Relutei em dar o pontapé inicial, mas por mais que tenha fugido, preciso admitir diante de todos a minha difícil convivência com a verdade. Dissertar sobre as verdades que fazem sentido para mim, é complicado, muito complicado.
Há duas dimensões. A primeira: sinto-me crescentemente empurrado a ser meticuloso em falar de meus sentimentos, angústias, alegrias, desejos. “Seja discreto”, aconselham. “Não conte suas perplexidades”, admoestam. “Você tem mais inimigos do que imagina”, advertem.
A segunda: ando acossado pelos conteúdos de minha reflexão. Diante de um público resistente a mudanças, noto que devo ser criteriosíssimo com o que penso. Tenho que tomar todos os cuidados para não arranhar suscetibilidades dogmáticas. As âncoras doutrinárias e confessionais não podem ser içadas, elas precisam manter os navios institucionais em porto seguro. Impulsivamente tentei convidar alguns amigos e parceiros a navegarem nas águas tumultuadas do oceano das perguntas e das dúvidas, mas fui escanteado, exilado, xingado, rotulado. “Não se deve falar tudo o que pensa”, sugeriram. “Cuidado para não ser inconveniente”, exortaram. “Vá com calma”, avisaram.
A pior censura é a auto imposta, a que nasce do medo, da paranóia. Assusto-me quando tento equilibrar-me nessa corda, na balança entre o tato e a falsidade. Será que o receio de não me expor me tornará anódino, inodoro, insípido? Será que fiquei com medo das hienas que tentam se antecipar ao meu fim e já sabem como atacar?
Hesito. Suspeito escrever sob o olhar antipático de gente que, de antemão, não gosta do que vai ler. Mas, ir ao teclado e não vazar o espírito me tornaria semelhante ao pianista que não pode tocar. A dor de não tocar dói mais que a artrite que lhe entorta os dedos. Restam-me duas, apenas duas, opções: parar de escrever e aprender a empinar pipa – que seria um suicídio lento - ou continuar, sabendo que as críticas não arrefecerão.
Quando caminho pelos porões de minha alma, faço mea culpa. Quando subo aos sótãos, celebro eventos maravilhosos; lugares e pessoas que tornaram a minha vida bonita. Lembro que Rubem Alves escreveu certa vez que a “saudade é o bolso onde a alma guarda o que provou e aprovou”. Gosto de remexer os bolsos, de ruminar o que saboreei, de trazer à memória o que me ainda pode dar esperança. Nesses passeios, dores antigas têm chance de serem curadas.
Tecer reminiscências não é sentimentalismo, apenas o meu esforço de não permitir que o tempo desbote as fotografias, outrora coloridas, da infância. Não abro mão, esta geração dura e fria não vai impedir que eu retorne ao passado em busca do tempo perdido.
Quero escrever sobre questões teológicas que me intrigam, mas logo me corrijo: “Não faça isso, Ricardo, não vá se queimar à toa”. Se não posso esticar conceitos, se é perigoso questionar dogmas, crenças, superstições, então vou copiar receita de bolo -como faziam os jornais nos dias da ditadura. Miguel de Unamuno afirmava: “Saber por saber! A verdade pela verdade! Isso não é humano!”. Não ouso provocar por leviandade. Ao suscitar perguntas, mesmo sem resposta, busco confrontar crenças que considero pueris e desalojar credos que me afastam do drama humano. Sem pretender resolver os mistérios da Divindade, da Eternidade e do Sobrenatural, espero encontrar um fiapo de nexo naquilo que o coração intui. Fazer teologia se transformou no exercício de aprender a chorar com os que choram, de celebrar com os que triunfam e de nutrir esperança ao lado dos que lutam.
Morrerei se deixar que emperrem o minadouro de minha criatividade. Serei pássaro engaiolado, caso me acovarde nos labirintos do saber. Quero satisfazer-me com a beleza, com a dignidade, com o que for louvável, venha de onde vier. Sofrerei com menos tormento a trágica sina de viver, caso encontre a casa do bem, o templo do amor e a sala da amizade.
Convertido ao fundamentalismo desde a juventude, escrevo para reconciliar-me com todos os homens e todas as mulheres de bem que, independente de recitarem o mesmo catecismo, trabalham por um mundo melhor.
Consciente de meus pecados, inadequações e imaturidades, desejo crescer em minha Ricardice. Entendo que os meus maiores inimigos moram dentro de mim. Mas sei também que a possibilidade de humanizar-me depende da capacidade de reconhecer a beleza do meu interior. Se demônios me aterrorizam com vícios, anjos me incentivam com virtude. E nessa maré, que sobe e desce, avanço rumo à vocação de ficar parecido com o Nazareno.
Vi no http://www.ricardogondim.com.br/
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