 18.20-21).
Quantos sermões e advertências ouvimos, desde que fomos formatados à moral excludente evangélica, afirmando que a destruição de Sodoma e Gomorra foi um corretivo de Deus, dado serem aquelas cidades antros de promiscuidade sexual e inversão dos valores heterossexuais. Sob esta interpretação, aprimoramos a nossa impressão de santidade e limpeza, sem a qual ninguém verá a Deus, ou seja, um proceder sexual retilíneo e austero é o que basta. E mais, que Deus admite qualquer coisa menos a inversão dos valores heterossexuais. Deus tolera a soberba, a fartura de pão na mesa de uns poucos e a escassez na mesa de tantos, a próspera tranqüilidade para uns à custa da miséria de muitos, o desamparo ao pobre e ao necessitado, a arrogância e a prática de abominações. Tudo isso fica na peneira de Jeová, ele faz vista grossa, mas contra a homossexualidade ele acende a Sua implacável ira.

Nada como o profeta para denunciar o que realmente se esconde por trás da ênfase na condenação de um desvio moral, mesmo socialmente aceito como foi o de Sodoma e Gomorra. O profeta Ezequiel põe as claras: “Eis que esta foi a iniqüidade de Sodoma, tua irmã: soberba, fartura de pão e próspera tranqüilidade teve ela e suas filhas; mas nunca amparou o pobre. Foram arrogantes e fizeram abominações diante de mim; pelo que, em vendo isto, as removi dali” (Ez 16.49-50).

A comunidade evangélica que se pronuncia somente quando percebe que sua tranqüilidade e inércia poderão ser publicamente expostas, prega um elitismo moral como a verdadeira causa de não serem consumidos. Presunção, fartura de pão, próspera tranqüilidade, desamparo ao pobre, arrogância e abominações, são pecados menores, aliás, sequer são tratados como pecados se colocados a par da homossexualidade. As respostas do Ricardo na Carta são idênticas à estrutura da fala de Ezequiel. A reação ruidosa dos evangélicos sobre a questão da defesa dos direitos civis dos homossexuais é proporcional à preocupação com o conforto que querem para si, mas que negam aos outros. A artimanha utilizada pelos evangélicos para não ter de lidar com seus pecados mais enraizados e degradantes exposto pela fala do Ricardo no contexto da entrevista é a mesma que usam para interpretar o motivo de Sodoma e Gomorra terem sido destruídas baseado em Gênesis 19.

A eleição do Ricardo como o “herege da vez” se deve ao fato de ele denunciar a enfermidade crônica de um povo – que deveria ser cura – começando pelas causas, enquanto seus algozes, que se enquadram nestas causas, ferrenhamente se apegam aos efeitos.
As causas dessa enfermidade são as que aponta o profeta Ezequiel, que são sintomaticamente sentidas como antítese nas entrelinhas da carta dos evangélicos à Dilma e ordenadamente denunciadas pelo Ricardo na Carta Capital.

Um povo presunçoso que se orgulha de sua imagem em ascendência, que cada vez mais se afirma como grande consumidor, que apregoa fartura de pão e próspera tranqüilidade à custa do desamparo ao pobre, um povo que devido a sua arrogância comete abominações, faz que o clamor da justiça seja abafado ao ponto de se multiplicar, na forma de pecado, diante de Deus.

Um povo que não ouve o clamor por justiça que sobe de seu meio, que tenta sempre escapar de sua responsabilidade social, que subverte misericórdia em legalismo, que gosta tanto do convívio com a injustiça ao ponto de não querer lidar com suas causas, está tão unido à origem das estruturas de pecado que corre o risco de virar estátua de sal ficando pelo caminho como testemunho de sua insipiência para os que virão depois de nós.


Alex Carrari e Paulo Silvano


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