Essas são disputas de homens de entendimento corrompido, privados da verdade, que acreditam que a espiritualidade é fonte de lucro.Porque nada trouxemos para este mundo, e daqui nada podemos levar: tendo, porém, alimento e vestuário, estaremos com isso contentes. Mas os que querem tornar-se ricos caem em tentação e em laço, e em muitas concupiscências loucas e nocivas, que submergem os homens na ruína e na perdição.
1 Timóteo 6:5,7-9
Os homens inventam as religiões a partir do que sabem do seu tráfico com outros homens; é por isso que nas religiões deste mundo nada é de graça. Mudam os deuses e suas exigências, mas tudo permanece uma questão de toma-lá-dá-cá. A “religiosidade empírica”, de que os sociólogos encontram traços em todas as tradições religiosas, é precisamente essa “crença de que o culto apropriado traz recompensa tangível no presente mundo, na forma de benefícios materiais como saúde, prosperidade, sucesso ou fama”1.
Desde que surgiram em cena, portanto, os deuses tem sido cultuados pelo que tem a oferecer. Recompensa tangível. Benefícios materiais. Dessa forma os homens aprenderam a seduzir e apaziguar com ofertas os deuses dos elementos, da colheita e da reprodução, porque dependiam da continuidade de suas dádivas para sobreviver. Aprendemos a nos dobrar diante dos deuses pela mesma razão que um bando de gorilas se dobra diante de seu líder: não por verdadeira simpatia, mas porque seu poder tem potencial tanto para nos destruir quanto para nos proteger. Se o deus cultuado não se mostrava capaz de garantir a prosperidade do grupo, convinha transferir a devoção para divindade mais capaz. Vencia o deus com o maior pênis ou o braço mais formidável.
O Deus de Israel, que se propunha digno de adoração por atributos morais como justiça e misericórdia, foi desde o início grave exceção no panteão; um deus que se prezasse deveria destacar-se por suas especialidades, pelos seus caprichos e pelo terror induzido pelo seu poder. Nada havia de ético na devoção que as divindades requeriam e na recompensa que ofereciam aos seus cultuantes. O Deus de Israel produzia embaraço entre seus pares porque deixava claro que se deleitava em que seus adoradores fizessem a coisa certa; enquanto os demais deuses aceitavam suborno e desconheciam particularidades morais, apenas a integridade parecia angariar o favor de Iavé.
Apesar dessa distinção, em muitas passagens do Antigo Testamento o Deus de Israel é ainda apresentado ou interpretado como um macho alfa tremendo e irascível, absolutamente pronto a defender seu território e seu bando esmigalhando qualquer intruso e qualquer competição – figura distinta das outras divindades em extensão de poder mas não em temperamento. Foram necessários os profetas para apontar além de qualquer dúvida a singularidade ética que, explicavam eles, já fazia parte do caráter divino desde o princípio.
Os profetas revelaram ainda que Deus não encontra prazer nas ofertas e sacrifícios materiais que possam apresentar-lhe os homens; mais do que isso, Deus não se vê obrigado a honrar essas ofertas, porque – e aqui fica patenteada a sua singularidade – o que o satisfaz é “misericórdia, não sacrifício”.
Apesar dessas revelações, foi necessário Jesus para escancarar a verdade final diante de uma humanidade estarrecida: a de que Deus absolutamente não tem favoritos e não cede absolutamente a barganhas. Em Jesus fica explicitado que o critério divino é a graça, isto é, seu próprio cavalheirismo e inclusividade, segundo os quais ele “derrama o seu sol sobre justos e injustos”. A reviravolta está em que nem mesmo a integridade pode angariar o favor de Deus, porque a Deus basta a sua; diante da escala dessa verdade, as prostitutas chegam ao paraíso antes dos religiosos de carteirinha. Na verdade, a integridade divina fica revelada em sua graça e sua ausência de critérios; para sermos íntegros como Deus é íntegro será necessário que sejamos inclusivos como Deus é inclusivo. Arrepender-se – mudar de mentalidade – é engolir e passar a aplicar essas exigentíssimas realidades.
Jesus, portanto, gastou sua vida para anunciar a boa nova da graça, demolir a espiritualidade empírica da barganha e dissociar o nome de Deus da teologia do toma-lá-dá-cá. Os cristãos gastaram dois mil anos para anular os esforços dele: a teologia da barganha que Jesus morreu para matar está muito viva, sequestrou o nome dele para os seus propósitos e se chama em alguns lugares teologia da prosperidade.
