quarta-feira, 1 de abril de 2009

Depravação e a Vontade

Laurence M. Vance - O Outro Lado do Calvinismo
Depravação e a Vontade


Como vimos, o problema com o Calvinismo não é o que ele ensina sobre a depravação do homem mas particularmente sobre o que ele ensina sobre o resultado desta depravação. O resultado calvinista é relatado por Spencer: “A Depravação Total insiste que o homem não tem ‘livre-arbítrio’ no sentido de que seja livre para confiar em Jesus Cristo como seu Senhor e Salvador.”[1] A negação que o homem tem livre-arbítrio para se arrepender e crer no Evangelho é parte do ensino mais amplo de que o homem, por causa de sua depravação, não tem a capacidade de realizar qualquer coisa boa:

Considerando que a descendência de Adão é nascida com uma natureza pecaminosa, eles não têm a CAPACIDADE para escolher o bem espiritual sobre o mal. Conseqüentemente, a vontade do homem não é mais livre (isto é, livre do domínio do pecado) como o desejo de Adão era livre antes da queda. Ao invés, a vontade do homem, como o resultado da depravação herdada, está escravizada por sua natureza pecaminosa.[2]

Então, “ainda que o homem nasça com a liberdade de escolher o que ele assim deseja, ele não mais tem a capacidade de escolher o bem (retidão). Toda a sua vontade é praticar o mal à vista de Deus.”[3] O homem “tem somente o poder de escolher entre males e visto que ele às vezes escolhe o mal menor, ele parece estar escolhendo o bem.”[4] A falácia desta idéia será abordada mais tarde.

Como uma questão filosófica que tem sido debatida por séculos, e continua a ser debatida entre os filósofos ainda hoje, a questão de se o homem tem livre-arbítrio não está apenas limitada ao Calvinismo. Há uma notável diferença, entretanto, entre um filósofo determinista e um calvinista. Nenhum filósofo que nega ao homem o livre-arbítrio o faz baseado na depravação do homem. E como veremos no próximo capítulo, há um outro aspecto para a negação do livre-arbítrio pelos calvinistas que da mesma forma não é sustentado por nenhum filósofo. De fato, o outro lado desta negação, na verdade, faz o presente debate sobre a vontade do homem completamente irrelevante por causa do que os calvinistas acreditam sobre a predestinação. Mas visto que a doutrina da Depravação Total é no final de contas construída sobre a premissa de que um homem “morto em delitos e pecados” (Efésios 2:1) não é capaz de seu próprio livre-arbítrio aceitar a salvação oferecida em Jesus Cristo, a própria natureza da vontade em si deve ser considerada primeiro.

Com respeito à essencial natureza da vontade do homem, não há nenhum desacordo entre os calvinistas e seus oponentes. A definição clássica é aquela de Jonathan Edwards:

A faculdade da vontade é aquela faculdade ou poder ou princípio da mente pelo qual ela é capaz de escolher: um ato da vontade é o mesmo que um ato de escolher ou de escolha.[5]

Pink simplesmente diz: “A vontade é a faculdade de escolha, a causa imediata de toda ação.”[6] Outros calvinistas também têm literalmente copiado esta definição[7] ou definido em termos similares.[8] Então, não faz a menor diferença se alguém consultar um dicionário ou um calvinista: até aqui ambos estão de acordo. Mas como o termo Depravação Total, é a primeira palavra na expressão “livre-arbítrio” que é assunto de controvérsia. A vontade do homem é regulada por sua natureza e é influenciada de fora, como Pink novamente comenta: “Há algo que influencia a escolha; algo que determina a decisão.”[9] Mas, contrário aos calvinistas, isto nunca tem sido discutido por qualquer cristão que acreditou no que a Bíblia disse sobre a depravação do homem. Liberdade não é a ausência de influências. Assim, para convencer o cético de que sua doutrina de livre-arbítrio é correta, o calvinista primeiro inventa uma caricatura da posição “arminiana”:

Na teologia arminiana, pelo homem ser livre, nada pode determinar suas escolhas; elas devem ser completamente espontâneas. Mas isto é lógica e biblicamente impossível. Não existe tal coisa como uma ação não-causada. Toda escolha que o homem faz é causada por alguma coisa (isto é, alguma disposição interior), de outra forma, ele não poderia escolher. O conceito de uma escolha não-causada é auto-contraditória. Nenhuma escolha pode ser completamente espontânea. Se este conceito arminiano de livre-arbítrio for levado à sua conclusão lógica, então seria pecaminoso pregar o evangelho ao homem caído. Por quê? Porque seria uma tentativa de induzi-lo a virar para Cristo, e isto seria uma violação de seu livre-arbítrio.[10]

Os calvinistas então ressuscita o velho argumento da “culpa por associação” e associa seus oponentes com os pelagianos, católicos romanos, e finneyitas além dos arminianos.[11]

O debate sobre a vontade do homem depende do sentido dado à palavra livre. É somente atribuindo a seus oponentes uma visão ampla e errônea da palavra livre que os calvinistas podem fazer declarações ultrajantes como:

O livre-arbítrio é um absurdo.[12]

O livre-arbítrio é a invenção do homem, instigado pelo diabo.[13]

O livre-arbítrio faz do homem seu próprio salvador e seu próprio deus.[14]

A heresia do livre-arbítrio destrona Deus e entroniza o homem.[15]

Se a teoria do livre-arbítrio fosse verdade, daria a possibilidade de arrependimento depois da morte.[16]

Gerstner nos convida a “baixar essa bandeira do livre-arbítrio, que é um símbolo falso de uma entidade inexistente.”[17] Clark audaciosamente insiste: “É óbvio que a Bíblia contradiz a noção de livre-arbítrio, e que sua aceitação por cristãos professos pode ser explicada somente pela contínua destruição do pecado cegando as mentes dos homens.”[18]

Mas apesar dos seus ataques à “doutrina do livre-arbítrio,”[19] os calvinistas acreditam que o homem tem livre-arbítrio. O problema, entretanto, é o significado da palavra livre. Tom Ross explica: “A vontade do homem é livre somente dentro dos limites de sua natureza. É livre em um único sentido; é livre para agir conforme sua natureza pecaminosa.”[20] A natureza é aquela que caracteriza e impele; um princípio de operação; um força impelindo para a ação. Mas de acordo com os calvinistas, a vontade é um servo – livre para agir somente de acordo com a natureza. Boettner alega que “somente o princípio calvinista de que a vontade é determinada pela natureza da pessoa e persuasões presentes, atinge uma conclusão harmoniosa com as Escrituras.”[21] Tom Wells sustenta que “a vontade do homem natural está unida ao que ele é.”[22] Isto nos leva de volta à distinção entre depravação total e absoluta: se o homem exerce o mal de sua natureza todas as vezes. Quando os calvinistas procuram provar a Depravação Total, a diferença entre as duas é insistida várias vezes, mas quando eles tentam apoiar seu conceito de vontade, ela é ignorada. Assim, até os calvinistas têm severamente criticado Calvino por suas extremas opiniões a respeito da vontade do homem em seu estado caído: “Sua visão da vontade caída não somente manifesta uma inconsistência; é falha também.”[23]

Para provar que o homem natural pode somente exercer sua vontade de acordo com sua natureza depravada, os calvinistas fazem algumas analogias. A primeira é a Deus mesmo. Deus é santo, e por causa de sua natureza ele não pode pecar. Então Deus mesmo tem incapacidade.[24] A segunda é similar. Para o homem salvo que foi regenerado, Deus um dia “transformará o seu corpo abatido” (Fp 3.21) para que ele também possa ser santo, com incapacidade para pecar novamente.[25] Ambas as declarações são certamente verdadeiras. Então, é feita referência a Adão: “No Adão não-caído a vontade era livre, livre em ambas as direções, livre em direção ao bem e livre em direção ao mal.”[26] Mais uma vez, ninguém está discutindo esta afirmação. O Senhor Jesus Cristo é então citado como sendo impecável, isto é, incapaz de pecar por causa de sua natureza divina.[27] Mas visto que ele era “o segundo homem” (1Co 15.47), “o último Adão” (1Co 15.45), “tornando-se semelhante aos homens” (Fp 2.7), e “em tudo foi tentado, mas sem pecado” (Hb 4.15), é às vezes mantido que Cristo era na verdade como Adão, com seu livre-arbítrio para exercer tanto o bem quanto o mal. Todavia, todos concordariam que agora, em seu estado elevado e glorificado, o Senhor Jesus Cristo tem incapacidade de pecar. Por último vem o homem não regenerado. Pink conclui:

Agora, em contraste com a vontade do Senhor Jesus Cristo que era inclinada ao bem, e a vontade de Adão que, antes de sua queda, estava em uma condição de equilíbrio – capaz de escolher o bem ou o mal – a vontade do pecador está inclinada ao mal, e por isso livre em uma direção apenas, a saber, na direção do mal. A vontade do pecador está escravizada pois ela está presa e é serva do coração depravado.[28]

Naturalmente, o calvinista oferece “prova” bíblica para a verdade de sua doutrina:[29]

Assim, toda a árvore boa produz bons frutos, e toda a árvore má produz frutos maus. Não pode a árvore boa dar maus frutos; nem a árvore má dar frutos bons (Mt 7.17-18).

Raça de víboras, como podeis vós dizer boas coisas, sendo maus? Pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca. O homem bom tira boas coisas do bom tesouro do seu coração, e o homem mau do mau tesouro tira coisas más (Mt 12.34-35).

A idéia aqui é que, visto que o homem tem uma natureza depravada, ele somente pode agir de acordo com esta natureza.

Agora, é certamente verdade que os homens não regenerados são “servos do pecado” (Rm 6.20), estão “mortos em ofensas e pecados” (Ef 2.1), e são “por natureza filhos da ira” (Ef 2.3). Mas isto significa que eles podem somente agir de acordo com a sua natureza? Se sim, então eles não somente têm a incapacidade de aceitar Jesus Cristo, mas também eles têm a incapacidade de realizar qualquer coisa boa, seja ela qual for, pois o ensino de que o homem caído pode exercer sua vontade somente de acordo com sua natureza depravada é pela razão do calvinista sustentar que o homem tem a incapacidade de realizar qualquer coisa boa. Estas duas idéias são às vezes referidas como “incapacidade espiritual” e “incapacidade moral.”[30] Há basicamente quatro coisas erradas com o ensino de que o homem natural pode agir somente de acordo com a sua natureza. Duas delas se relacionam com um homem esquecido nas analogias anteriores – o homem salvo, enquanto as outras duas dizem respeito ao homem não regenerado – a natureza do homem depois da Queda e a capacidade do homem no estado de depravação.

Em primeiro lugar, sobre o homem salvo, alguém acharia que se um homem não salvo é como uma “árvore má” (Mt 7.17) que pode produzir somente frutos podres, então um homem salvo deve ser como uma “árvore boa” (Mt 7.17) que pode somente produzir bons frutos. Isto é exatamente como Boettner interpreta.[31] Ele diz que “nesta comparação, as árvores boas e as árvores más representam os homens bons e os homens maus.”[32] Destes homens ele sustenta que “uma classe de homens é governada por uma série de princípios, enquanto outra classe é governada por uma outra série de princípios básicos.”[33] Ele insiste que “é impossível, então, para uma e a mesma raiz produzir frutos de diferentes espécies.”[34] Mas esta interpretação é verdadeira? Um homem salvo sempre produz bons frutos? Um homem pára de pecar quando ele é salvo? Alguns cristãos não produzem maus frutos? E quanto àqueles que “não deram frutos” (Mc 4.7), onde eles se encaixam? E quanto ao contexto destas passagens em Mateus? O contexto é os falsos profetas que vêm vestidos como ovelhas (Mt 7.15). Eles pareciam e agiam como ovelhas (Mt 7.21). Era somente por seus frutos – seu falso ensino – que eles podiam ser descobertos pelo que eles verdadeiramente eram (Mt 7.16).

Em segundo lugar, alguém acharia que a “total incapacidade” do homem seria retificada pela salvação visto que todos os calvinistas alegam que o homem natural possui “incapacidade” e o homem salvo possui “capacidade.” Mas o apóstolo Paulo ainda reconhece essa “incapacidade” depois de sua salvação:

Porque o que faço não o aprovo; pois o que quero isso não faço, mas o que aborreço isso faço. E, se faço o que não quero, consinto com a lei, que é boa. De maneira que agora já não sou eu que faço isto, mas o pecado que habita em mim. Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal que não quero esse faço. Ora, se eu faço o que não quero, já o não faço eu, mas o pecado que habita em mim (Rm 7.15-20).

E não apenas o apóstolo Paulo, mas todos os cristãos: “Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis” (Gl 5.17). Então até o “eleito” tem “incapacidade.”