Até meados da Idade Média a religiosidade popular cristã fazia coro com os evangelhos em sua celebração da simplicidade e condenação da ganância; seus heróis eram o próprio Jesus e São Francisco de Assis. A Reforma, que nasceu junto com o capitalismo, mudou esse cenário com um discurso que incentivava o lucro, o empréstimo a juros e a acumulação de riquezas. Porém foi só no século XX, com a vitória final do liberalismo econômico, a forma mais selvagem e sem rédeas de capitalismo, que um discurso teológico encontrou brecha para glorificar declaradamente a ganância, ao mesmo tempo em que finge ter alguma relação com a herança de Jesus.
Quer estejam falando a um grupo de empresários ou a uma congregação de favelados, os proponentes da teologia da prosperidade dirão essencialmente a mesma coisa: que é vontade de Deus, com aprovação de Jesus e garantia do Espírito Santo, que seus ouvintes sejam dali em diante ricos e bem-sucedidos em seus negócios. Invariavelmente, o caminho para essa incontrolável prosperidade passará por uma demonstração financeira de fidelidade por parte do candidato. “Dê a Deus uma quantia x“, insistem eles, “e Deus irá compensá-lo com 10 vezes x ou mais”. Quem recusa-se a apresentar uma oferta financeira é imediatamente culpado de falta de fé; será fatalmente punido com retorno nenhum ou, quem sabe, com a inadimplência completa.
Numa instância paralela, muitos pastores afirmam que a prosperidade garantida por Deus se estende à saúde física. Assim, se o seu filhinho de três anos está doente, ou se você tem epilepsia, a culpa é da sua falta de fé; essa sua incredulidade só uma fidelidade radical se mostrará capaz de corrigir.
Diante desses discursos, o desafio da fé permanece sempre em aberto, e a mão do pastor sempre estendida. Quem quiser “ver a obra realizada” vai ter de molhar a mão do obreiro.
Para refutar essa doutrina bastaria qualquer página do Novo Testamento, se seus proponentes se sujeitassem a elas. Do começo ao fim o rabi de Nazaré viveu uma vida simples e explicou que não ajuntássemos tesouros da terra; não foi poupado das adversidades, ensinou a humildade e desviou-se constantemente das armadilhas de prosperidade que armou-lhe o diabo.
Para não abandonar o eixo Lucas/Atos, o Jesus de Lucas explode com um muito claro “bem-aventurados os pobres” (ao contrário de Mateus, que adiciona o atenuante “de espírito”), e acrescenta: “mas ai de vocês que são ricos, porque já receberam a sua consolação”. Mais tarde, neste mesmo livro de Atos, Paulo e Barnabé dirão aos novos discípulos que tenham paciência diante das adversidades, porque “por muitas tribulações nos é necessário entrar no reino de Deus”.
Porém não haverá testemunho maior contra a teologia da prosperidade do que o contraste fornecido pela própria narrativa. No livro de Atos os seguidores de Jesus serão presos, perseguidos, espancados e mortos. Serão acusados injustamente e levados a tribunais. Sofrerão naufrágios, derramarão sangue, tomarão chuva, perderão amigos, serão expulsos de cidades, perderão seus empregos. Em vez de buscá-lo para si, o que farão é denunciar aos poderosos os riscos e ilusões do poder. Em vez de acumularem riquezas, o que farão continuamente é despojar-se delas em favor uns dos outros.
Recusar-se-ão a buscar a segurança e a aprovação o que mundo busca. O que pedirão a Deus não é que sejam poupados da perseguição, mas que sejam encontrados pela morte fazendo a coisa certa. Representarão consistentemente uma formidável contra-cultura, uma ameaça subversiva a tudo que o mundo considera admirável, sensato e prioritário.
Porém, acima de tudo, são sua generosidade e inclusividade que se manterão não-condicionadas. É nisso que estarão sendo testemunhas de Jesus e nisso, se tudo der certo, consistirá o seu testemunho.
Os que defendem a teologia da prosperidade lembram incessantemente que a Bíblia ensina que os ricos devem ser generosos, e declaram que isso justifica por si só a busca pela riqueza; o livro de Atos lembra incessantemente que a generosidade não requer justificativa e não está condicionada à riqueza, sendo muitas vezes tolhida por ela.
A vida, o abraço, a companhia, todos tem para dar; para os ricos só é mais fácil esquecer.
Paulo Brabo
Vi no http://www.baciadasalmas.com/
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