A natureza do homem depois da Queda foi corretamente percebida por J. B. Heard (n. 1828) há cerca de cem anos atrás: “O mistério da natureza humana parece repousar nisto, que os homens são nascidos no mundo com um corpo e alma vivos, mas com um espírito morto e adormecido.”[35] Ainda que os calvinistas reconheçam que Adão morreu espiritualmente, somente o tricotomista pode propriamente explicar os resultados da Queda e, então, da depravação. E não somente a Queda, mas como Heard relata, sem a distinção entre alma e espírito, “a doutrina do novo nascimento é incompleta” e “a doutrina da habitação do Espírito Santo seria totalmente sem significado.”[36] Isto não quer dizer que todos os calvinistas rejeitam a natureza tripartite do homem, nem que todos os não-calvinistas a aceitam. Mas como Pink, um tricotomista, reconhece a respeito da Queda do homem: “Isto não significa que, ou sua alma ou espírito, ou qualquer outra parte, cessou de existir.”[37] Entretanto, o debate sobre se a constituição do homem é uma tricotomia ou uma dicotomia é realmente irrelevante visto que os calvinistas podem ser encontrados de ambos os lados da questão.[38] Então, como o dicotomista Boettner diz do homem: “Apesar de estar morto espiritualmente, isto não significa que seu espírito está inativo ou inconsciente.”[39]

Agora, sobre a natureza do homem não regenerado depois da Queda, o foco é geralmente no que o homem perdeu. Mas como Pink reconhece, há algo que o homem ganhou por sua queda em pecado:

Através do pecado, o homem obteve algo que ele não tinha antes (ao menos em operação), a saber, uma consciência – um conhecimento do bem e do mal. Isto era algo que o homem não caído não possuía, pois o homem foi criado em um estado de inocência, e inocência é ignorância do mal. Mas tão logo o homem comeu do fruto proibido, ele se tornou consciente de seu delito, e seus olhos foram abertos para ver sua condição caída. E a consciência, o instinto moral, é algo que agora é comum à natureza humana. O homem tem isto dentro dele que testemunha sua condição caída e pecadora![40]

Que o homem agora adquiriu uma consciência depois que ele caiu pode ser visto comparando a atitude de Adão e Eva antes e depois da Queda:

E ambos estavam nus, o homem e a sua mulher; e não se envergonhavam (Gn 2.25).

Então foram abertos os olhos de ambos, e conheceram que estavam nus; e coseram folhas de figueira, e fizeram para si aventais (Gn 3.7).

Para horror do teólogo reformado holandês Homer Hoeksema,[41] os Cânones de Dort imitam a Escritura neste ponto:

É verdade que há no homem depois da queda um resto de luz natural. Assim ele retém ainda alguma noção sobre Deus, sobre as coisas naturais e a diferença entre honra e desonra e pratica alguma virtude e disciplina exterior. Mas o homem está tão longe de chegar ao conhecimento salvífico de Deus e à verdadeira conversão por meio desta luz natural que ele não a usa apropriadamente nem mesmo em assuntos cotidianos. Antes, qualquer que seja esta luz, o homem a polui totalmente, de maneiras diversas, e a detém pela injustiça. Assim, ele se faz indesculpável perante Deus.[42]

O remanescente do espírito caído do homem é sua consciência. A consciência não contempla Deus, mas somente sua lei, como Pink explica: “A consciência é a silenciosa e débil voz de Deus dentro da alma, testificando para o fato de que o homem não é seu próprio mestre, mas responsável perante uma lei moral que ora aprova ora reprova.”[43] O conhecimento do bem e do mal dá ao homem uma consciência. É algo que separa o homem dos animais. Assim como há um “um grande abismo” (Lc 16.26) entre Deus e o homem, assim também há entre o homem e os animais. Sem uma consciência, o homem está no nível de um animal para as coisas espirituais e não pode crer em Jesus Cristo mais do que um cachorro ou um gato. A consciência também explica a distinção entre a depravação total e absoluta – por que o homem depravado não expressa o mal de sua natureza pecaminosa a toda hora. Isto não quer dizer que o homem não seja depravado, ou sempre siga sua consciência, embora seja isto que o calvinista acusará seus oponentes de crer. O estado relativo da depravação em que o homem está afeta sua consciência. Dizem que os homens têm uma má consciência (Hb 10.22), uma consciência contaminada (Tt 1.15), uma consciência cauterizada (1Tm 4.2), e uma consciência fraca (1Co 8.12). Uma visão imperfeita da natureza do homem depois de sua queda em pecado é o que nos leva ao falso ensino da incapacidade do homem para agir contrário à sua natureza. E mais uma vez, é um calvinista que aponta o erro de Calvino nesta questão: “Calvino retém no estado caído tão pouco do mal que foi criado que ele não é capaz de explicar adequadamente o caráter moral da ação humana nesse estado, quando ele ainda faz escolhas entre o bem e o mal.”[44]

A última coisa errada com o ensino de que o homem natural pode agir somente de acordo com a sua natureza se relaciona com a capacidade do homem no estado de depravação. Em primeiro lugar, está na base da consciência de que um pecador depravado que nunca ouviu o Evangelho tem “capacidade”:

Porque, quando os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas que são da lei, não tendo eles lei, para si mesmos são lei; os quais mostram a obra da lei escrita em seus corações, testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os (Rm 2.14-15).

Isto é confirmado por um calvinista: “Esta acusação e defesa sugere além disso que a consciência caída ainda enfrenta a escolha entre fazer o bem e o mal.”[45] Mas e quanto à existência de uma “motivação natural para a bondade moral na vontade caída” que foi corrompida pela Queda?[46] Novamente, um honesto calvinista: “A resposta tem que ser sim; pois é a interpretação mais razoável da linguagem paulina. O ônus da prova está com Calvino para defender sua opinião de que a queda reduziu a natureza da vontade como Deus criou a uma busca espontânea e exclusiva do mal.”[47] E em segundo lugar, depois de dizer aos judeus que sua doutrina não era dele mas de Deus (Jo 7.16), o Senhor Jesus Cristo estabeleceu um princípio que diretamente apela para a vontade do homem: “Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina conhecerá se ela é de Deus, ou se eu falo de mim mesmo” (Jo 7.17). Pink até confirma o fato da “capacidade” do homem:

Nesta declaração, nosso Senhor Jesus Cristo estabeleceu um princípio de suprema importância prática. Ele nos informa como a certeza pode ser alcançada em conexão com as coisas de Deus. Ele nos conta como o discernimento espiritual e a segurança devem ser obtidos. A condição fundamental para obter conhecimento espiritual é um desejo genuíno para executar a vontade revelada de Deus em nossas vidas. Sempre que o coração está correto Deus dá a capacidade para compreender Sua verdade.[48]

Estes comentários de Pink mostram que o ensino calvinista de que a vontade do homem não é livre pois ela pode somente agir de acordo com a sua natureza depravada não é somente refutada pela Bíblia, mas pelos calvinistas também.

Uma visão real da natureza caída e da condição depravada do homem mostra que o homem não tem “capacidade” para realizar o “bem.” Às vezes, são aplicadas declarações genéricas a qualquer pessoa:

O homem de bem deixa uma herança aos filhos de seus filhos, mas a riqueza do pecador é depositada para o justo (Pv 13.22).

O coração alegre é como o bom remédio, mas o espírito abatido seca até os ossos (Pv 17.22).

Glória, porém, e honra e paz a qualquer que pratica o bem; primeiramente ao judeu e também ao grego (Rm 2.10).

Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos SENHORes, não somente aos bons e humanos, mas também aos maus (1Pe 2.18).

Outras vezes são os não regenerados em geral que executam o “bem”:

E se fizerdes bem aos que vos fazem bem, que recompensa tereis? Também os pecadores fazem o mesmo (Lc 6.33).

Porque os tais não servem a nosso Senhor Jesus Cristo, mas ao seu ventre; e com suaves palavras e lisonjas enganam os corações dos simples (Rm 16.18).

Há também ocasiões onde indivíduos específicos são mencionados como ora executando o bem ora tendo a capacidade de executar o bem. Abimeleque e dois de seus companheiros, todos eles odiaram Isaque (Gn 26.27), que era um tipo de Cristo (Gn 22.2), não eram regenerados, todavia foi relatado que eles responderam a Isaque:

Que não nos faças mal, como nós te não temos tocado, e como te fizemos somente bem, e te deixamos ir em paz. Agora tu és o bendito do SENHOR (Gn 26.29).

Deus mesmo até reconheceu que os maus podiam fazer o “bem”:

Veio, porém, Deus a Labão, o arameu, em sonhos, de noite, e disse-lhe: Guarda-te, que não fales com Jacó nem bem nem mal (Gn 31.24).

O princípio da ação correta com um coração mau, enganador (Jr 17.9) é confirmado por Jesus Cristo: “Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai, que está nos céus, dará bens aos que lhe pedirem?” (Mt 7.11). Uma ação pode ser boa não importa qual seja o motivo.

Se de fato os homens não regenerados podem ser “bons” e executarem o “bem,” como as Escrituras acima claramente mostram, então como esta corresponde com as declarações bíblicas de que ninguém realiza qualquer coisa boa?

Na verdade que não há homem justo sobre a terra, que faça o bem, e nunca peque (Ec 7.20).

Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só (Rm 3.12).

No sentido último, o Senhor Jesus Cristo é o único homem que já viveu “sem pecado” (Hb 4.15) e sempre “andou fazendo bem” (At 10.38). Ele era bom porque ele era Deus (Mc 10.18). E apesar da passagem em Romanos ser literalmente verdadeira se constrastar o homem natural com o Senhor Jesus Cristo, a linguagem hiperbólica, que é evidente quando o verso é examinado em seu contexto, é empregada por razões a ser agora discutidas. O verso em Eclesiastes está meramente transmitindo o fato de que todos pecam, como Salomão disse anteriormente (1Re 8.46). Então, se os homens não regenerados podem ser “bons” e praticar o “bem,” quais as implicações disto para o assunto em pauta? Primeiramente, é certamente verdade, como Boettner pronuncia, que “o homem caído é tão moralmente cego que ele invariavelmente prefere e escolhe o mal ao invés do bem.”[49] E, como Edwards declarou: “Há uma tendência na natureza do homem para o pecado, que em infâmia e merecimento de castigo, pesa imensamente mais do que todo o valor e mérito de qualquer suposto bem, que possa estar nele, ou que ele possa praticar.”[50] Não há ninguém que tenha estudado história, lido o que a Bíblia diz sobre a depravação do homem, e confirmado sua pesquisa por evidência empírica que discordaria destas declarações destes dois notáveis calvinistas. Mas a verdade destas duas observações não exigem a incapacidade do homem que encontramos no sistema calvinista. Há uma distinção importante entre a ação correta e ação da retidão. Como o calvinista Donald Grey Barnhouse (1895-1960) explica: “Depravação total não significa que não há nada de bom no homem, mas não há nada de bom no homem que possa agradar a Deus.”[51]

Para evitar este ensino claro das Escrituras, os calvinistas inventaram uma diferença entre “obras relativamente boas” e “obras verdadeiramente boas.”[52] Mas devido à sua propensão de encher a língua inglesa com termos teológicos, estas são também referidas como bem “relativo” e “absoluto,”[53] bem “natural” e “espiritual,”[54] bem “moral” e “não-moral.”[55] Insistir, entretando, que o homem não regenerado pode praticar o “bem” não implica que qualquer coisa que ele faça esteja agradando a Deus ou contribui para sua salvação de qualquer maneira. Assim, quando Walter Chantry anuncia que “qualquer pecador que supõe que sua vontade tem a força de praticar qualquer coisa boa que leva à salvação está extremamente iludido e longe do reino,”[56] ele está apenas soltando fumaça, pois ninguém que crê no que a Bíblia diz sobre a salvação e a depravação do homem tem jamais ensinado tal coisa. Entretanto, este foi o erro de Erasmo em seu debate sobre o livre-arbítrio com Lutero. Quando Erasmo disse que “por liberdade da vontade entendemos, em relação a isto, o poder da vontade humana segundo a qual o homem pode aplicar-se ou afastar-se daquilo que leva à salvação eterna,”[57] ele deu uma definição ambígua e imprecisa. Além disso, ele pode também dizer que o homem pode “por meio destas e de outras boas obras eticamente, empregar de um modo a obter a graça final,”[58] e falar sobre “atos humanos meritórios.”[59] Agora, tudo isso não significa que Lutero estava correto em sua negação do livre-arbítrio, mas significa que há uma alternativa ao Calvinismo. Como as tentativas dos calvinistas para descrever todos os homens como calvinistas ou arminianos, os calvinistas gostariam nada mais que ligar todos os seus oponentes na questão do livre-arbítrio com Erasmo. Mas Deus não é obrigado nem incitado a salvar qualquer um não importa o que o homem faça. Graça é qualquer movimento de Deus em direção ao homem. O fato do homem ter ou não livre-arbítrio é irrelevante neste aspecto.

Em contraste com Erasmo estão os antagonistas históricos dos calvinistas: Arminius e Wesley. Em resposta aos ataques dos calvinistas, Arminius teve uma discussão pública sobre o livre-arbítrio. Em seu “Sobre o Livre-Arbítrio do Homem e seus Poderes,” Arminius fez declarações sobre o resultado da depravação do homem que nenhum “arminiano” jamais consentiria:

Neste estado o Livre-Arbítrio do homem em direção ao Verdadeiro Bem não está apenas ferido, mutilado, débil, inclinado, e enfraquecido; mas também aprisionado, destruído, e perdido: E seus poderes não estão apenas debilitados e inutéis a menos que eles sejam assistidos pela graça, mas não têm poder nenhum exceto se excitados pela graça Divina.[60]

Em resposta à pergunta: “Como podemos chegar ao próprio extremo do Calvinismo?,” Wesley respondeu: “Atribuindo todo o bem à livre graça de Deus. (2) Negando todo livre-arbítrio natural, e todo poder antecedente à graça. E (3) excluindo todo mérito do homem; até para o que ele tem ou faz pela graça de Deus.”[61] Ligar Arminius, Wesley, e qualquer oponente do Calvinismo com todas as opiniões de Erasmo é desonesto.

Devia ser aparente que, devido à sua depravação, o homem peca por sua própria volição e desejo, não porque seu desejo pode somente seguir sua natureza. O problema da vontade é render-se à carne: “Não sabeis vós que a quem vos apresentardes por servos para lhe obedecer, sois servos daquele a quem obedeceis, ou do pecado para a morte, ou da obediência para a justiça?” (Rm 6.16). Há várias fases que ocorrem quando um homem peca: apresentação, iluminação, disputa, decisão, ação. Não é pecado ser apresentado a alguma coisa; nem é pecado receber iluminação para se algo é certo ou errado. Entretanto, uma vez que a disputa começa: o pecado entra – não importa se a decisão já foi feita para executar o ato. Isto é ilustrado de modos diferentes na Bíblia:

E respondeu Acã a Josué, e disse: Verdadeiramente pequei contra o SENHOR Deus de Israel, e fiz assim e assim. Quando vi entre os despojos uma boa capa babilônica, e duzentos siclos de prata, e uma cunha de ouro, do peso de cinqüenta siclos, cobicei-os e tomei-os; e eis que estão escondidos na terra, no meio da minha tenda, e a prata por baixo dela (Js 7.20-21).

Mas cada um é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte (Tg 1.14-15).

Os dois exemplos de “incapacidade moral” de Pink são explicados no contexto, como até ele mesmo registra:

Vendo, pois, seus irmãos que seu pai o amava mais do que a todos eles, odiaram-no, e não podiam falar com ele pacificamente (Gn 37.4).

Tendo os olhos cheios de adultério, e não cessando de pecar, engodando as almas inconstantes, tendo o coração exercitado na avareza, filhos de maldição (2Pe 2.14).

Pink explica que foi porque “odiaram-no” que eles “não podiam falar com ele pacificamente.”[62] E novamente, sobre a segunda passagem, ele diz que a razão deles “não cessar de pecar” é que seus olhos estão “cheios de adultério.”[63] Em ambas as sentenças, a incapacidade não foi o resultado da depravação inata do homem mas um pecado específico. Embora o pecado seja descrito na Bíblia de várias maneiras: “iniqüidade” (1Jo 3.4), “toda injustiça” (1Jo 5.17), “tudo o que não é de fé” (Rm 14.23), “aquele que sabe fazer o bem e não o faz” (Tg 4.17), o homem não regenerado não peca porque ele tem incapacidade de fazer qualquer coisa boa, ele peca porque ele se rende à sua natureza depravada e deliberadamente escolhe fazer assim.


[1] Spencer, Tulip, p. 27.
[2] Steele e Thomas, p. 25.
[3] Talbot e Crampton, p. 19.
[4] Custance, p. 40.
[5] Jonathan Edwards, Freedom of the Will, ed. Paul Ramsey (New Haven e Londres: Yale University Press, 1957), p. 137.
[6] Pink, Sovereignty, p. 130.
[7] Tom Ross, Abandoned Truth, p. 46.
[8] Walter J. Chantry, Man’s Will – Free Yet Bound (Canton: Free Grace Publications, 1988), p. 2; Tom Wells, Faith: The Gift of God (Edinburgo: The Banner of Truth Trust, 1983), p. 47; Bishop, p. 145.
[9] Pink, Sovereignty, p. 139.
[10] Talbot e Crampton, p. 21.
[11] Chantry, p. 4.
[12] Charles H. Spurgeon, Free Will – A Slave (Canton: Free Grace Publications, 1977), p. 3.
[13] David O. Wilmoth, em “The Baptist Examiner Forum II,” The Baptist Examiner, 16 de setembro de 1989, p. 5.
[14] Tom Ross, Abandoned Truth, p. 56.
[15] W. E. Best, Free Grace Versus Free Will (Houston: W. E. Best Book Missionary Trust, 1977), p. 35.
[16] Boettner, Predestination, p. 221.
[17] John H. Gerstner, A Primer on Free Will (Phillipsburg: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1982), p. 10.
[18] Clark, Predestination, p. 114.
[19] Steven R. Houck, The Bondage of the Will (Lansing: Peace Protestant Reformed Church, n.d.), p. 1.
[20] Tom Ross, Abandoned Truth, p. 48.
[21] Boettner, Predestination, p. 221.
[22] Tom Wells, p. 52.
[23] Dewey J. Hoitenga, John Calvin and the Will: A Critique and Corrective (Grand Rapids: Baker Books, 1997), p. 70.
[24] Gill, God and Truth, p. 197; Bishop, p. 149.
[25] Gill, God and Truth, p. 198.
[26] Pink, Sovereignty, p. 134.
[27] Gill, God and Truth, p. 197; Pink, Sovereignty, p. 135; Bishop, p. 148.
[28] Pink, Sovereignty, pp. 134-135.
[29] P. e., Mt 7 – Gunn, p. 7; Steele e Thomas, p. 29. Mt 12 – Pink, Gleanings from the Scriptures, p. 217; Chantry, p. 1.
[30] Pink, Sovereignty, pp. 151, 152.
[31] Boettner, Predestination, p. 65.
[32] Ibid.
[33] Ibid.
[34] Ibid.
[35] J. B. Heard, The Tripartite Nature of Man: Spirit, Soul, and Body, 5a. ed. (Edinburgo: T & T Clark, 1882), p. 100.
[36] Ibid., pp. 96, 209.
[37] Arthur W. Pink, The Doctrine of Salvation (Grand Rapids: Baker Book House, 1975), p. 23.
[38] Calvinistas tricotomistas incluem Pink (Salvation, p. 23) e Chafer (Theology, vol. 2, p. 181); Calvinistas dicotomistas incluem Berkhof (Theology, p. 194) e Charles Hodge (Theology, vol. 2, p. 249).
[39] Boettner, Immortality, p. 123.
[40] Pink, Genesis, pp. 37-38.
[41] Homer Hoeksema, Voice of Our Fathers, pp. 453-464.
[42] Cânones de Dort, III, IV:4.
[43] Pink, Genesis, p. 38.
[44] Hoitenga, p. 70.
[45] Ibid., p. 111.
[46] Ibid.
[47] Ibid.
[48] Arthur W. Pink, Exposition of the Gospel of John (Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1975), p. 385.
[49] Boettner, Predestination, p. 63.
[50] Edwards, Original Sin, p. 139.
[51] Donald Grey Barnhouse, “God’s Wrath,” em Expositions of Bible Doctrines Taking the Epistle to the Romans as a Point of Departure (Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1953), vol. 1, p. 216.
[52] Palmer, p. 12.
[53] Storms, Chosen for Life, p. 35.
[54] Hanko, Total Depravity, p. 17.
[55] Houck, Bondage of the Will, p. 9.
[56] Chantry, p. 8.
[57] Desidério Erasmo, em Erasmus – Luther Discourse on Free Will, trad. e ed. Ernst F. Winter (Nova York: Frederick Ungar Publishing Co., 1961), p. 20.
[58] Ibid., p. 29.
[59] Ibid., p. 31.
[60] Works of Arminius, vol. 2, p. 192.
[61] Wesley, p. 132.
[62] Pink, Sovereignty, p. 151.
[63] Ibid., p. 152.


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